É FÁCIL AMAR UM IRMÃO DESTES
Ele é dos mais sensatos; não é o mais, mas é muitíssimo sensato. Gostaria até de ter a personalidade dele, mas não nasceu comigo essa génese e portanto, por mais que me esforce, não o consigo imitar na sua tranquilidade; além disso, cheguei à conclusão de que não consigo imitar ninguém. Nasceu em África e conviveu de perto com o cheiro dos trópicos até à idade adulta, ao invés do que aconteceu comigo. Assentou praça em Mafra e mandaram-no ir fazer a guerra para Moçambique. Regressou são e salvo e por aqui ficou até aos dias de hoje. Já tem no cardápio da vida 69 primaveras. Foi um regalo ouvi-lo falar:
- É… já fiz o número mágico, 69.
Juro que ele estaria a pensar em 69 anos e eu a pensar no 69, número mágico mesmo, aquele que todos os homens querem alcançar antes de morrer. Casou, adaptou-se completamente à cultura europeia, mas não se esqueceu das suas raízes - fala crioulo como um papagaio e não acha que as raízes dele sejam as que vão mais fundo beber da razão, ao contrário do que pensam alguns dos nossos patrícios de sangue que, por burrice ou por pequenez, negam a consanguinidade.
Estou a falar do Zezé. Para mim, o Zezé é uma referência pela sua verticalidade, simplicidade e sensatez. Ele é guardião de uma cultura soberba, de uma sabedoria ímpar; valoriza a inteligência e o conhecimento e reconhece com parcimónia quem os tem - adora ser mediador. É uma pessoa afável. É das poucas pessoas que ouço com atenção; sempre que estou com ele sinto-me honrado pelo tempo que me dispensa. Cala-me fundo, quando o ouço a dissertar e sobretudo faz-me rir, quando nos momentos mais acalorados me chama burro e diz que sou um nabo e que de música sou um zero à esquerda, exactamente o que digo dele aos outros tipos da família, aos que vivem lá em baixo na “província”. Está a ficar velho e noto nele a mossa do tempo a fazer efeito. Dantes gostava de jogar futebol, mas só ganhou juízo tarde, a tempo de levar, na semana que vem, uma facada no joelho, para lhe tirarem o menisco fracturado que o apoquenta. Diz-se por aí que joga golfe e que é um exímio jogador; eu não sei, mas acredito nessa informação que a Lígia Santos fez questão de me garantir antes de morrer. Ontem veio ter comigo aqui a minha casa; vinha a coxear pelo corredor adentro e trazia uma guitarra às costas, a fim de me vir apresentar as músicas que ensaiou a meu pedido, para ver se consigo dar toda a dignidade que merece o evento da apresentação do meu livro na Casa de Angola, no próximo dia dois de Março. Fomos almoçar ao restaurante “A Brasa”, pertinho da minha casa. Fez questão de pagar ele o almoço. É um prazer estar com ele à mesa. Comeu ovas grelhadas e bebeu água, porque anda a tomar medicamentos devido às dores no joelho. Excepcionalmente, comi meio bife do tamanho de um vitelo, regado por um bom vinho.
À mesa falámos de nós, da nossa vida. Lambemos por alto a complexidade das cabeças dos dezoito mundos que vivem na “província”, sem entrarmos na vida alheia. Ele sabe que eu não gosto disso, mas eu também sei que ele não se presta a tal. Juro que há muito que tenho a convicção de que ele é um leitor meu. Acho que valoriza muito as diversas valências que diz que tenho, entre as quais a capacidade de escrever.
Saídos do restaurante, enquanto coxeava, falava-me sobre a escrita e o dom da escrita e tentava tirar de mim uma explicação sobre os meus sentimentos, para entender a motivação da escrita e o que é que sente um escritor, quando publica um texto. Zezé quer entender a utopia e o lado mágico da escrita. Quer entender e viver por dentro, nem que seja por um segundo, a soberba magia de sonhar.
Perguntou-me concretamente: - Olha lá, o que é que tu sentes quando escreves, quando jogas com as palavras, o que sentes? Sentes que os textos deixam de ser teus quando os publicas? Como vês tu os textos que escreves depois de os publicar?
Tentei explicar-lhe que eu descrevo o meu estado de alma, descrevo as minhas emoções e sacudo as ideias que não cabem em mim; salientei que o meu objectivo é que alguém qualquer, ao ler o meu texto, se sinta identificado nele e com ele. Disse-lhe que me realizo bastante quando termino a arrumação das palavras, muitas vezes mais do que cem palavras e depois é o vazio, que dá lugar a que tudo comece de novo! Confessei-lhe que não gosto de autores que elaboram frases quadradas em textos ocos, com o fito na pomposidade das frases, que gritam ao mundo, de megafone nas mãos, as ideias bacocas.
Passámos ambos a tarde em minha casa, agarrados às violas. Confesso que afinal, nesta matéria, estou ligeiramente atrasado em relação a ele.
E lá se foi embora, à noitinha, coxeando pelo corredor fora, com as dores que o apoquentam e com o violão já cansado às costas. Fiquei contente pela visita e triste, porque o meu coração é pequenino para ficar com as dores dele. Ao meu Irmão Zezé prometo escrever sempre com alma e arrumar as letras de forma simples, de tal jeito que ele se convença sempre, ao ler-me , que as arrumei a pedido dele. Por ser meu irmão e meu amigo arrumei estas palavras para ele, com muito amor e carinho.
Adérito Barbosa in olhosemlente