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segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

A vendedora de patacas

 


Vi o vídeo no TikTok. Apareceu do nada como aparecem hoje as pragas modernas: bem iluminado, sorriso profissional, música de fundo, imagem de satélite a entrar pela terra dentro à velocidade da luz, e uma certeza absoluta que dispensa qualquer dúvida. A vendedora falava directamente para a câmara, naquele tom de quem não está a dar uma opinião, mas a revelar um segredo. Disse-me que, se vivo nas Caldas da Rainha, posso estar sentado numa mina de ouro. Não numa casa. Numa mina. Ouro. Pepitas. Fortuna enterrada debaixo do soalho.

Fiquei preocupado. Não pela valorização, mas pelo estado mental de quem transforma cidades em filões e pessoas em figurantes de uma corrida ao lucro.

Segundo a senhora, dados oficiais indicam que o valor das casas aumentou quase duzentos por cento. O quase é sempre conveniente: não se mede, não se prova, mas impressiona. É um número feito para masturbar a imaginação dos proprietários e excitar ganâncias. A seguir vem a sentença: mais de sessenta por cento dos proprietários não têm noção e acabam por vender por menos do que poderiam. Pobres ignorantes. Sentados sobre ouro sem saber usar a pá.

A solução surge de imediato, como em qualquer esquema respeitável: basta clicar em saber mais. É gratuito. Sem compromisso. Quase um acto de caridade. Até deixar de ser.

Este discurso não é inocente nem ingénuo. É um guião bem ensaiado. Primeiro cria-se a ilusão de riqueza escondida. Depois instala-se o medo de perder dinheiro. Por fim oferece-se o serviço salvador: eu sei quanto pedir. Tu não.

O que ninguém parece querer dizer — talvez porque estraga o negócio — é que os preços das casas não sobem sozinhos. Não acordam de manhã com vontade de valorizar. São pessoas que pedem mais. São intermediários que incentivam a pedir mais. São discursos repetidos até à exaustão que criam a sensação de que pedir menos é estupidez, quase traição.

No Oeste a bicharada anda à solta. E não é exagero. Toda a gente anda deslumbrada: proprietários, mediadores, comentadores de café e especialistas de redes sociais. Fala-se de metros quadrados como quem fala de criptomoedas. Tudo sobe, tudo valoriza, tudo é oportunidade. E quanto mais se repete, mais se normaliza.

As vendedoras do TikTok não vendem casas. Vendem expectativas inflacionadas. Vendem a ideia de que a casa não é um lugar para viver, mas um activo a espremer até ao limite. E fazem-no com um sorriso limpo, como se não tivessem qualquer responsabilidade no resultado final.

Mas têm. Têm muita.

Porque quando se convence uma massa crítica de proprietários de que vive sobre ouro, cria-se um mercado artificialmente pressionado. Todos pedem mais porque todos acham que podem pedir mais. O mercado deixa de reflectir rendimentos, contexto local ou realidade social. Passa a reflectir apenas ganância coordenada e medo de ficar para trás.

E depois fingimos surpresa quando ninguém consegue comprar casa. Fingimos que é uma força natural. Uma tempestade inevitável. O mercado está assim, dizem, como se não estivesse a ser alimentado todos os dias por discursos destes.

A pouca vergonha está precisamente aqui: na capacidade de dizer tudo isto em público e ainda se apresentar como especialista. Na normalização da ideia de que o problema não são preços obscenos, mas proprietários pouco ambiciosos. Na transformação da habitação num jogo de casino onde ganha quem já tem e perde quem precisa.

O tom é sempre o mesmo: pedagógico, quase maternal. Eu só quero ajudar. Ajudar quem? Não é quem precisa de casa. É quem pode pedir mais. Sempre mais. Porque há sempre um comprador imaginário disposto a pagar tudo. Porque alguém disse que sim. Porque o TikTok garante.

A casa deixa de ser casa. Passa a ser pepita. E quem questiona isto é logo acusado de não perceber o mercado, de ser invejoso, de viver no passado. Como se fosse antiquado achar indecente transformar um direito básico numa febre de burla legitimada.

Não, não estou sentado numa mina de ouro. Estou sentado numa cidade real, com pessoas reais, salários reais e problemas reais. E sou obrigado a assistir à transformação dessa cidade num filão explorável, onde a pouca vergonha se mascara de empreendedorismo e a irresponsabilidade se vende como conselho profissional.

A bicharada anda à solta no Oeste porque foi deixada. Porque dá dinheiro. Porque convém. E enquanto discursos como o daquela vendedora continuarem a ser tratados como normais, o mercado imobiliário continuará a empurrar pessoas para fora, com sorriso na cara e comissão no bolso.

E no fim, quando já ninguém consegue viver onde nasceu, ainda perguntam porque raio é que o vendedor de patacas anda a regular o preço das casas.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

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