Não foi por acaso que nada fizeram. A esquerda europeia, herdeira de uma culpa que já nem lhe pertence, vive obcecada com o reflexo da própria virtude. Encheram-se de palavras bonitas e esvaziaram-se de ideias firmes. Pregam a tolerância, mas não suportam a dissidência; defendem a liberdade, mas apenas a liberdade que se encaixa no seu vocabulário aprovado; e quando alguém ousa pensar fora da cartilha, é logo taxado de extremista, reacionário, populista ou outro insulto reciclado da moda. Tornaram-se burocratas da moral, gestores do pensamento, editores da linguagem. A guerra tornou-se-lhes incómoda, não porque os incomode a morte, mas porque lhes estraga o discurso de salão. Falar de sangue exige coragem, e a coragem é coisa que não se ensina nas conferências de Bruxelas.
Eu, que vivi o suficiente para ver as voltas que o mundo dá e as cambalhotas que a retórica dá com ele, olho para isto e rio-me. Passei 66 anos a ouvir gente a justificar a própria covardia com palavras bonitas. Vi políticos e académicos a enfeitar o vazio com adjetivos importados. Enquanto isso, os tais homens de má vontade, os que ainda chamam as coisas pelo nome, vão sendo empurrados para a margem, porque é mais cómodo viver num mundo onde o mal não tem nome e o inimigo é sempre relativo. Dizem-me que o meu discurso é duro, que o meu estilo choca, que uso expressões que baixam o nível da mensagem. Eu rio-me. O objectivo nunca foi agradar aos ouvidos delicados da plateia europeia, o meu objectivo é acordar os sonâmbulos. O palavrão que uso não é ofensa, é uma ferramenta. Serve para sacudir o torpor, para lembrar que há um mundo lá fora onde as palavras não salvam ninguém.
Esta semana sentei-me com dois irmãos meus, homens bons, inteligentes, decentes — e politicamente correctos até ao tutano. Discutimos Gaza, Israel, o sofrimento dos inocentes, o direito à defesa, a tragédia dos civis e a culpa que muda de lado conforme a estação. Um jarro cheio de lágrimas pelos palestinianos, outro com o argumento simples e cru de que quem começa uma guerra tem de saber que pode perdê-la. E enquanto falávamos, percebi que eles já não me ouviam: ouviam o eco das rádios, dos jornais, das televisões, das vozes alinhadas na mesma frequência da moral europeia. Acharam que eu era bruto por dizer que o Hamas atacou primeiro, que se esconde entre civis, que a guerra não é um poema. E quando lhes tentei explicar que a minha escrita é assim porque o mundo é assim, responderam-me com aquele sorriso piedoso de quem se acha no lado certo da história.
Foi então que percebi que o politicamente correcto não é apenas uma linguagem — é uma couraça mental. É o escudo com que se protege a boa consciência europeia para não ter de olhar o horror nos olhos. É a máscara que se põe para parecer civilizado enquanto se fecha os olhos à brutalidade que cresce à porta. E é por isso que a Europa já não tem pulsação. Perdeu a chama da ação, o instinto da defesa, o sentido da urgência. A Ucrânia foi engolida pelo relativismo diplomático, Gaza pela culpa colonial reciclada, e no fim ficam os comunicados, as velas acesas e os apelos à paz — sempre os apelos à paz — feitos por quem nunca sujou as mãos por nada.
Os meus irmãos, a quem quero bem e respeito, vivem em paz porque houve sempre alguém disposto a lutar para que pudessem viver assim. Gente bruta, talvez, mas necessária. É fácil ser pacifista quando outros fazem a guerra por ti. É fácil ser moralista quando o sangue é dos outros. E é por isso que não entro no peditório do politicamente correcto: não me apetece fingir que viver é um exercício de boas maneiras. A verdade é que o mundo não cabe nas palavras suaves com que a Europa tenta embalá-lo. A verdade é que há momentos em que o silêncio é cumplicidade, e a neutralidade é apenas cobardia com nome novo.
Os homens do politicamente correcto continuarão a declamar a paz nos cafés enquanto as bombas caem noutros fusos horários. Eu continuarei a escrever como falo, a dizer o que penso, a irritar quem prefere o verniz à verdade. Não por raiva, mas por amor — amor à lucidez, amor à palavra livre, amor aos meus irmãos, mesmo quando discordamos até à exaustão. Porque no fim de contas, a diferença entre nós é só uma: eles acreditam que o mundo muda com boas intenções; eu sei que o mundo só muda quando alguém tem coragem de dizer e fazer aquilo que não é bonito, mas real
Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

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