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terça-feira, 14 de outubro de 2025

neutralidade é apenas cobardia com nome novo.



Passei metade da vida a ouvir o coro desafinado do politicamente correcto, essa espécie de missa laica onde se reza pela cartilha do “não se pode dizer - não é bem assim - és radical - a guerra é uma construção - eu sou da paz e do amor universal”. E no meio dessa liturgia melosa a Europa foi-se esvaziando de coragem, perdeu o pulso, esqueceu-se do que é agir, deixou-se embalar na cantilena da moral de bolso e acabou esticado ao comprido diante das tragédias que agora finge lamentar. Gaza, Ucrânia, mas do Sudão zero, nem uma palavra. (Lá está, os gajos do Sudão são pretos, isso não interessa a ninguém). O mesmo enredo de sempre: discursos, cimeiras, resoluções que ninguém cumpre, comunicados de imprensa cheios de lágrimas virtuais e zero consequências reais. O politicamente correcto é a religião do conforto moral, e a Europa ajoelha-se todos os dias diante do altar do consenso, a pedir perdão por existir, enquanto o mundo lá fora arde.

Não foi por acaso que nada fizeram. A esquerda europeia, herdeira de uma culpa que já nem lhe pertence, vive obcecada com o reflexo da própria virtude. Encheram-se de palavras bonitas e esvaziaram-se de ideias firmes. Pregam a tolerância, mas não suportam a dissidência; defendem a liberdade, mas apenas a liberdade que se encaixa no seu vocabulário aprovado; e quando alguém ousa pensar fora da cartilha, é logo taxado de extremista, reacionário, populista ou outro insulto reciclado da moda. Tornaram-se burocratas da moral, gestores do pensamento, editores da linguagem. A guerra tornou-se-lhes incómoda, não porque os incomode a morte, mas porque lhes estraga o discurso de salão. Falar de sangue exige coragem, e a coragem é coisa que não se ensina nas conferências de Bruxelas.

Eu, que vivi o suficiente para ver as voltas que o mundo dá e as cambalhotas que a retórica dá com ele, olho para isto e rio-me. Passei 66 anos a ouvir gente a justificar a própria covardia com palavras bonitas. Vi políticos e académicos a enfeitar o vazio com adjetivos importados. Enquanto isso, os tais homens de má vontade, os que ainda chamam as coisas pelo nome, vão sendo empurrados para a margem, porque é mais cómodo viver num mundo onde o mal não tem nome e o inimigo é sempre relativo. Dizem-me que o meu discurso é duro, que o meu estilo choca, que uso expressões que baixam o nível da mensagem. Eu rio-me. O objectivo nunca foi agradar aos ouvidos delicados da plateia europeia, o meu objectivo é acordar os sonâmbulos. O palavrão que uso não é ofensa, é uma ferramenta. Serve para sacudir o torpor, para lembrar que há um mundo lá fora onde as palavras não salvam ninguém.

Esta semana sentei-me com dois irmãos meus, homens bons, inteligentes, decentes — e politicamente correctos até ao tutano. Discutimos Gaza, Israel, o sofrimento dos inocentes, o direito à defesa, a tragédia dos civis e a culpa que muda de lado conforme a estação. Um jarro cheio de lágrimas pelos palestinianos, outro com o argumento simples e cru de que quem começa uma guerra tem de saber que pode perdê-la. E enquanto falávamos, percebi que eles já não me ouviam: ouviam o eco das rádios, dos jornais, das televisões, das vozes alinhadas na mesma frequência da moral europeia. Acharam que eu era bruto por dizer que o Hamas atacou primeiro, que se esconde entre civis, que a guerra não é um poema. E quando lhes tentei explicar que a minha escrita é assim porque o mundo é assim, responderam-me com aquele sorriso piedoso de quem se acha no lado certo da história.

Foi então que percebi que o politicamente correcto não é apenas uma linguagem — é uma couraça mental. É o escudo com que se protege a boa consciência europeia para não ter de olhar o horror nos olhos. É a máscara que se põe para parecer civilizado enquanto se fecha os olhos à brutalidade que cresce à porta. E é por isso que a Europa já não tem pulsação. Perdeu a chama da ação, o instinto da defesa, o sentido da urgência. A Ucrânia foi engolida pelo relativismo diplomático, Gaza pela culpa colonial reciclada, e no fim ficam os comunicados, as velas acesas e os apelos à paz — sempre os apelos à paz — feitos por quem nunca sujou as mãos por nada.

Os meus irmãos, a quem quero bem e respeito, vivem em paz porque houve sempre alguém disposto a lutar para que pudessem viver assim. Gente bruta, talvez, mas necessária. É fácil ser pacifista quando outros fazem a guerra por ti. É fácil ser moralista quando o sangue é dos outros. E é por isso que não entro no peditório do politicamente correcto: não me apetece fingir que viver é um exercício de boas maneiras. A verdade é que o mundo não cabe nas palavras suaves com que a Europa tenta embalá-lo. A verdade é que há momentos em que o silêncio é cumplicidade, e a neutralidade é apenas cobardia com nome novo.

Os homens do politicamente correcto continuarão a declamar a paz nos cafés enquanto as bombas caem noutros fusos horários. Eu continuarei a escrever como falo, a dizer o que penso, a irritar quem prefere o verniz à verdade. Não por raiva, mas por amor — amor à lucidez, amor à palavra livre, amor aos meus irmãos, mesmo quando discordamos até à exaustão. Porque no fim de contas, a diferença entre nós é só uma: eles acreditam que o mundo muda com boas intenções; eu sei que o mundo só muda quando alguém tem coragem de dizer e fazer aquilo que não é bonito, mas real 


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

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