A maioria dos portugueses padece de uma ignorância quase absoluta no que toca a questões jurídicas. O país foi cuidadosamente moldado para que assim fosse. O juridiquês português é uma língua morta, feita por vivos, mas mortos de pudor. É o idioma perfeito para a opacidade, para o distanciamento entre quem faz as leis e quem sofre as leis.
O juridiquês português foi estudado pelos doutos do direito que, tendo passado fugazmente pela Assembleia da República, ali deixaram a sua marca — leis feitas à medida de si próprios e, sobretudo, dos seus pares.
O Ministério Público apropriou-se e deu-lhe uma roupagem à sua moda e tornou-se, nas últimas décadas, o verdadeiro poder efectivo da República. Não responde perante ninguém, não é eleito, não é fiscalizado, e, no entanto, governa o medo dos portugueses com mão de ferro. Quando decidem tramar um cidadão qualquer, tramam. Quando decidem interferir na política, interferem. Se for necessário derrubar um governo, fazem-no com a naturalidade de quem muda de toga. O povo, esse, assiste feliz porque tudo é ladrão, tudo é criminoso em portugal— e eu também fiquei estupefacto com a história macabra que fizeram a um juiz.
O problema é que a santidade do Ministério Público é uma invenção piedosa. Por trás do verniz da legalidade e do discurso da justiça, esconde-se uma estrutura corporativa, viciada, onde reina a impunidade. Quando um juiz se atreve a contrariar o curso de um processo, não falta quem o queira castigar. Investigam-no, escutam-no, seguem-no. Metem o nariz na vida privada dele e da família, como se a privacidade fosse um luxo proibido a quem ousa pensar de modo diferente.
E depois há a questão central: quem são estes magistrados? Quem os escolhe, quem os fiscaliza, a quem respondem? A resposta é simples: ninguém. São uma casta fechada, protegida por uma teia de influências, e blindada por um sindicato que se comporta mais como braço armado do poder judicial do que como associação laboral. O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, longe de defender condições de trabalho, dedica-se a justificar o injustificável, a branquear o abuso, a proteger os seus mesmo quando os seus se desviam da legalidade que juraram defender.
Os portugueses têm medo do Ministério Público. É um medo atávico, aprendido por gerações que cresceram a desconfiar do Estado, mas também a submeter-se a ele. É o medo do que não se entende — e o juridiquês serve exactamente esse propósito: tornar o cidadão pequeno, confuso, submisso. O português comum não sabe o que é um despacho, uma acusação, uma nulidade processual. Não sabe, e o sistema prefere que continue sem saber.
O paralelismo é inevitável: em todos os sectores onde impera o poder sem escrutínio, repete-se a mesma cultura de impunidade e de auto-protecção. No Ministério Público, protege-se o abuso de poder; e tudo o resto é silêncio. Vive-se da falta de escrutínio, sobrevive-se graças à ignorância e ao medo da população. E há aliados poderosos na comunicação social — no caso do MP, os cronistas de toga, jornalistas de ofício, sempre prontos a repetir o que lhes é soprado.
Entre eles destaca-se o inevitável escriba de serviço, o jornaleiro do costume, sempre na primeira fila a defender os seus heróis de toga. É ele quem molda a opinião pública, quem transforma suspeitas em certezas, e acusações em sentenças. Não há presunção de inocência quando o Ministério Público decide que é altura de fazer um exemplo. O julgamento faz-se no telejornal, a execução pública no prime-time. E se depois o tribunal absolver, já é tarde: o cidadão foi triturado, o nome arrastado, a vida destruída.
Portugal tornou-se um país onde o poder judicial é mais temido que o poder político. E isso, num Estado de Direito, é a confissão de um fracasso colectivo. O Ministério Público não devia ser o mandão de Portugal — devia ser o seu servidor. Devia zelar pelo cumprimento da lei, não manipular a lei para cumprir agendas. Devia agir com transparência, não com obscuridade. Devia responder pelos seus actos, e não esconder-se atrás da toga.
Enquanto isso, o cidadão comum continua desarmado. Enfrenta o mesmo muro: a máquina impessoal do Estado, surda ao sofrimento e cega à justiça. O país definha, não por falta de leis, mas por excesso delas. Não por ausência de instituições, mas por excesso de instituições que se protegem mutuamente.
Há décadas que se diz que Portugal precisa de uma reforma da justiça. Mas o que o país precisa, na verdade, é de uma reforma da decência. Precisa de responsabilizar quem abusa do poder, seja ele político ou magistrado. Precisa de devolver ao cidadão o direito de compreender as leis que o governam e o direito de ser tratado como ser humano, não como número de processo.
Enquanto isso não acontecer, continuaremos a ser governados pelo medo e pela indiferença. E o Ministério Público continuará a ser o espelho perfeito do país: arrogante, impune e doente.
Perante isto a reforma da justiça espera sentada.
Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

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