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domingo, 3 de junho de 2018

Idade e teimosias…


Tempo ameno, turistas aos magotes, tascas das ginjinhas numa azáfama que só visto - copinhos de ginjinha cheios sobem em direcção às gargantas e descem vazios para o tampo da mesa. Elas, mais rápidas do que eles, pedem mais outra rodada e soltam risadas - o álcool escondido atrás do doce torna as mulheres mais giras e desenvoltas.
São turistas, na sua maioria brasileiros, havendo também alemães, suecos, ingleses e espanhóis, a gozarem certamente das suas reformas, pela idade que aparentam ter.
Lojas de artesanato são tantas, que não dá para acreditar; toalhas de mesa, rendas de bilros, bordados, canecas, canequinhas, chapéus, bonés, bolsas e garrafas de licor de ginja para todos os gostos - há de tudo um pouco. Nenhum turista sai daqui sem levar uma recordação.  A vila situa-se dentro do portentoso castelo. A região de Óbidosi, segundo o roteiro turístico, posssui vinte e quatro hotéis e um sem fim de restaurantes, tendo sido considerada pela UNESCO uma cidade literária e parte integrante do programa Rede de Cidades Criativas.
O Castelo de Óbidos é uma das Sete Maravilhas de Portugal, o segundo dos sete monumentos mais relevantes do património arquitectónico português. A palavra Óbidos deriva do termo latino ópido que significa cidadela, cidade fortificada. A cidade terá sido erguida no tempo de César Augusto, no final do século I a.c. e sobreviveu até à segunda metade do século V. Alguns dos espaços foram posteriormente reocupados, como se verifica pela existência de dois edifícios medievais. As ruas, apesar de entupidas pela enorme massa humana, apresentam um asseio de fazer inveja.
Também sou turista por aqui, em igualdade de circunstâncias com os outros. Eles vieram de autocarro de turismo com guia do hotel, eu de autocarro também, mas sem guia. Vim na Rodoviária do Oeste, por indicação do barbeiro lá do meu burgo, que outro dia me dizia:
- Para Óbidos vai-se de autocarro, paga-se cerca de dois euros e são 10 minutinhos de viagem; bebe uns copos por lá e volta sossegado, longe dos olhares da GNR, que os gajos andam por aqui doidinhos, à caça das multas. 
Foi por essa sugestão que experimentei partir para a odisseia; só que o malandro do barbeiro esqueceu-se de me referir que o último autocarro era às 16 horas e para regressar a casa tive que vir de táxi, pela módica quantia de vinte euros. Na segunda-feira vou apresentar-lhe a factura do táxi…
Como turista, entrei numa tasca para emborcar também a famosa ginjinha. Mandei servir uma e depois outra. Chegou um indivíduo que também se sentou, numa mesa ao lado. Passados uns minutos apareceu do outro lado da rua outro indivíduo. Olhou, olhou e atravessou a rua na minha direcção, mas não, não era para mim, era para o tipo da mesa ao lado.
- Então Zé, há quanto tempo que não te via, pá! Estás bom, que fazes?
- Eu estou a trabalhar em Lisboa; saio de casa de madrugada e só chego à noite.
- Então quando é que te reformas?
- Com a merda do governo que temos e as leis sempre a mudar, ainda me faltam cinco anos.
- Eu também.
- A família está bem?
- A família está, eu é que ando com um problema aqui num pulmão. Sinto-me sempre cansado.
- Ó diabo, já foste ao médico?
- Já, ando a ser acompanhado por uma médica em Lisboa.
- Ó Zé, como é que deixaste essa coisa aparecer?
- Faço exames médicos regularmente pela empresa e desta vez deram conta deste problema.
- Desculpa lá ó Zé, desculpa que te diga, mas não fizeste, não! Se fizesses todos os anos, eles já tinham visto isso. Já fizeste TAC?
- Já, foi a TAC que revelou isso.
- Zé, desculpa lá, tu nunca fizeste TAC coisa nenhuma. Se calhar fizeste foi radiografias. Se tivesses feito TAC eles já tinham visto isso.
- Já te disse que todos os anos faço exames para controlar este problema. Agora é que agravou.
- Tens que tomar cuidado, Zé! Esse problema não é para brincadeira. Tens que dizer à tua médica que ela tem que te passar uma TAC. Se tivesses feito a TAC, hoje não tinhas problema nenhum.
Entretanto, foi aproximando-se devagarinho um Smart Fortwo. - Ó pai, vamos embora, que ainda tenho que ir para Lisboa fazer uma TAC às sete horas.
O Manuel despediu-se do Zé e dirigiu-se apressado em direcção à filha. Chegou ao meio da rua e voltou para trás: - Zé, tens que fazer uma TAC, pois com uma TAC eles vêem tudo. Não brinques com isso!
De regresso à freguesia, sentei-me na esplanada da sociedade recreativa, A Serrana, onde tudo acontece. Nenhum forasteiro passa despercebido quando lá entra e a mim ainda me olham com ar desconfiado. Em duas das três mesas à minha direita estavam sentados dois indivíduos, de pele curtida pela lavoura, cada um na casa dos setenta e cinco anos para cima, que falavam entre si e enquanto esperava pelo café, ia ouvindo:
... - Aquilo tem travão de mão eléctrico. Para destravar, tenho que abrir a mala do carro, tem um manípulo vermelho e destravo.
- Eh pá, isso não pode ser!
­­- Estou-te a dizer que é assim.
- Se calhar tentas destravar o carro com ele desligado. O meu também tem travão eléctrico e o do meu filho e da minha nora. Todos têm travão eléctrico. Ligamos o carro, carregamos no travão de pé que é para o carro não abalar, carrega-se no botão e ouve-se um ruído que é o carro a destravar.
- Pois o meu não! Para destravar tenho que abrir a mala e puxar um manípulo para destravar, porque se não, não abalo para lado nenhum. Os carros modernos são assim. É para evitar que a gatunagem nos leve os carros, tu não ouves as notícias? Continuaram a bater na mesma tecla e pelo que ouvi, acho que nunca vão chegar a um acordo.
Eis que chega outro indivíduo ao telefone, mas em alta voz, talvez com o Facetime ligado; do outro lado ouvia-se uma voz feminina com sotaque “meio franciú, meio portugais”. Talvez uma irmã, prima ou sobrinha que insistia:
- Tens de cá vir passar uma temporada connosco. Vens, que o Carlos vai buscar-te ao aeroporto. Nós vivemos a 80 km de Paris. Na França 80 kms não é nada, faz-se num instantinho a 180…
Ele continuava na dele:
- Não, eu não vou! Tu queres é controlar-me, estás sempre a telefonar; telefonas de meia em meia hora; tu queres é controlar-me! Olha lá, vocês aí nessa zona têm muitos coelhos? Eu não vou, nunca andei de avião, ainda aquela coisa cai! Não, deixa-me estar que eu estou bem. Sabes o que vai ser o meu jantar? Vai ser carapaus. Hoje levantei-me cedo, fui à lota e às seis da manhã já estava novamente em casa.
O dia deste fulano começa cedo; teimosias…
 É assim o passar dos dias na província… uma maravilha.

Adérito Barbosa in olhosemlente



1 comentário:

  1. É desta forma mesmo... um mar de turistas a beber a tal ginginha. E a perambular pelas ruas estreitas de casas pequeninas e caiadas. Lindo lugar. Chega a ser encantador.

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