poeta.adérito.barbosa.escritor.autor.escritor.artigos.opinião.política.livros.musica.curiosidades.cultura Olhosemlente

sábado, 25 de abril de 2020

Vida macabra

Vida macabra

BETP - O destino óbvio de todos os graduados, terminado o CFG, era ficar no Batalhão de Instrução e dar recruta - não fugi à regra.
Terminada essa missão, espetaram comigo na Companhia 311 no primeiro pelotão.
Passado pouco tempo, tive uma desavença grossa com um Alferes do mesmo pelotão e o Comandante de Companhia, na altura CAP/PQ Victor Santos, interveio em minha defesa, resolveu o caso internamente e transferiu-me para o pelotão de Apoio da 311; no PAP era calculador de tiro. A vida corria lindamente para mim; pertencia a uma companhia que era a menina bonita dos PARAQUEDISTAS.
Certo dia, num exercício de fogo com os morteiretes, pegámos fogo à mata junto ao pinhal. Aquilo meteu bombeiros, GNR, sirenes, tanques de água, tudo! METEU tudo! Foi uma tourada, uma confusão dos diabos! Apagada a fumaça e contados os pinheiros queimados, acharam por bem, então, correr comigo da 311.
Lembraram-se de me colocar na Secçao de Justiça, que por acaso (ou não?) ficava juntinho, paredes meias com o gabinete do Comandante.
Quando me apresentei, disse ao Major Caldeira que eu não percebia nada daquilo…
Começou a fazer festinhas no bigodinho dele, tipo Clark Gable e disse:
- Aqui no teu registo biográfico diz que frequentaste a Escola Militar. Se frequentaste a Escola Militar, então deves saber ler e escrever.
Deu-me imediatamente uma pilha de manuais, NEPS, código de justiça militar e sei lá mais o quê, para ler e estudar. Fiquei à rasca, com tantos livros para estudar código e disciplina militar. Para complicar, cruzei-me com o Comandante no corredor e ainda nem sequer me tinha sentado na secretária, quando ordenou:
- Amanhã quero o processo tal resolvido.
Aquilo obrigou-me a fazer horas extraordinárias, coisa de gente doida que não lembra ao diabo. Foi assim de uma forma forçada e pouco amistosa que tive que entrar no mundo justiceiro militar.
Por acaso dei-me bem com aquilo e fiquei lá alguns anos. Andava sempre de farda domingueira, raramente usava o camuflado. Certo dia ouvi o comandante falar na criação do coro da BETP. O Maestro era o Furriel Soares. O Soares tinha quase mil anos de posto  e dali não passava - era licenciado pelo Conservatório, se não me falha a memória. Um dia entrou o gajo na Secção de Justiça e perguntou-me se o nosso Comandante estava no gabinete.
Aproveitei e disse-lhe: - Ó Soares, eu quero ir para o coro, ouviste?
Bati à porta do gabinete do Comandante, anunciei que o Furriel Soares queria falar com ele, o Comandante autorizou a sua entrada e acrescentou:
- É por causa do coro; e tu já te inscreveste?
Palavras não eram ditas, já eu disparava:
- Soares, o nosso Comandante acabou de me mandar para o coro!
No primeiro dia do ensaio lá estava eu, armado em rouxinol. No dia seguinte, o Major, super mal disposto, perguntou pelos processos atrasados; encontrando-se muitos deles à espera de relatórios médicos, perícias e diabo a sete, estava alheio aos atrasos. Apesar disso, ele saiu-se com esta:
- Pois, agora andas armado em rouxinol e não há tempo para os processos!
Nunca mais tive notícias do coro. O maestro Soares e o seu adjunto Didi ensaiavam o coro às escondidas de mim, para eu não dar conta.
Dei comigo a pensar:
- Será que eles acharam que eu não tinha voz?
Fiquei tão traumatizado que nunca mais cantei na vida…


Adérito Barbosa in olhosemlente

Sem comentários:

Enviar um comentário

Publicação em destaque

Florbela Espanca, Correspondência (1916)

"Eu não sou como muita gente: entusiasmada até à loucura no princípio das afeições e depois, passado um mês, completamente desinter...