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segunda-feira, 28 de abril de 2025

É feio cuspir no prato onde comeu


Há muitos anos, esse senhor — hoje tão cheio de si — tentou tramar-me por causa de uma bolada nas partes que lhe dei, mas nem nisso teve talento. Eu era apenas um garoto indefeso; ele já sonhava em ser alguém e achou que eu seria o seu trampolim. Mas deu-se mal. Ou melhor, alguém lhe disse não.  

Hoje, é uma verdadeira tortura ouvi-lo doutrinar os portugueses, debitando sentenças com a pose de um general de província russa, esquecendo-se — ou fingindo esquecer — que construiu toda a sua vida à sombra da NATO, essa mesma aliança que agora renega com a habilidade oportunista de quem cospe no prato onde comeu.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

Crónica XIV - dedicado aos dois caramelos da foto. Ribeiro e Estratega


As voltas que a vida dá 

Nasci em Cabo Verde, mas cedo me vi no Continente. Fui parar à Casa do Gaiato, instituição religiosa onde reconheço ter tido sorte. Poucos ali entravam, os critérios eram exigentes: preferência aos casos mais bicudos. Um mestre-de-obras, o Sr. Teotónio, disse alto na quinta que eu era um miúdo esperto — e foi essa opinião que me abriu a porta.  

Entrei para a galeria de estudo. Tinha sonhos definidos, mas mutáveis: primeiro quis ser taxista, só pelo prazer de conhecer as ruas de Lisboa; depois médico, para endireitar os dentes que trazia maltratados de Cabo Verde; por fim engenheiro, para consertar os rádios velhos que se empilhavam ao lado da sala dos estudantes.

Cumpri os estudos e fui para a tropa. Treze anos. Longos, duros, quase todos difíceis. E, num ápice, estava fora da vida militar. Um acidente encerrou esse capítulo.  

Saí e regressei aos bancos da escola. Voltei ao princípio, como tantos. E, com esforço, tornei-me aquilo que em criança desejei: engenheiro. Consegui entrar numa multinacional. Um recomeço completo: a vida civil não tem paralelo com a vida de caserna.  

Reaprendi a estar no mundo. E também deixei de acreditar em Deus. Na Casa do Gaiato, impuseram-nos Deus à força: terços, missas, sermões infindáveis — muitas vezes ofensivos para com os nossos pais. Nunca nos deixaram procurar Deus, apenas engolir a versão deles. E assim me fiz ateu. Sem dramas.

Tive tudo o que um homem ambiciona: uma companheira, um trabalho relevante, a honra de lidar com tecnologia de ponta — aeroportos, comboios, redes eléctricas, escolas. Estive no centro do furacão que foi o surgimento dos cartões magnéticos escolares. Trabalhei com a Universidade de Aveiro e com a Católica. E, sim, por lá, pratiquei pequenos furtos — as bicas do professor Marcelo, que eu rapinava com método e sem arrependimento.

Houve resistência. Longas sessões com “professores”, os velhos do Restelo e pais desconfiados, para os convencer da utilidade da inovação. Mas o melhor foram sempre os alunos. Jovens entre os doze e os dezoito. Muitos, hoje adultos, reconhecem-me na rua e fazem questão de parar.  

Houve percalços. Um dia estacionei, por engano, no lugar do professor Cavaco Silva. Bastaram cinco minutos para o caos.  

Mas eu vinha de outro mundo. Só conhecia a tropa, onde se vivia de boatos e silêncios. O mundo cá fora exigia outro tipo de aprendizagem.  

Apesar de tudo, fui subindo. Cheguei a cargo de chefia. Nunca sonhei com isso. O cargo obrigou-me a crescer — a escutar, a pensar antes de falar. A dar espaço.  

A minha ambição ficou ali. A minha vontade esmoreceu. Trabalhar no mundo da automação foi um cansaço tremendo, mas também um prazer raro. Fiz o que sonhei. Poucos podem dizê-lo com verdade.  

Quando percebi que estava cansado de debates inúteis entre políticos franceses, espanhóis, italianos e portugueses, deixei o projecto europeu de energia. Senti que era altura de sair. Dei o lugar a outros.

Hoje, a minha vida é outra. Trato do cão Boris, do bode Chico, da gata Indy. O tempo passa devagar enquanto organizo um romance — sem pressas. A lida é com caracóis e ervas daninhas, com a análise da água do furo e o acender da churrasqueira, e cuidar para a barriga não crescer.  

As guitarras esperam. Já quase nem lhes toco. Por aqui, a música é coisa de profissão para a rapaziada que toca, e eu só a queria tocar por gosto e sem remuneração. Tentei fazer uma banda, mas ninguém quer tocar pelo prazer de tocar.  

É assim. Vivo assim, um dia de cada vez.  

Os caracóis sobem pelas paredes à velocidade da luz. E eu deito-os abaixo à velocidade da luz. E as ervas, que teimam… Mas aviso: não desisto. E também não desisto da amizade destes dois caramelos amigos há mais de 45 anos. Encontrámo-nos em Fátima na Quinta do Casalinho Farto, pela ocasião do Almoço da BOTP1 que o Serrano Rosa registou.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sábado, 19 de abril de 2025

Eu, a minha rua e o Hospital do Oeste – tragédia em vários actos e nenhuma obra

Mudei-me da Ericeira para o Bombarral. Forçado, é certo, mas de olho na paz e na tranquilidade, cedi à expressa vontade da minha mulher: - Bombarral vai ser bom e até vai haver um hospital e tudo. O tal Hospital do Oeste, de que tanto se fala. Dizia-me ela que o hospital estava quase, a caminho, já ali no horizonte. Sonhara com a cerimónia de inauguração e da cortagem da fita. Mal sabia eu que a única fita a ser cortada era a da minha paciência. O Hospital do Oeste é como o Pai Natal da saúde pública: toda a gente fala dele, mas nunca ninguém o viu. Afinal, o hospital prometido há décadas continua exactamente como a minha rua: no papel. E mesmo no papel os políticos aparecem de X em X anos com uma maqueta, umas imagens de PowerPoint e aquele olhar brilhante de quem viu a luz… de um flash. É sempre a mesma lengalenga: - Estamos em fase de estudo, está tudo planeado, é uma prioridade do Governo. Sim, prioridade… daquelas que se guardam na gaveta entre a reforma da justiça e a solução para o SNS.

Ora, a minha rua também está em estudo. Estuda-se há mais de um ano um poste de luz à entrada do meu portão. Uma epopeia digna de Homero. Enviei um e-mail à Câmara, cheio de vírgulas bem posicionadas, a pedir duas coisinhas modestas: um ponto de luz e um bocadinho de asfalto. Ou então, se não fosse pedir demais, que tapassem os buracos — só o suficiente para não tropeçar na escuridão ou afundar num deles quando levo o lixo.

E não é que me responderam? Uma raridade quase arqueológica. Responderam, sim senhor. O e-mail dizia:  Tomámos nota do seu pedido, o que muito agradecemos, blá blá blá, e encaminhámos o assunto do poste para o Departamento da Iluminação Pública — que, pelo nome, imagino estar sediado numa nave espacial algures em Saturno. Quanto à estrada, a resposta foi ainda mais poética:  Sobre a estrada que serve a sua rua, deverá dirigir-se à junta de freguesia, porque temos um protocolo firmado com a Junta para tapar buracos.  Traduzido entendi: essa coisa não é connosco! Encaminharam tudo como se estivéssemos a jogar pingue-pongue com responsabilidades — e eu, no meio, sou a bolinha. Mas, segundo o Presidente da Câmara, homem afável e cheio de convicções, o Bombarral é uma coisa de outro mundo: -  Câmara responde sempre, está ao serviço do povo. O problema é que, pelos vistos, eu não sou povo. Estou fora dessa definição. Talvez seja subpovo. Ou um figurante não creditado na novela bombarralense.

Ontem fui ao espelho, pus-me em cima da balança, para tentar perceber o que em mim está a falhar. O que vi meteu medo. O peso foi um deles: umas partes do corpo a crescer, outras a encolher — uma tragédia. O encolhimento… Olhei-me bem, de frente, de lado e de perfil. Lembrei-me do NIF, consultei o cartão de cidadão e, rapidamente, pareceu-me que estava tudo em ordem. Mas não. Não sou povo coisa nenhuma. Porque se fosse, a rua já estava com os buracos tapados e o poste aceso, porque se fosse, a Câmara já me tinha respondido com acção — não com e-mails genéricos.

E é aqui que percebo a semelhança assustadora entre o meu processo e o do Hospital do Oeste. Ambos partem da promessa e estacionam no vazio. Ambos envolvem estudos que nunca acabam, prazos que ninguém cumpre, prioridades que ninguém respeita. Ambos são empurrados ano após ano, governo após governo, com uma habilidade que faria inveja ao maior mentiroso do mundo Sr Abrie Krueger. O hospital e a minha rua são irmãos gémeos separados à nascença por falta de orçamento e pela paixão nacional por adiar. O hospital está quase-quase desde 2009. A minha rua também. E ambos têm algo em comum: são o espelho da gestão pública no seu estado mais puro — onde se diz muito e se faz pouco, onde se planeia tudo e se executa nada. O que me assusta não é a espera. É a mentira disfarçada de esperança. É a pose de serviço público que esconde o desleixo privado. É ver que se gastam milhões em estudos, em projectos, em cerimónias, e no fim… nem hospital, nem poste, nem estrada.Talvez o hospital esteja a ser construído na mesma fábrica onde produzem respostas da Câmara — aquela fábrica de promessas recicladas. Ou então está em alto mar, numa arca flutuante cheia de intenções, à deriva desde que alguém achou boa ideia prometer saúde sem ter capacidade para a entregar.

E há uma beleza trágica nisto tudo. O presidente da Câmara garante que o Bombarral é coisa de outro mundo. E tem razão. Porque neste mundo, quando se promete um hospital, normalmente constrói-se. Neste mundo, quando se pede um poste, instala-se. Quando se escreve uma carta, responde-se com algo que realmente se vá fazer. Mas no Bombarral vive-se num universo paralelo onde o tempo anda ao contrário e os pedidos da população evaporam-se no ar — provavelmente junto ao orçamento participativo. Fico a pensar: será que o hospital vai chegar antes do poste? Será que a minha rua vai ser asfaltada antes de eu precisar do hospital? Ou será que primeiro morro de um entorse nas crateras da minha rua e só aí, por respeito póstumo, me asfaltam o funeral? E, por fim, deixo uma sugestão. Já que o hospital e a Câmara andam no mesmo passo de caracol sonolento, proponho juntar os dois projectos. Que tal fazer o hospital na minha rua? Assim matam dois coelhos de uma vez: aproveitam a terra batida como ala ortopédica e o poste de luz pode servir de sala de espera. Eu até deixo espaço para uma maca no quintal. Afinal, sonhar é grátis. E, ao que parece, no Bombarral, é o que se faz melhor: sonhar…

Nota de rodapé: num jantar da alta sociedade da região Oeste, soube que a minha estrada nunca será asfaltada porque é considerada zona agrícola.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

Crónica XIII - dedicado à minha morte 19abril25 - Discurso antes da cremação


 É verdade, estou morto. Podem confirmar. Não respiro, não me mexo, e — finalmente — não falo. Para muitos, uma bênção tardia. Há quem diga que morri em paz. Mentira. Morri como vivi: com cara de quem não deve, mas teme.  Passei por cá para um último momento de protagonismo. Não porque me importo, mas porque sei que isto de morrer é um evento social. E como tudo que é social, está cheio de hipócritas, curiosos e só não vieram as tias porque nunca tive tias. Mas desenganem-se os que acham que um morto é inútil. Errado. Em vida também fui bastante inútil. Fiz pouco, quase tudo mal, e o que fiz de bom foi por engano. Fui-me arrastando pela vida como quem vai ao ginásio só para usar a sauna. E ainda assim, consegui deixar mágoas, e muitas dúvidas a muita gente - que se lixem — morto já não sou um presente envenenado e isso é porreiro.

Agora que o corpo já não serve para nada, dou-o de presente à cremação. Que façam bom lume, que aqueça pelo menos o ar frio da sala. Não me verão em caixão aberto — já bastou a minha cara em vida. E se por acaso alguém soltar uma lágrima, que seja de riso. Porque se há coisa que eu odiava, era gente a chorar em público. Aos que vieram, bem-vindos. Aos que não vieram, parabéns pelo bom gosto que tiveram. Sei que há aqui uns quantos que gostavam de mim, ou pelo menos fingiam bem. Também sei que há dois ou três canalhas que só estão cá para confirmar que não volto mais. Fiquem descansados: a única coisa que levanto agora é fumo. Vivi sem fé, sem rumo, e com uma confiança que não sei de onde vinha. Nunca acreditei em Deus — nem sequer quando me deu jeito. Fui pecador de carreira, sem confessionário, sem perdão. E sabem que mais? Fui feliz assim. Entre copos e vida nocturna. Fui homem de muitas mulheres — não porque fosse especial, mas porque tive o dom raro de dizer “amo-te” sem me rir. Cada uma guardou o que quis de mim: umas o cheiro, outras a desilusão. Mas nunca, nunca me esqueci de nenhuma delas, nem dos nomes.  

Honesto, sempre fui. Disse sempre que não prestava. Não enganei ninguém — só quem quis ser enganado. Nunca fiz juras eternas, porque sempre achei que o “para sempre” dura pouco.  Tinha jeito para o engate e zero talento para manter. Mas vá, cada um faz o que pode com as armas que tem. Eu jogava com o charme e conversa fiada, tipo vendedor de colchas na feira da Malveira. E resultava… às vezes era uma tragédia.


Não deixo fortuna, deixo histórias em prosas. Algumas mais sujas que a consciência de um político em campanha. Deixo também as minhas guitarras cheias de pó, de sarro de tabaco, de pecados, e uns papéis velhos que ninguém vai querer ler — talvez um ou outro poema maldito, escrito entre trago de whisky e noites de insónia. E sim, deixo-vos o meu corpo. Não porque quero, mas porque não tenho outro remédio. Portanto fogo com ele! As chamas que me devorem como a morte apagou os meus neurónios. Mas não esperem cinzas poéticas, nem espírito a pairar. Se for para voltar, que seja em forma de penico: pelo menos ainda terei alguma utilidade. Se estão aqui hoje, riam. Riam como eu ria das minhas próprias desgraças. Este velório não é missa de sétimo dia, é despedida de um malandro. E que malandro! Um malandro que se preze não se leva a sério — nem morto. Por isso, falem mal de mim à vontade. Mas falem com estilo. Que eu cá prefiro ser lembrado como o cabrão que fez rir, do que como o coitadinho que se foi cremar triste e sozinho. E quando tudo isto acabar, e as cinzas forem pó no vento ou num frasco qualquer, pensem em mim como alguém que viveu do avesso — e ainda assim teve a lata de ser feliz.

Agora sim, podem acender o forno. E por favor, que não seja a gás… que sempre fui mais homem de carvão.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Portugal paga para eles mandarem foder o português.


 Aposto que poucos portugueses sabem disto. Mas calma, não precisam de me chamar teórico da conspiração – para evitar confusões, incluo as fontes directas. Assim, qualquer pardal que apareça com conversa fiada tem onde ir confirmar.  Ora bem, Portugal comprometeu-se a despejar 95 milhões de euros em Cabo Verde ao longo do Programa Estratégico de Cooperação (PEC) 2022-2026. O pacote cobre setores como educação, saúde, segurança, economia e infraestruturas conforme link que se segue. [oai_citation:1,Portugal e Cabo Verde assinam novo plano de cooperação até 2026](https://culturaportugal.gov.pt/pt/saber/2022/03/portugal-e-cabo-verde-assinam-novo-plano-de-cooperacao-ate-2026/). Muito bonito no papel. Mas na prática, parece que o dinheiro tem sido usado para empurrar o “crioulo” para dentro das escolas e mandar o português borda fora. Sim, aquele mesmo português que abriu a Cabo Verde as portas do mundo e que continua a ser a língua oficial do país.  Claro que isto não é novidade. Há anos que certos círculos tentam empurrar a ideia de que o português é um corpo estranho em Cabo Verde e que a verdadeira identidade do arquipélago passa pelo crioulo. Mas agora a questão é outra: quem é que está a pagar esta transição? Ora, ao que parece, somos nós.  

Portugal, sempre magnânimo, ainda perdoou 12 milhões de euros da dívida cabo-verdiana, convertendo o valor num fundo para a “transição climática” conforme o link que se segue [oai_citation:2,Portugal apoia transição ambiental e energética de Cabo Verde - XXIII Governo - República Portuguesa](https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i=portugal-apoia-transicao-ambiental-e-energetica-de-cabo-verde). Se Cabo Verde depois decide investir essa folga orçamental na promoção do crioulo e na desvalorização do português, problema deles – mas pago com o nosso dinheiro. E há mais: em 2022, Portugal ainda transferiu 580 mil euros de apoio humanitário, mais 500 mil euros de reforço ao Orçamento do Estado cabo-verdiano [oai_citation:3,Governo português disponibiliza mais de 580 mil euros em apoio humanitário para Cabo Verde - XXIII Governo - República Portuguesa](https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i=governo-portugues-disponibiliza-mais-de-580-mil-euros-em-apoio-humanitario-para-cabo-verde).  

Agora, aqui entra a ironia: Portugal despeja dinheiro em Cabo Verde e, em troca, recebe um grande pontapé na língua portuguesa. Os miúdos aprendem crioulo na escola, mas quando querem prosseguir estudos vêm para Portugal, onde entram nas faculdades sem exames ou testes de admissão. Chegam cá e… surpresa! Não sabem falar português, não sabem escrever português, e não entendem nada de nada. Mas passam, porque ninguém quer tocar no vespeiro da “cooperação” e da “inclusão”. Depois regressam ao arquipélago para continuar a mesma política: promover o crioulo para os filhos dos pobres.  É caso para perguntar: Portugal está a financiar a cooperação ou a própria irrelevância da sua língua num dos seus parceiros históricos? No fundo, Cabo Verde faz o que quer – e Portugal paga.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

A mesma vida noutro tempo.

“Tenho saudades dos tempos em que, no Liceu, havia os burros, os gordos, os caixas de óculos, os sonsinhos, os pretos, os chineses, o indiano, o artolas, os maricas e os lingrinhas. Os burros chumbavam, não se tornavam doutores como hoje em dia. A fasquia era definida pelo marrão da turma, não era nivelada por baixo, como agora, com essa merda de que somos todos iguais – diz-se.  Antes, não parecia que fôssemos iguais. O gordo também tinha notas brutais e ninguém sabia como; talvez porque o gajo não jogava à bola. O caixa de óculos tinha um sentido de humor inigualável, mas não fazia corridas – o gajo tinha medo de cair. O preto jogava à bola como ninguém e fazia umas fintas dos diabos; tinha um cabedal do caraças, fora do comum. O chinês tinha vindo de outra escola, sabia à brava inglês e tinha histórias que não lembrava a ninguém.  Cada um tinha um defeito – eu, por exemplo, era conhecido por "crioula". Sempre que chamavam "crioula", havia batatada. Não gostava de ser comparado às bonitonas crioulas. Lutei até que se esqueceram dessa alcunha. Ter uma alcunha diferente era fixe. A diferença era vista com bons olhos. Agora, tudo ou é bullying, ou racismo, ou xenofobia, ou opressão, ou assédio, ou violência.  

Antigamente, quando se era mesmo racista, levava-se um chapadão na tromba e aprendia-se logo que o preto era como os outros – apenas tinha cor diferente. E não era bullying. Era viver e aprender. Era duro. Às vezes, em casa também se aprendia à chapada.  O menino insosso passava despercebido e sentia-se sozinho. E aprendíamos uma coisa importante: a rir-nos de nós próprios – não a chorar porque alguém nos chamou nomes. Assumia-se a gordura, o esquelético, o caixa de óculos e tudo o mais que nos chamassem. Mas quando não se estava bem, quando não se gostava da alcunha, fazia-se uma coisa importante: mudava-se, lutava-se por acabar com ela. Não se culpavam os outros nem a sociedade. Não se faziam queixinhas. E falhava-se. Muitas vezes. E, cada vez que falhávamos, ficávamos mais fortes. E sabíamos que era assim. Que havia uns que conseguiam, outros que ficavam para trás. Que havia quem vencia e quem falhava.  Agora, não… Todos somos iguais. Há mesmo a chamada igualdade de género. Todos somos bons, todos merecemos, todos temos as mesmas oportunidades, todos devemos até ganhar o mesmo, todos somos vítimas, todos somos oprimidos… e todos somos parvos. Porque aceitamos este ambiente do politicamente correto sem dizer nada. E até devemos dizer que somos "normais". Segundo o novo paradigma social, devem ter muito cuidado comigo, porque:  

– Sou velho, tenho mais de 65 anos, o que faz de mim um tolo improdutivo que gasta estupidamente os recursos do Estado.  

– Nasci mulato, o que me tornou um coitado, vítima das merdas dos brancos, dos pretos e dos amarelos.  

– Não voto na esquerda radical, o que me torna fascista.  

– Sou hétero, o que me torna um homofóbico.  

– Possuo casa própria, o que me tornou um proprietário rico e, agora, um latifundiário.  

– Adoto “foie gras” carne de caça, peixe do mar e cordeiro de leite, o que me torna um abusador de animais.  

– Sou cristão não praticante, sou um infiel aos olhos de milhões de muçulmanos.  

– Não concordo com tudo o que o Governo faz, o que me torna um reacionário, e até acham que me devo calar.  

– Gosto de ver mulheres bonitas, bem vestidas (ou despidas), ou superdecotadas, o que me torna um tipo capaz de assediar.  

– Valorizo a minha identidade portuguesa e a minha cultura europeia e ocidental, o que me torna um xenófobo.  

– Gostaria de viver em segurança e ver os infratores na prisão, o que me torna um desrespeitador dos direitos fundamentais protegidos.  

– O meu carro é a diesel, o que me torna um poluidor, responsável pelo aumento de CO₂.  Apesar de todos estes defeitos, acho que ainda sou feliz… Era mais, antes da pandemia. Aquela cena das vacinas lixou-me completamente a imunidade. Agora sofro com uma coisa que os entendidos chamam doença autoimune.  

Todos os dias engulo uns comprimidos e a vida segue, sem as modernices do politicamente correto.”


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"Eu não sou como muita gente: entusiasmada até à loucura no princípio das afeições e depois, passado um mês, completamente desinter...