As voltas que a vida dá
Nasci em Cabo Verde, mas cedo me vi no Continente. Fui parar à Casa do Gaiato, instituição religiosa onde reconheço ter tido sorte. Poucos ali entravam, os critérios eram exigentes: preferência aos casos mais bicudos. Um mestre-de-obras, o Sr. Teotónio, disse alto na quinta que eu era um miúdo esperto — e foi essa opinião que me abriu a porta.
Entrei para a galeria de estudo. Tinha sonhos definidos, mas mutáveis: primeiro quis ser taxista, só pelo prazer de conhecer as ruas de Lisboa; depois médico, para endireitar os dentes que trazia maltratados de Cabo Verde; por fim engenheiro, para consertar os rádios velhos que se empilhavam ao lado da sala dos estudantes.
Cumpri os estudos e fui para a tropa. Treze anos. Longos, duros, quase todos difíceis. E, num ápice, estava fora da vida militar. Um acidente encerrou esse capítulo.
Saí e regressei aos bancos da escola. Voltei ao princípio, como tantos. E, com esforço, tornei-me aquilo que em criança desejei: engenheiro. Consegui entrar numa multinacional. Um recomeço completo: a vida civil não tem paralelo com a vida de caserna.
Reaprendi a estar no mundo. E também deixei de acreditar em Deus. Na Casa do Gaiato, impuseram-nos Deus à força: terços, missas, sermões infindáveis — muitas vezes ofensivos para com os nossos pais. Nunca nos deixaram procurar Deus, apenas engolir a versão deles. E assim me fiz ateu. Sem dramas.
Tive tudo o que um homem ambiciona: uma companheira, um trabalho relevante, a honra de lidar com tecnologia de ponta — aeroportos, comboios, redes eléctricas, escolas. Estive no centro do furacão que foi o surgimento dos cartões magnéticos escolares. Trabalhei com a Universidade de Aveiro e com a Católica. E, sim, por lá, pratiquei pequenos furtos — as bicas do professor Marcelo, que eu rapinava com método e sem arrependimento.
Houve resistência. Longas sessões com “professores”, os velhos do Restelo e pais desconfiados, para os convencer da utilidade da inovação. Mas o melhor foram sempre os alunos. Jovens entre os doze e os dezoito. Muitos, hoje adultos, reconhecem-me na rua e fazem questão de parar.
Houve percalços. Um dia estacionei, por engano, no lugar do professor Cavaco Silva. Bastaram cinco minutos para o caos.
Mas eu vinha de outro mundo. Só conhecia a tropa, onde se vivia de boatos e silêncios. O mundo cá fora exigia outro tipo de aprendizagem.
Apesar de tudo, fui subindo. Cheguei a cargo de chefia. Nunca sonhei com isso. O cargo obrigou-me a crescer — a escutar, a pensar antes de falar. A dar espaço.
A minha ambição ficou ali. A minha vontade esmoreceu. Trabalhar no mundo da automação foi um cansaço tremendo, mas também um prazer raro. Fiz o que sonhei. Poucos podem dizê-lo com verdade.
Quando percebi que estava cansado de debates inúteis entre políticos franceses, espanhóis, italianos e portugueses, deixei o projecto europeu de energia. Senti que era altura de sair. Dei o lugar a outros.
Hoje, a minha vida é outra. Trato do cão Boris, do bode Chico, da gata Indy. O tempo passa devagar enquanto organizo um romance — sem pressas. A lida é com caracóis e ervas daninhas, com a análise da água do furo e o acender da churrasqueira, e cuidar para a barriga não crescer.
As guitarras esperam. Já quase nem lhes toco. Por aqui, a música é coisa de profissão para a rapaziada que toca, e eu só a queria tocar por gosto e sem remuneração. Tentei fazer uma banda, mas ninguém quer tocar pelo prazer de tocar.
É assim. Vivo assim, um dia de cada vez.
Os caracóis sobem pelas paredes à velocidade da luz. E eu deito-os abaixo à velocidade da luz. E as ervas, que teimam… Mas aviso: não desisto. E também não desisto da amizade destes dois caramelos amigos há mais de 45 anos. Encontrámo-nos em Fátima na Quinta do Casalinho Farto, pela ocasião do Almoço da BOTP1 que o Serrano Rosa registou.
Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com
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