“Tenho saudades dos tempos em que, no Liceu, havia os burros, os gordos, os caixas de óculos, os sonsinhos, os pretos, os chineses, o indiano, o artolas, os maricas e os lingrinhas. Os burros chumbavam, não se tornavam doutores como hoje em dia. A fasquia era definida pelo marrão da turma, não era nivelada por baixo, como agora, com essa merda de que somos todos iguais – diz-se. Antes, não parecia que fôssemos iguais. O gordo também tinha notas brutais e ninguém sabia como; talvez porque o gajo não jogava à bola. O caixa de óculos tinha um sentido de humor inigualável, mas não fazia corridas – o gajo tinha medo de cair. O preto jogava à bola como ninguém e fazia umas fintas dos diabos; tinha um cabedal do caraças, fora do comum. O chinês tinha vindo de outra escola, sabia à brava inglês e tinha histórias que não lembrava a ninguém. Cada um tinha um defeito – eu, por exemplo, era conhecido por "crioula". Sempre que chamavam "crioula", havia batatada. Não gostava de ser comparado às bonitonas crioulas. Lutei até que se esqueceram dessa alcunha. Ter uma alcunha diferente era fixe. A diferença era vista com bons olhos. Agora, tudo ou é bullying, ou racismo, ou xenofobia, ou opressão, ou assédio, ou violência.
Antigamente, quando se era mesmo racista, levava-se um chapadão na tromba e aprendia-se logo que o preto era como os outros – apenas tinha cor diferente. E não era bullying. Era viver e aprender. Era duro. Às vezes, em casa também se aprendia à chapada. O menino insosso passava despercebido e sentia-se sozinho. E aprendíamos uma coisa importante: a rir-nos de nós próprios – não a chorar porque alguém nos chamou nomes. Assumia-se a gordura, o esquelético, o caixa de óculos e tudo o mais que nos chamassem. Mas quando não se estava bem, quando não se gostava da alcunha, fazia-se uma coisa importante: mudava-se, lutava-se por acabar com ela. Não se culpavam os outros nem a sociedade. Não se faziam queixinhas. E falhava-se. Muitas vezes. E, cada vez que falhávamos, ficávamos mais fortes. E sabíamos que era assim. Que havia uns que conseguiam, outros que ficavam para trás. Que havia quem vencia e quem falhava. Agora, não… Todos somos iguais. Há mesmo a chamada igualdade de género. Todos somos bons, todos merecemos, todos temos as mesmas oportunidades, todos devemos até ganhar o mesmo, todos somos vítimas, todos somos oprimidos… e todos somos parvos. Porque aceitamos este ambiente do politicamente correto sem dizer nada. E até devemos dizer que somos "normais". Segundo o novo paradigma social, devem ter muito cuidado comigo, porque:
– Sou velho, tenho mais de 65 anos, o que faz de mim um tolo improdutivo que gasta estupidamente os recursos do Estado.
– Nasci mulato, o que me tornou um coitado, vítima das merdas dos brancos, dos pretos e dos amarelos.
– Não voto na esquerda radical, o que me torna fascista.
– Sou hétero, o que me torna um homofóbico.
– Possuo casa própria, o que me tornou um proprietário rico e, agora, um latifundiário.
– Adoto “foie gras” carne de caça, peixe do mar e cordeiro de leite, o que me torna um abusador de animais.
– Sou cristão não praticante, sou um infiel aos olhos de milhões de muçulmanos.
– Não concordo com tudo o que o Governo faz, o que me torna um reacionário, e até acham que me devo calar.
– Gosto de ver mulheres bonitas, bem vestidas (ou despidas), ou superdecotadas, o que me torna um tipo capaz de assediar.
– Valorizo a minha identidade portuguesa e a minha cultura europeia e ocidental, o que me torna um xenófobo.
– Gostaria de viver em segurança e ver os infratores na prisão, o que me torna um desrespeitador dos direitos fundamentais protegidos.
– O meu carro é a diesel, o que me torna um poluidor, responsável pelo aumento de CO₂. Apesar de todos estes defeitos, acho que ainda sou feliz… Era mais, antes da pandemia. Aquela cena das vacinas lixou-me completamente a imunidade. Agora sofro com uma coisa que os entendidos chamam doença autoimune.
Todos os dias engulo uns comprimidos e a vida segue, sem as modernices do politicamente correto.”
olhosemlente.blogspot.com
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