É verdade, estou morto. Podem confirmar. Não respiro, não me mexo, e — finalmente — não falo. Para muitos, uma bênção tardia. Há quem diga que morri em paz. Mentira. Morri como vivi: com cara de quem não deve, mas teme. Passei por cá para um último momento de protagonismo. Não porque me importo, mas porque sei que isto de morrer é um evento social. E como tudo que é social, está cheio de hipócritas, curiosos e só não vieram as tias porque nunca tive tias. Mas desenganem-se os que acham que um morto é inútil. Errado. Em vida também fui bastante inútil. Fiz pouco, quase tudo mal, e o que fiz de bom foi por engano. Fui-me arrastando pela vida como quem vai ao ginásio só para usar a sauna. E ainda assim, consegui deixar mágoas, e muitas dúvidas a muita gente - que se lixem — morto já não sou um presente envenenado e isso é porreiro.
Agora que o corpo já não serve para nada, dou-o de presente à cremação. Que façam bom lume, que aqueça pelo menos o ar frio da sala. Não me verão em caixão aberto — já bastou a minha cara em vida. E se por acaso alguém soltar uma lágrima, que seja de riso. Porque se há coisa que eu odiava, era gente a chorar em público. Aos que vieram, bem-vindos. Aos que não vieram, parabéns pelo bom gosto que tiveram. Sei que há aqui uns quantos que gostavam de mim, ou pelo menos fingiam bem. Também sei que há dois ou três canalhas que só estão cá para confirmar que não volto mais. Fiquem descansados: a única coisa que levanto agora é fumo. Vivi sem fé, sem rumo, e com uma confiança que não sei de onde vinha. Nunca acreditei em Deus — nem sequer quando me deu jeito. Fui pecador de carreira, sem confessionário, sem perdão. E sabem que mais? Fui feliz assim. Entre copos e vida nocturna. Fui homem de muitas mulheres — não porque fosse especial, mas porque tive o dom raro de dizer “amo-te” sem me rir. Cada uma guardou o que quis de mim: umas o cheiro, outras a desilusão. Mas nunca, nunca me esqueci de nenhuma delas, nem dos nomes.
Honesto, sempre fui. Disse sempre que não prestava. Não enganei ninguém — só quem quis ser enganado. Nunca fiz juras eternas, porque sempre achei que o “para sempre” dura pouco. Tinha jeito para o engate e zero talento para manter. Mas vá, cada um faz o que pode com as armas que tem. Eu jogava com o charme e conversa fiada, tipo vendedor de colchas na feira da Malveira. E resultava… às vezes era uma tragédia.
Não deixo fortuna, deixo histórias em prosas. Algumas mais sujas que a consciência de um político em campanha. Deixo também as minhas guitarras cheias de pó, de sarro de tabaco, de pecados, e uns papéis velhos que ninguém vai querer ler — talvez um ou outro poema maldito, escrito entre trago de whisky e noites de insónia. E sim, deixo-vos o meu corpo. Não porque quero, mas porque não tenho outro remédio. Portanto fogo com ele! As chamas que me devorem como a morte apagou os meus neurónios. Mas não esperem cinzas poéticas, nem espírito a pairar. Se for para voltar, que seja em forma de penico: pelo menos ainda terei alguma utilidade. Se estão aqui hoje, riam. Riam como eu ria das minhas próprias desgraças. Este velório não é missa de sétimo dia, é despedida de um malandro. E que malandro! Um malandro que se preze não se leva a sério — nem morto. Por isso, falem mal de mim à vontade. Mas falem com estilo. Que eu cá prefiro ser lembrado como o cabrão que fez rir, do que como o coitadinho que se foi cremar triste e sozinho. E quando tudo isto acabar, e as cinzas forem pó no vento ou num frasco qualquer, pensem em mim como alguém que viveu do avesso — e ainda assim teve a lata de ser feliz.
Agora sim, podem acender o forno. E por favor, que não seja a gás… que sempre fui mais homem de carvão.
Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com
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