Sou, hoje, um dos grandes sábios do meu tempo. Sei tudo, comento tudo, opino sobre o que conheço e, sobretudo, sobre o que não faço a menor ideia. Acordo e, mal abro os olhos, já estou pronto a deixar a minha marca na Humanidade — com um scroll e dois comentários sobre temas que mal sei pronunciar.
Tenho um telemóvel e uma ligação miserável à internet: é quanto basta para me sentir preparado para discutir desde geopolítica a misticismo quântico, passando por vacinas, inflação, meteorologia, ortografia comparada e, claro, corrupção portuguesa — e ainda tenho tempo para me armar em perito do acidente do Lamborghini em Espanha.
Vou a um exemplo: eu digo alto e bom som que Sócrates é corrupto, mas não sei explicar bem porquê. O Ministério Público também não sabe explicar, por isso há dez anos que os gajos andam às turras — mas eu sei, vi algures no Facebook e não preciso de mais. Se há coisa que aprendi com a internet foi a dispensar provas evidentes — basta-me ligar a CMTV ou CNNPortugal.
Também sei que os políticos são todos ladrões. Não sei bem o que roubam — eu acho que há uns cinco ou seis, ou vinte escalões de IRS — e se me pedissem para fazer uma simulação de imposto, borrava a folha toda. Mas que eles nos estão a roubar para dar aos ricos, estão. É evidente, está tudo feito. Vi num vídeo com um tipo aos gritos numa manifestação, com uma tabela do IRS às costas e um cartaz no fundo a dizer "ladrões".
Nunca na vida li um tratado sobre economia, mas dou conselhos fiscais no Facebook como se tivesse saído ontem do ISEG. Não percebo a diferença entre RNA e ADN, mas já escrevi vários textos sobre os perigos da vacinação. Mal sei escrever português decente, mas dou lições de gramática a quem me aparece pela frente. A minha fonte de informação? Um vídeo com música de fundo e legendas mal escritas. Se tem muitos gostos, é porque é verdade — certo?
E se há coisa em que me especializei foi em fingir que não sou ignorante. Porque o meu telemóvel, esse pequeno altar da minha vaidade, faz de mim um génio por breves minutos. Dou por mim a citar Aristóteles sem saber quem foi, a falar de inflação sem saber fazer uma regra de três simples. Clico, partilho, indigno-me, escrevo frases carregadas de certezas sobre assuntos que nem sei pronunciar. E o mais bonito? Faço tudo isto com a confiança inabalável de um catedrático com pós-graduação em coisa nenhuma.
Mas não estou sozinho. Faço parte de um exército cada vez maior: os pobres, os menos instruídos, os analfabetos funcionais — como eu. Gente como eu, que nunca teve acesso a muita coisa, mas que agora, com um telefone na mão, se sente finalmente no topo da pirâmide. Igual ao doutor. Ou melhor. Porque o doutor estudou, mas eu vi dois vídeos de cinco minutos no TikTok, com gráficos e tudo. E, ao contrário dele, eu não me deixo enganar pela ciência. Eu pesquiso. No Facebook. De madrugada. Mesmo com sono.
Claro que isso tem o seu preço. A desinformação começa a fazer ricochete. Aponta-se para fora, mas acerta sempre nos mesmos: nós próprios. Somos os primeiros a acreditar em teorias absurdas, os primeiros a partilhar notícias falsas, os primeiros a cair nas armadilhas de quem sabe mais — e usa esse saber para nos manipular. Mas seguimos, firmes e confiantes, como se fôssemos iluminados por um saber que não temos. E quanto menos sabemos, mais opinamos.
A certa altura, deixei de perguntar. Passei a afirmar. Já não me interessa saber como funciona uma coisa — interessa-me dizer aos outros que está mal. Não interessa compreender uma ideia — interessa-me indignar-me com ela. A dúvida morreu, e com ela a possibilidade de aprender. Agora é tudo certeza. Li algures. Alguém me disse. Está num vídeo com muitos comentários. É factual, portanto.
A língua portuguesa que me perdoe. Se Camões visse os meus textos no blog olhosemlente.blogspot.com, atirava o livro à água, atirava-se ao Tejo outra vez só para salvar o livro e corrigir frases sem pés nem cabeça, erros de palmatória, palavras inventadas, anglicismos a mais e sentido a menos. Mas, mesmo assim, continuo, porque agora tenho inteligência artificial que corrige o que escrevo. Ou, pelo menos, tenta. A pontuação pode ficar mais direitinha, mas o disparate continua lá todinho.
E claro, como bom ignorante que sou, tenho palco. Posso ser ministro, juiz, professor, epidemiologista, historiador, polícia, polícia outra vez ou mesmo ladrão — tudo no mesmo dia, bastando para isso ligar o telefone e abrir a boca. Digo as maiores barbaridades com orgulho, como se estivesse a prestar um serviço público. Sou um emissor de ignorância em alta definição. E como ninguém me contradiz — ou, se o fazem, eu bloqueio — sinto-me cada vez mais sábio.
O mais assustador? É que esta ignorância que cultivo virou estatuto. Identidade. Eu não sou burro: sou livre-pensador. Eu não sou mal informado: sou contra a manipulação dos media. Eu não erro: tenho uma visão diferente. E quanto mais me engano, mais teimo. Porque, no mundo digital, mudar de opinião é sinal de fraqueza. E eu, como todo o bom idiota digital, sou forte. Mesmo quando estou errado. Sobretudo quando estou errado.
As tecnologias não são más. O problema sou eu. Eu e os outros como eu, que fizemos do telefone uma extensão do nosso ego desinformado. Um livro podia ser usado para aprender, mas eu prefiro ver vídeos de três minutos que confirmem o que já penso. O silêncio podia ser usado para pensar, mas eu preciso de dizer tudo o que me passa pela cabeça. E o resultado é este: uma cacofonia de opiniões, onde todos falam, ninguém escuta, e ainda menos gente sabe do que está a falar.
Talvez o futuro precise de menos ignorantes como eu a mandar bitaites, e de mais gente que sabe estar calada. Mas, enfim, isto sou eu a filosofar. Entre dois vídeos de teorias da conspiração e um post indignado sobre a gramática do ministro da Educação. Vou ali insultar alguém no X e já volto.
Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com
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