poeta.adérito.barbosa.escritor.autor.escritor.artigos.opinião.política.livros.musica.curiosidades.cultura Olhosemlente

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Branquear o meu capital

 


Como é que os outros gajos conseguem branquear milhões e eu ando à nora para branquear 3100 euros.

Hoje ouvi na televisão uma informação que me surpreendeu, embora talvez já devesse tê-la como adquirida: a partir de agora, qualquer pessoa que pretenda comprar uma casa com dinheiro vivo — qualquer montante acima dos três mil euros — incorre, à luz da lei, num crime. Mais especificamente, um crime de branqueamento de capitais. A justificação, presume-se, é a necessidade de impedir que dinheiro de proveniência duvidosa entre no circuito económico formal sem rastreabilidade. Em teoria, faz sentido. Na prática, é absurdo. Em primeiro lugar, porque já não há casas — mesmo as mais degradadas — a preços tão baixos que permitam uma aquisição em notas abaixo desse limite. Em segundo, porque a própria noção de que pagar com o seu próprio dinheiro, ganho de forma lícita, pode constituir crime, é um sinal preocupante da inversão de presunção que se está a instalar: o cidadão comum, a partir de agora, é presumido culpado até provar a origem de cada euro que tem na carteira.

Mas há excepções. Diz-se que, por exemplo, posso comprar uma casa usando bitcoins. Desde que alegue - troca de produto, ou que esteja incluído no contexto de uma transação digital legítima, posso dar uma casa e receber em troca criptoativos. A ironia é total: um instrumento financeiro que nasceu da informalidade, da descentralização e da não rastreabilidade pode, segundo a norma europeia, ser mais aceitável do que dinheiro vivo, aquele que posso mostrar, contar e guardar fisicamente. A regulamentação europeia, com as suas diretivas sucessivas sobre prevenção ao branqueamento de capitais (AML), tem vindo a apertar o cerco ao uso do numerário. Entendo a lógica: evitar lavagem de dinheiro, evitar financiamento ao terrorismo, combater a economia paralela. Mas a consequência direta para o cidadão comum é outra: quem quer pagar por fora é criminoso; quem quer pagar por dentro tem de pedir autorização ao banco, justificar origens, explicar intenções e cruzar os dedos para não ver o processo bloqueado por um alerta de compliance. Ora, pergunto: e quem apenas quer resolver um problema simples? É o meu caso. Preciso de construir um passeio de cimento à volta da casota do meu cão, o Boris, Nada extravagante. Dois metros quadrados de calçada, talvez três, no máximo quatro. Uma solução que impeça que o barro entre na casota e que permita ao cão circular com dignidade. Isto era o tipo de coisa que se resolvia, noutros tempos, com um telefonema para um pedreiro qualquer, um orçamento directo e pagamento em dinheiro no final do trabalho.Mas não vivemos mais nesses tempos. Depois de semanas a procurar alguém que fizesse o maravilhoso passeio — e de ouvir orçamentos absurdos, recusa de pequenos trabalhos, ou simplesmente silêncio — encontrei um pedreiro reformado e resmungão. Tem má disposição crónica, alguma competência e nenhuma paciência. Fez-me uma proposta direta: 3100 euros, dinheiro à vista, sem factura e sem complicações. “Se quer, quer. Se não quer, procure outro.” E aqui comecei a entrar em terreno legal pantanoso. Se eu aceitar pagar os 3100 euros em dinheiro, posso incorrer num crime de branqueamento de capitais, por ultrapassar o limite legal sem justificação nem intermediação bancária.

Se eu não pagar, mas o trabalho for feito, cometo um crime de burla. Se o pedreiro aceitar o dinheiro e não declarar o rendimento, incorre num crime fiscal — pelo menos evasão, senão mais. Se ele nem sequer estiver habilitado a exercer, estando reformado, pode incorrer num exercício ilegal de atividade. Se ambos avançarmos com o negócio nestes termos, pode considerar-se que existe uma associação informal para a prática de infrações fiscais ou económicas. Tudo isto... para fazer um passeio de cimento à volta de uma casota de cão. Tentámos uma solução alternativa: pagamento fracionado, à hora, em pequenas parcelas. O trabalho seria executado por fases, com compensação proporcional. Legalmente, continua a ser arriscado. O dinheiro, ainda assim, não passaria pelo circuito formal. Ainda seria numerário. Ainda estaria sujeito a escrutínio. Nenhum de nós tem recibos, empresa ou estrutura para emitir faturas. Nenhum de nós quer envolver-se com a máquina fiscal para resolver um problema de cinquenta centímetros de alpendre.

A certa altura, o pedreiro olhou para mim e perguntou:

— O seu dinheiro está no banco?

— Está, sim — respondi.

— Então como é que vocemecê explica isso?

Não consegui responder. Porque não sei. Não sei como explicar que dinheiro que é meu, guardado por mim, resultante do meu trabalho, não pode ser usado para resolver um problema banal do meu quotidiano, sem que eu corra o risco de me tornar alvo de suspeita criminal. Vivemos num sistema em que a criminalização da normalidade é feita em nome do controlo. Onde o pequeno arranjo é mais arriscado do que a grande fraude, se não tiver a documentação certa. Onde o gesto comum, ancestral, de pagar alguém diretamente por um serviço pontual se tornou um entrave burocrático — ou pior, uma infração penal. No final, o passeio ainda não foi feito. Boris continua a sujar as patas, e eu continuo a tentar perceber como é que o meu próprio dinheiro se tornou um objeto suspeito.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

Sem comentários:

Enviar um comentário

Publicação em destaque

Florbela Espanca, Correspondência (1916)

"Eu não sou como muita gente: entusiasmada até à loucura no princípio das afeições e depois, passado um mês, completamente desinter...