Nas vielas da ilha, ao cair da tarde
Marchavam em silêncio os senhores da fraude
Com alianças brilhantes e promessas vazias
Desciam sobre moças em noites sombrias
faziam juras a raparigas de tranças,
com olhos grandes demais para a idade.
— És linda. Mereces mais do que ser donzela —
diziam, com a mesma voz que usavam na missa.
Ofereciam futuro,
ofereciam nome,
e ao cair da noite, tomavam o corpo.
Comiam com pressa,
e deixavam a alma a arder nos lençóis.
Tinham três, quatro, cinco mulheres ao mesmo tempo.
E quase todas sabiam de todas.
Dividiam-nas como quem reparte sal,
mas em casa, a legítima dormia
de rosário na mão e vergonha nos olhos.
Os outros filhos — os da sombra —
nascidos no silêncio,
em casas emprestadas,
com nome de mãe e rasto de pai ausente.
Uns com apelido inventado,
outros sem apelido nenhum.
E quando cresceram,
viram os irmãos do casamento
a subir degraus com sapatos limpos,
com diploma na parede
e arrogância na língua.
Eu sou irmão de polícia barrigudo,
de autodidata analfabeto,
de professor que ensina mas nunca leu,
de músico de batuque que desafina na vaidade.
Sou irmão de advogado por correspondência,
de engenheiro de obra de pala,
de doutor da mula e mestre do discurso da treta converseta
Eu sou o erro.
Sou o pedaço esquecido da história,
o parente de gaveta,
a nódoa no linho da família.
Quando falo, fazem-se surdos.
Quando apareço, disfarçam.
Quando passo, mudam de passeio.
E quando escrevo fingem
Quem não me lêem.
Cresci a ver tudo.
Vi-o a atravessar a rua
sem coragem de cruzar o meu olhar.
Vi os do casamento, os filhos
vestirem o sangue com vaidade,
sem saberem que o sangue é sujo
quando a verdade é limpa.
Eles falam alto nos jantares.
Recitam leis, defendem moral,
batem no peito com títulos e cargos.
Mas tremem com um teste de ADN.
Fazem discursos sobre família
mas têm armários cheios de fantasmas.
E eu?
Eu sou o fantasma com rosto
Da minha mãe que foi vítima
Não quero herança.
Não quero lugar à mesa.
Não quero o nome,
quero história,
quero que alguém diga:
— Ele também é nosso
das vergonhas da ilha.
Porque o pai que me gerou
espalhou filhos como semente ao vento,
e agora colhe silêncio nos funerais.
O caixão desce,
mas os segredos não.
O segredo ficou.
E há-de chegar o tempo —
o tempo em que os filhos da sombra
hão-de sair da margem,
não para pedir,
mas para dizer:
Estamos cá.
Fomos feitos como vós,
mas crescemos no escuro.
E há-de doer.
Doer nos retratos,
nas árvores genealógicas,
nas biografias mentirosas.
Porque a verdade,
quando vem,
não pede licença.
Entra.
E ninguém quer entender
A negra história da ilha
negra história da ilha…
A negra história.
negra a história…
da ilha.
da Ilhaaaaaaaaaa!
Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com
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