poeta.adérito.barbosa.escritor.autor.escritor.artigos.opinião.política.livros.musica.curiosidades.cultura Olhosemlente

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Alcochete


Portugal é um país maravilhoso, sobretudo quando se olha para a sua vertente tradicional – aquela que resiste ao desgaste dos anos, que sobrevive à pressa da modernidade e que continua a reunir gerações em torno das mesmas emoções que encantaram os avós e hão-de emocionar também os netos. Se há terra onde o testemunho vivo desta força cultural se mantém, essa terra é Alcochete.

Durante grande parte do ano, Alcochete é um lugar sereno, onde o Tejo repousa junto ao casario e às ruas estreitas, desenhadas para acolher passos lentos e conversas demoradas. É uma vila pacata, habitada por gente simples, mas ferrenha, onde o tempo parece correr ao ritmo das marés.

A vida desenrola-se sem pressas: ora cheira a maré-cheia, ora a lodo quando a maré vaza, deixando no ar o odor salgado do rio. Mas basta chegar agosto para que o sossego dê lugar a uma energia vibrante.

As festas de verão transformam a vila num centro de alvoroço e alegria. Ruas e praças enchem-se de luzes e cores, e a música popular ecoa até nas esquinas mais recatadas. O cheiro a sardinha assada mistura-se com o aroma doce das farturas, enquanto o burburinho das barraquinhas acrescenta ainda mais vida ao cenário. É assim que Alcochete se abre ao mundo, recebendo de braços abertos todos os que chegam de perto e de longe.

Parece-me haver famílias inteiras que regressam todos os anos, e amigos – como foi o meu caso – que marcam reencontros apenas nesta altura e acabam por descobrir a vila pela primeira vez. O ambiente é de partilha e convívio, com bailaricos que se prolongam pela madrugada, concertos ao ar livre, procissões solenes e, claro, a festa brava do touro, que é o grande orgulho local, coroada pela charanga – que, por acaso, não fiquei para ver.

A tradição taurina de Alcochete não é apenas um espetáculo: é um ritual com raízes profundas, uma herança que passa de geração em geração e um símbolo de identidade local. As ruas enchem-se para assistir às largadas, momentos em que a coragem e a destreza se misturam com a adrenalina e o entusiasmo da multidão. É uma experiência intensa, onde o respeito pela tradição se sente tanto no silêncio expectante antes da saída do touro como no clamor colectivo que acompanha cada movimento. E quando acontece uma marrada ou algo pior - Alcochete suspende a respiração.

Toda a comunidade participa, de uma forma ou de outra. Uns arriscam-se na arena improvisada das ruas, outros ajudam na organização, e muitos preferem vibrar a uma distância segura.

Em Alcochete, a festa não é apenas um evento no calendário: é um reencontro com as raízes, um brinde à cultura portuguesa na sua forma mais pura e autêntica, um momento em que o passado e o presente se dão as mãos. Quando as luzes se apagam e a vila regressa à tranquilidade habitual, ficam no ar o eco das vozes, o cheiro do rio e a certeza de que, no próximo agosto, tudo recomeçará – porque certas tradições não conhecem fim, apenas novas formas de continuar a existir.


Adérito Barbosa in 

olhosemlente.blogspot.com

Sem comentários:

Enviar um comentário

Publicação em destaque

Florbela Espanca, Correspondência (1916)

"Eu não sou como muita gente: entusiasmada até à loucura no princípio das afeições e depois, passado um mês, completamente desinter...