Quem não se lembra dos autocarros verdes da Carris? O de dois andares, que fazia as delícias da miudagem, como se fosse um miradouro sobre rodas. E o rasteirinho sem portas atrás, onde a malta subia e descia em andamento, num exercício de ginástica urbana que hoje daria direito a processos no Tribunal de Menores.
Depois chegaram os articulados laranja - os minhocas, era uma modernidade sobre rodas. Lisboa tinha cor, e não era só das paredes descascadas: eram reclamos luminosos, néon a piscar nas Avenidas, e copos de cerveja que se enchiam nas Picoas até deitar espuma por fora.
Quem não se lembra da chegada da internet, no seu estado primitivo, a chiar e a apitar como se estivéssemos a invocar marcianos? Cinquenta e dois k-bits de paciência, um modem histérico e a gloriosa sensação de ver uma página carregar ao fim de 6 minutos — se ninguém se lembrasse de levantar o auscultador do telefone fixo.
Era futuro a acontecer devagarinho, pixel a pixel. Depois, os cartões magnéticos junto com o gesto estudado de tapar o código com a mão, como se estivéssemos a introduzir os segredos da NATO, enquanto os da fila olhavam para o tecto, para o lado ou para os sapatos, num fingimento colectivo de desinteresse. A privacidade do multibanco era uma encenação nacional, uma coreografia de cotovelos e olhares enviesados.
A coisa acelerou. Vieram os pagamentos por referência, aquela sequência de vinte dígitos intermináveis que transformava cada compra num exercício de datilografia. Vieram as plataformas online, os pagamentos por telefone, os MBWAYs da vida — convém lembrar, desenvolvidos em Portugal, uma das raras vezes em que não fomos apenas utilizadores de segunda mão. O almoço dividido à mesa já não exige contas de cabeça, apenas um manda-me MBWAY.
Hoje os bancos já não são de madeira, nem têm livros de registo. São aplicações no telemóvel. O balcão físico é uma espécie em extinção, como as cabines telefónicas. Restam alguns, como fósseis urbanos, para dar a ilusão de que ainda há humanidade no processo. Mas a humanidade foi substituída por códigos, passwords, tokens e os irritantes assistentes virtuais que respondem com uma alegria irritante às nossas irritantes perguntas. O gerente, outrora figura temida de gravata e bigode, foi trocado por um chatbot com sorriso desenhado em pixels.
E nem quero falar das novas operadoras do negócio virtual: Revolut, N26, Monzo e outras tantas que pouca gente conhece, mas que já capturam milhões de clientes mundo fora. Não têm balcão, não têm horário, não têm agência. O banco já não é edifício: é notificação push. É cartão de plástico minimalista que chega pelo correio, acompanhado de uma promessa de liberdade financeira. O dinheiro deixou de ser carteira e passou a ser aplicação.
A desmaterialização é inevitável. O dinheiro físico vai acabar. Os talões de papel seguirão para museu. Bancos com portas abertas, balcões, cofres, tudo desaparecerá. O futuro é um número no ecrã, um código que confirma ou nega a minha existência financeira, sem bateria, sem rede, sem internet, simplesmente deixo de existir. Não compramos pão, não carregamos o passe, não pedimos café. Tornamo-nos fantasmas de passos perdidos, condenados a olhar para o telemóvel morto como se fosse uma lápide.
E é neste cenário, em que tudo se resume a código, que ecoa o mantra ridículo: - Verde código Verde. Uma expressão que outrora poderia soar a pagamento, hoje é apenas uma expressão caricata. Um eco da modernidade que nos reduziu a cor, a número e a senha. Verde código Verde é o retrato de um mundo onde já não se levanta dinheiro, nem se levanta o código, onde já não se entra no banco, entra-se na aplicação. Onde a vida deixa de ser papel e passa a ser algoritmo.
Verde código Verde: a expressão analógica de um digital que já ninguém se lembra.
E agora que descobriram a vacina para qualquer tipo de cancro, resolveram o problema do HIV e como já descobriram propagação 5 vezes mais rápida da que a luz, eu já estou de malas feitas.
Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com
Sem comentários:
Enviar um comentário