Eu não quero ver cabos Anselmos nos quartéis, nem na GNR, nem na PSP, nem na PJ, nem no ex-SEF, nem muito menos em qualquer esquadrão de segurança nocturna que ande por aí a brincar à política. Portugal não precisa de mais patriotas nem de mais nacionalistas, comprados ao quilo na loja da esquina.
Para quem não se recorda – a amnésia histórica é o pão-nosso de cada dia – o tal cabo Anselmo era, na verdade, um simples fuzileiro naval brasileiro. O título de cabo serviu mais para segurar a lenda do que para realçar a patente. Em plena década de 60, concretamente em 1964, Anselmo subiu a um palanque diante de generais e fez um discurso inflamado sobre a pátria, a honra e a necessidade de resistir ao comunismo. Um discurso que parecia ditado ao telefone de Washington. Resultado? Poucos dias depois, o Brasil mergulhava na ditadura militar – um dos regimes mais brutais da América Latina, cozinhado a lume brando sob encomenda da inteligência norte-americana.
Anselmo, o herói de ocasião, viria mais tarde a ser desmascarado como aquilo que sempre fora: um agente da CIA. Um infiltrado, um político de uniforme, pago e instruído para sabotar qualquer hipótese de soberania política no Brasil. A revolução de 64, que os próprios militares baptizaram de contra-revolução, não caiu do céu em forma de tempestade. Foi planeada, ensaiada e executada com consultoria made in USA.
Chamaram-lhe Operação Brother Sam: uma frota naval norte-americana estava pronta a apoiar os generais brasileiros se fosse preciso esmagar resistências. O golpe teve nomes e apelidos – Castelo Branco, Costa e Silva, Médici – todos alinhados com Washington. Instalou-se uma ditadura de vinte e um anos, sustentada por censura, tortura, desaparecimentos e uma retórica de pátria, Deus e família, retratada no filme recente - Ainda Estou Aqui, com Fernanda Torres no papel de viúva de Rubens Paiva.
Tudo igualzinho ao que fizeram Salazar, Mussolini, Franco, Hitler, Saddam, Estaline, Fidel Castro ou Pol Pot.
E é aqui onde eu quero chegar: porque quando olho para o noticiário português e vejo um agente da PSP acusado de ligações a ditadores de trazer por casa, não consigo deixar de ouvir o eco do mesmo guião. Mudam os sotaques, mudam os slogans, mas a cartilha é a mesma: meter medo com o fantasma do inimigo interno, criar a necessidade de ordem, fabricar discursos de salvação nacional, tudo embrulhado em retóricas patrióticas. Perigoso. Assim como é perigoso apagar o fogo com a mão, como vi há dias.
Eu não compro essa mercadoria. Não quero voltar a organizar uma RGA na Escola Industrial Fonseca de Benevides do meu tempo – esta coisada não se ergue do nada. Tem financiamento, tem inspiração ideológica importada, tem o cheiro a pólvora que vem de fora. O caso do agente da PSP não é episódio isolado: é apenas a ponta do icebergue. E nós, como bons portugueses, preferimos olhar para a ponta e fingir que o resto não existe.
O cabo Anselmo brasileiro serviu para abrir as portas à ditadura e para esmagar uma geração inteira em nome da democracia da porrada. Se começarmos a aceitar Anselmos em Portugal – com farda ou sem ela – não esperemos que a história tenha mais piedade connosco do que teve com os brasileiros de 64.
E se o Brasil de ontem já nos dá lição, o Brasil de hoje deveria ser aviso em letras garrafais. Bolsonaro não apareceu sozinho. Foi fabricado no mesmo molde: medo do comunismo, culto da família, religião misturada com armas e militares a ocupar gabinetes ministeriais como se fossem fiscais de feira. Generais a governar como se o voto popular fosse detalhe dispensável. A certa altura, falava-se em golpe quase à descarada – e não faltavam quartéis onde se aplaudia a ideia.
Não se iludam: sempre que os militares se instalam no poder político, não trazem ordem, trazem autoritarismo. Podem vir de verde-azeitona, de uniforme engomado ou de boina, mas o resultado é sempre o mesmo: censura, vigilância, medo, e uma democracia de fachada onde só manda quem carrega mais estrelas no ombro.
Por isso digo sem hesitar: não quero militares nem paramilitares na política, em Portugal ou em lado nenhum. Podem encher a boca com palavras como pátria, Deus e família, mas o que realmente trazem é a erosão da liberdade. Hoje um cabo Anselmo, amanhã um general qualquer, e no fim um povo inteiro reduzido a espectador da sua própria história.
Não quero cabos Anselmos, nem generais soviéticos da NATO a defender interesses russos na televisão. Não quero polícias que se sonham cruzados, não quero militares que se imaginam messias, não quero seguranças nocturnos que se acham justiceiros urbanos. O país precisa de instituições decentes, não de quintais ideológicos ao serviço de quem se serve de analfabetos e de pseudo-militares para se promover na política.
Digo-o com clareza, sem paninhos quentes: não alinho na retórica dos ditadores promovidos pelos americanos. Que cada um fique com os seus cabos Anselmos. Eu fico com a memória da história, essa que insiste em repetir-se para castigar os distraídos de sempre.
Adérito Barbosa, in olhosemlente.blogspot.com

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