Monte Negro, antes de ser primeiro-ministro, vivia no parque de diversões da oposição. Ali, debaixo dos holofotes, fazia-se ouvir como um profeta indignado com cada parturiente que paria num banco de ambulância ou num corredor de hospital. A cada tragédia, lá vinha ele, com ar grave e voz de trovão, anunciar a catástrofe nacional. O homem sofria, ou fingia sofrer, com uma intensidade que faria corar qualquer cão de loiça. O país, dizia ele, não podia continuar assim — tínhamos de mudar, tínhamos de reformar, tínhamos de refundar o SNS, ou coisa que o valha.
Ao lado, o noviço André, apóstolo das juras de ocasião, fazia de relé. Repetia as palavras do ex-colega com zelo. Quando um gritava vergonha, o outro berrava escândalo, bandalheira. O povo, entorpecido pela ladainha, foi acreditando que o pântano ia secar, que a lama seria varrida, que a justiça chegaria um dia.
Entretanto, Marcelo, o criador de factos, o eterno encenador do improviso, o pior presidente de todos os presidentes, não descansou enquanto não empurrou Costa para as luzes de Bruxelas. Foi uma encenação perfeita. Lá se aparamentou o eleito no altar europeu, com a bênção presidencial. Marta Temido, essa sacerdotisa da saúde mediática, aproveitou a deixa: a morte de uma parturiente deu-lhe asas, e lá foi ela também para a Europa lavar a alma. Levou consigo o puto-maravilha, o seu Sebastião Bugalho, que também subiu para a carroça e arrumou bagagem rumo a Bruxelas.
Foram-se embora todos. Deixaram o altar por purificar. Ficou Monte Negro com o incensário nas mãos, cheiro a incenso e fumo no ar — o país à espera de milagre. E o milagre nunca veio.
Agora morrem parturientes e bebés recém-nascidos todos os dias. As ambulâncias continuam a servir de berçário de emergência. A ministra da Saúde, outrora ministra-sombra, é agora sombra de si própria. Fala muito, age pouco, e quando age é sempre tarde demais. Miguel Guimarães, que fazia política como bastonário dos médicos e hoje é deputado das promessas, jurou revolução na saúde e garantia que o hospital do Oeste seria prioridade nacional assim que fosse eleito. Hoje é deputado, e do hospital do Oeste nem uma palavra.
Tudo mentira. Assim nasceu o Clube dos Mentirosos — uma confraria de fariseus unidos pela vocação de mentir com convicção e pela arte de jurar o contrário do que disseram ontem.
O André já não quer saber dos ciganos, nem dos refugiados, nem das mulheres que morrem nas urgências. Nem das facadas diárias nos bairros, nem do polícia que está a ser julgado por pressão daquela maltinha do socialismo europeu. Agora o André quer ser presidente do sistema. Já não quer varrer Portugal.
O povo continua fiel ao ritual. O país funciona assim há séculos, e o povo gosta assim.
Monte Negro, o outrora justiceiro da oposição, é agora um funcionário da normalidade. A cada novo escândalo, surge um inquérito; a cada nova morte, uma comissão. O sistema político português é uma paróquia de fariseus. Fingem-se piedosos, distribuem bênçãos, beijam nas feiras e chamam a isso proximidade.
O Conluio dos Fariseus não é teoria — é o retrato do poder em Portugal. Um país que vive em estado de penitência permanente, guiado por apóstolos de plástico. De cada vez que um cai, outro se levanta, com igual cinismo e o mesmo sorriso.
E no fim, como sempre, o silêncio volta. Ninguém responde, ninguém renuncia, ninguém tem culpa. As mães estrangeiras continuam a vir cá parir, continua a morrer gente sem atendimento capaz, os hospitais continuam por construir, as facadas multiplicam-se, a CNN mantém a sua porca transmissão, a SIC está falida, o Benfica, o Sporting, o Porto e os outros clubes de futebol estão falidos mas felizes. Fiz as contas: cada sócio de qualquer um desses chamados grandes deve, em média, dois mil euros, e ninguém se chateia.
E assim seguimos, com Monte Negro no púlpito, André a vigiar o rebanho e Marcelo a benzer a procissão.
O Conluio dos Fariseus está completo. E nós, pobres crentes, continuamos a pôr o voto na urna como quem deposita esmola numa igreja em ruínas, convencidos de que, desta vez, talvez o milagre aconteça.
Adérito Barbosa, in olhosemlente.blogspot.com
