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quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

O dó não caiu do céu



Tenho um sintetizador Korg Wavestation EX há muitos anos encostado na sala a fazer bibelot, lembrei-me de o montar no meu pequeno estúdio. Peguei nele, liguei-o à mesa, fi-lo passar por um PA a sério e atirei o som para umas BOSE Acoustimass III. E, surpresa das surpresas, aquilo resultou em cheio. Tão em cheio que até as minhas admiradoras intervieram espontaneamente no processo de investigação sonora. A gata apareceu no estúdio a miar , como sempre faz quando há música, e a minha mulher entrou à força, para testemunhar o meu brilhar no teclado.

Sentei-me, arregacei as mangas, fiz a habitual ginástica aos dedos e desatei a tocar, cheio de pose, para as duas. A certa altura armei-me em professor e comecei com a velha lenga-lenga do dó ré mi fá sol lá si, como se estivesse a revelar um segredo só meu. Eis senão quando a minha mulher pergunta, com aquela calma que precede sempre a queda: tudo bem, mas explica lá isso - o nome das notas.

E eu, que não explico nada sem ir ler primeiro, fui investigar. Até porque no domingo vou ter de explicar a dois amigos meus o do ré mi fá sol lá si e convém não dizer disparates.

A verdade é que a história dos nomes das notas musicais é um produto pedagógico, histórico e linguístico, nascido num contexto muito concreto: a música litúrgica medieval europeia.

Durante a Antiguidade e boa parte da Alta Idade Média, a música era transmitida quase exclusivamente por via oral. Usavam-se neumas, sinais gráficos que indicavam apenas o contorno melódico, não alturas exactas, e a organização fazia-se por modos, não por escalas como hoje. Não existiam dó ré mi. Existiam alturas relativas, memorizadas pelo ouvido e pelo corpo.

No século XI, os mosteiros enfrentaram um problema. Era preciso ensinar rapidamente grandes repertórios de canto gregoriano a monges que nem sempre tinham formação musical. A música precisava de padronização, de memorização eficiente e de um sistema escrito que funcionasse. É aqui que entra Guido d’Arezzo, monge beneditino, que não descobriu nota nenhuma nem teve visões divinas. Criou, isso sim, um método didáctico.

A grande ideia de Guido foi usar um hino litúrgico muito conhecido, em que cada verso começava numa nota ligeiramente mais alta do que a anterior: 


- Ut queant laxis, 

- Resonare fibris, 

- Mira gestorum, 

- Famuli tuorum, 

- Solve polluti, 

- Labii reatum, 

- Sancte Iohannes. 

Guido, pegou na primeira sílaba de cada verso e usou-a como nome da nota. Assim nasceram Ut, Re, Mi, Fa, Sol e La. Uma escala de seis sons. Nada de simbologia oculta, nada de metafísica. Pura mnemónica.

O sistema original nem sequer tinha sete notas. O Si apareceu mais tarde, formado pelas iniciais de Sancte Iohannes. Durante muito tempo foi evitado porque criava um intervalo instável, o trítono, e só se fixou definitivamente entre os séculos XVI e XVII.

Também o famoso Ut não sobreviveu intacto. Era uma sílaba fechada, pouco ressonante, difícil de cantar. No século XVII, o músico italiano Giovanni Battista Doni propôs substituí-lo por Do. Uns dizem que vem de Dominus, outros que vem do próprio nome Doni. A explicação mais honesta é fisiológica. Dó abre a boca. Ut trava a língua.

Os nomes das notas não são naturais, não são universais, nem são eternos. São uma ferramenta pedagógica medieval que se transformou em tradição. O que é universal não são os nomes, mas as relações físicas entre frequências sonoras. A música vem do corpo e do ouvido. Os nomes vieram depois, para tentar pôr ordem no caos.

Quanto ao hino em si, convém lembrar que não é poético por acaso. 

Traduzindo

- Ut queant laxis, 

- Resonare fibris, 

- Mira gestorum, 

- Famuli tuorum, 

- Solve polluti, 

- Labii reatum, 

- Sancte Iohannes”  

Quer dizer explicitamente:  vozes soltas, de fibras, de lábios e de ressonância. 

A tradução literal é clara. 

“Para que possam, com vozes soltas, ressoar com as fibras as maravilhas dos feitos dos teus servos, liberta o lábio manchado da sua culpa, ó São João. “

É um texto funcional para cantores, quase técnico. Guido d’Arezzo escolheu-o porque fala do próprio acto de cantar, não por qualquer simbolismo esotérico posterior.

Expliquei isto à minha mulher. Ela ouviu, abanou a cabeça, fez um pois e foi-se embora. A gata ficou. O sintetizador também. E eu continuo a tocar, agora já com muito mais gosto.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

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