O homem que teve a ideia do vinho canalizado chama-se João Manuel Vieira, candidato às presidências e convém dizer desde o início que não estou a falar de um político convencional. João Manuel Vieira nasceu com uma propensão natural para transformar banalidades em sátiras. Músico, vocalista dos Ena pá 2000, banda que por si só já dá pano para mangas, é conhecido por assumir personagens em palco como “Lello Universal, Lello Minsk, Lello Marmelo, Élvis Ramalho, Orgasmo Carlos, Catita, entre outros. Em 2008, uma sua biografia fictícia foi alvo de uma série de seis episódios intitulada Mundo Catita, transmitida pela RTP2.” Da sátira política à crítica social, da palhaçada inteligente à provocação artística, João Manuel Vieira sempre se moveu num território onde o humor e o desconforto caminham de mãos dadas.
Mas o currículo não acaba aqui. Longe disso. Além de músico, é professor na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, onde passa parte do tempo a ensinar estudantes a pensar, a desconstruir e a reconstruir o mundo, mostrando que a arte não serve apenas para pendurar nas paredes, mas também para abanar estruturas, desafiar poderes instalados e pôr muita gente com os nervos em franja. Como se isto não bastasse, foi também o lendário proprietário do cabaré Maxime, espaço histórico da boémia lisboeta, onde tive o grato prazer de vaguear. Por lá circulavam artistas, poetas, bêbedos ocasionais, intelectuais tortos e almas extraviadas. O Maxime foi, durante anos, um laboratório de excessos, criatividade e liberdade. Um sítio onde se falava de tudo — política, sexo, arte, dívidas ao Estado — sempre com um copo cheio na mão e uma gargalhada à espera de explodir. E porque quem faz um cabaré faz dois, João Manuel Vieira é actualmente proprietário de outro cabaré, mantendo viva a chama da noite lisboeta e garantindo que ainda existe um espaço onde a cultura, a conversa fiada e o caos produtivo se encontram para um copo e uma música. Portanto, sim, presumo que seja um tipo bacana. E se se confundiu várias vezes pelo caminho, como dizem alguns, eu cá acho que faz parte do charme. Há vidas demasiado organizadas para serem interessantes.
Eu, que até já tinha prometido votar no Seguro, vi-me subitamente abalado na minha convicção quando soube que João Manuel Vieira prometia vinho canalizado. Uma promessa desta magnitude tem peso histórico. Uns candidatos prometem baixar impostos, outros prometem estabilidade e sustentabilidade, João Manuel Vieira promete vinho. Pelas torneiras, a qualquer hora, em casa, no trabalho, no balneário do ginásio. E digo já: nunca me senti tão próximo da política nacional. Pode parecer absurdo alguém prometer vinho pelas canalizações domésticas, mas não é assim tão descabido. Há candidatos que fazem propostas ainda mais delirantes, algumas ditas com a maior das convicções, como se fossem dogmas. Ventura, por exemplo, promete mudar tudo, absolutamente tudo, mas nasceu no sistema, vive no sistema e há-de morrer no sistema. Ora aparece nas Finanças a cobrar impostos aos pobres, ora no PSD a querer ir para a Câmara de Loures, ora no Parlamento a agitar bandeiras, ora nas presidências a prometer um novo país, como se o presidente governasse. - Ninguém mais dentro do sistema do que o Ventura. Sempre andou dentro do sistema, vive do sistema. Ele é o sistema.
Voltemos a João Manuel Vieira, arquitecto do vinho canalizado. Eu prometo votar nele e, já agora, aproveito esta oportunidade para lhe pedir desculpa por ter deixado de frequentar o cabaré dele. A vida de casado tem destas coisas: compatível com vinhos, sim, compatível com cabarés, nem por isso. É uma incompatibilidade estrutural, quase científica. Mas o vinho… ah, o vinho. Esse não falha. Todos os dias emborco dois copinhos, medicinais, claro, e faço-o com disciplina e sentido de dever. Se um dia vier mesmo a sair das torneiras, tanto melhor. E já que estamos a falar de João Manuel Vieira, convém ampliar um pouco mais o currículo, para os mais indecisos perceberem que este não é um candidato qualquer. Não estamos perante um tecnocrata cinzento nem um agitador improvisado. João Manuel Vieira é, acima de tudo, um criador: de música, de espaços culturais, de personagens, de ideias e, quando necessário, de polémicas. Participou na construção de espectáculos performativos, criou intervenções satíricas que ainda hoje circulam pelos subterrâneos culturais, escreveu letras que misturam humor e crítica social, e foi uma das figuras mais marcantes da boémia artística portuguesa das últimas décadas. É alguém que percebe que a política é, em grande parte, um palco de teatro e que, já que estamos todos sentados na plateia, mais vale haver graça, coragem e alguma honestidade na narrativa.
Por tudo isto, e muito mais que não cabe numa só garrafa, digo aqui com orgulho: se o vinho for canalizado, o meu voto é dele. E prometo solenemente fazer um brinde em sua honra, mesmo que depois tenha de explicar à minha mulher que estava apenas a celebrar o meu civismo em vez tomar os comprimidos com água. Porque, no fim do dia, a vida pode não ser compatível com cabarés, mas continua muito compatível com vinho. E, convenhamos, já não se pode pedir muito mais a um país como o nosso.
Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

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