O meu barco tem asas…
- Olá, Mãe! Bom dia!
- Bom dia, filho! E a mãe beijou-o com a ternura de sempre.
- Estás cansado, filho!
- Sim, muito cansado.
- Sim, muito cansado.
- Como correu a viagem?
- Foi uma seca!
- Pronto, o que importa é que chegaste bem; toma um banho, que eu vou preparar-te o almoço. Queres que te sirva uma bebida? O teu pai, que Deus lá tem, sempre bebia um whisky antes das refeições. Desde que o médico lhe disse que a bebida tinha benefícios, foi o que ele quis ouvir. Aliás, tu sempre lhe fizeste companhia. Desde que ele morreu, que ninguém mais abriu aquela garrafeira! Aquele desgraçado podia ainda estar vivo, não fora a vida de boémio que sempre levou. Deixou-me sozinha a tratar dos filhos... O que vale é que nunca vos faltou com nada. Era um bom homem! Nunca conheci outro...
Foram as últimas palavras que o Manuel ouviu da mãe, sempre rabugenta... E deixou-se afundar no sofá, vencido pelo cansaço da viagem.
E começou a sonhar... Procurara uma razão para escrever uma crónica para uma comunidade de futuros escritores, à qual pertencia, sob o mote: "Margens inertes abrem os seus braços, um barco no silêncio parte" …
Lembrou-se de que nunca precisara de se preocupar com o encontrar argumento para escrever sobre um rio, suas margens e ainda por cima de braços abertos... Navios que partem no silêncio...
Então e a buzina do navio? O navio tem buzina. Todos os navios que partem buzinam no nevoeiro. Coisa estranha! Como vai o barco partir, se ali, a duzentos metros mais abaixo, o rio se vai precipitar numa queda de água e, ainda por cima, o rio só tem a profundidade de vinte centímetros? Está nervoso, vai acontecer uma desgraça; está nevoeiro! Como é que o comandante consegue que o barco navegue nestas condições?
Na outra margem está sol, há festividades da colectividade com arraial e tudo. Desde ontem que o Quim Barreiros canta, sem parar, sempre a mesma canção: “Ponho o carro, tiro o carro à hora que eu quiser...” Desde ontem que todos os passageiros do barco estão na festa. Um turbilhão de confusão vai naquela margem. Barco grande sem buzina e sem passageiros, rio sem profundidade, queda de água a duzentos metros, comandante que não vê, nevoeiro numa margem, sol e arraial na outra.
Temos pouco tempo, precisamos de convocar a malta. Pego no megafone e falo para a outra margem.
- Com a força da nossa amizade, sinto que vós tendes força para escrever uma história, contando que nas margens, de sol e nevoeiro, ancoramos o nosso barco de papel, na convicção de que lhe construiremos as asas!
Com o seu discurso magnético da retórica, todas as personagens do mundo imaginário, sob as ordens do Peter Pan, montaram uma mesa enorme e estão a dobrar papel vegetal que os ratos roubaram no armazém do tio Xico, um grande forreta da margem!
Para que as asas não fiquem grandes, o Gato das Sete Botas vai queimando as folhas dobradas que iam saindo do tapete rolante artesanal, por ordem do Peter Pan.
O pai falecido também apareceu para ajudar
- Oh pai, também tu aqui? Mas tu não estás morto?
- Estou, filho; pedi licença no céu, para vos vir ajudar a salvar este barco do naufrágio, temos que pôr asas pequenas nisto!
- Pequenas? Quem disse, Pai?
- Foi o Peter Pan. Ele recusa-se a crescer!!!
- Aquela do céu é verdade?
- Sim, claro que é!
O barco está pronto, já tem asas pequenas como o Peter Pan quis. O pai morto entrou num Ferrari amarelo, conduzido por uma loira e esfumou-se; o nevoeiro dissipou-se, a festa terminou, todos embarcaram no barco de papel com asas iguais às que a mãe vezes sem conta dobrara, para eu pôr a navegar na banheira da casa de banho.
- A nossa amizade está realmente muito próxima de transformar-se em sentimento maior, mas preferimos não viajar com vocês para a margem inerte comandante! diz o Peter Pan.
- Preferimos a nossa margem! Agora temos de ir, que o almoço está pronto, ouviu ele, quando a mãe o acordou:
- Anda, filho; o almoço está na mesa!
- Adormeci.
- Deixa lá, depois do almoço vais dormir.
- Não posso, tenho uma crónica para escrever hoje, para uma associação de futuros escritores.
- Sobre?!
- "Margens inertes abrem os seus braços, um barco no silêncio parte"
- E o que é isso, filho?
- Barco de papel com asas.
- Como aqueles que eu te fazia, quando eras pequeno e punhas a navegar na banheira?
- Sim, Mãe. Sabes por que tipo de mulheres o meu pai se perdia, quando era jovem?
- Por loiras, meu filho… por loiras!!!
Adérito Barbosa in olho sem lente