“Os nós que somos nós”
(Uma história colectiva construída
por Adérito Barbosa, Ana Maria Santos, Ana Paula Ferreira, Asun Estévez, Fátima
Veríssimo e Maria José Castro, a partir de uma fotografia).
Chegou
com ansiedade aos cais da vila piscatória aninhada numa pequena enseada, uma
baía que une as duas margens, onde o rio desagua no mar, sem sombra de dúvida!
Marver
procurava encontros e desencontros, um mar de sensações, uma fatia da natureza,
um objecto onde todas as histórias tivessem um ou vários sentidos, algo que
ultrapassasse a simples fotografia. Ajustou o ISO à luz inconfundível daquela
baía, salpicada aqui e ali por alguma nostalgia. Debaixo das arcadas, junto ao
cais, adivinhava-se alguma solidão, mas desviou o seu olhar para uma corda bem
esticada, um cabo como dizem os marinheiros. Não era uma corda qualquer, havia
qualquer coisa naquela simetria, naquele cabo de amarração, naqueles nós,
naqueles laços.
Preparou
a objectiva e congelou a imagem. Partiu com a sensação de que aquele objecto
não era apenas uma fotografia.
O
que fazer com aqueles nós agora congelados na imagem digital? Meteu as 5
imagens, uma em cada garrafa, e lançou-as ao rio, ao rio da sua aldeia, como
diz Fernando Pessoa. Do rio ao mar, cada garrafa percorreu o seu caminho até
cada um dos seus amigos – a Ana que teria de esperar mais tempo pela garrafa, a
Teresa, o Manuel, a Maria e a Laura.
E dos
novelos de nós foi surgindo uma teia de histórias que Marver (re)conta com as cartas
que recebeu nas garrafas lançadas ao rio da sua aldeia.
Maria
não tinha muitas certezas na vida, mas isso dava-lhe uma grande sensibilidade
para imaginar que os nós são o que nós queremos. Não sabia se eram nós, se éramos
nós, se eram os laços que nos unem, os
laços com que vamos desenhando os nossos espaços, criando as nossas frágeis
pontes como flores, como flores perfumadas... Nós, amarras... âncoras!
Pelo
contrário, Laura só sabia que as cordas têm nós quando nos amarramos uns aos
outros, numa (in)dependência de nós, de laços, de linhas cruzadas. Nós lassos,
nós apertados, nós cegos: de amor, de amizade, de solidariedade, às vezes de
servidão. Numa existência que queremos feliz (ou apenas não infeliz).
A
vida é feita de nós, dos nós que nos apertam a garganta, lembrava Teresa, quando
recordou o episódio que a marcou para o resto da vida, quando conseguiu salvar
Manuel de cair no abismo. Às vezes, não acreditamos que quem nos agarra nos
quer libertar, murmurava Teresa ao ouvido de Manuel e acrescentava que a liberdade
é um estado de alma que passa muitas vezes pelo corpo também.
Pelo
corpo dorido de sofrimento, quando António puxa os cabos que amarram o barco ao
cais, quando o liberta, quando os homens e mulheres lançam a esperança ao rio
ou ao mar. Ai que saudades tenho eu de lamber as feridas daqueles que o mar
fustigou! Mas as memórias impressas na
areia como carimbos relembram as vozes das palavras que a espuma não apaga. E
Maria recitou o poema com os olhos colados ao horizonte:
Uma corda, um nó, uma
união!
Uma corda, um nó, uma
maresia!
Uma corda, um nó, uma
amizade!
Uma corda, um nó,
Um cabo de mãos que se
entrelaçam
de mãos salgadas de
vida,
de medos e de
ternuras,
de mãos que criam
pontes, caminhos
delicados sobre as
águas….
Uma corda, um nó,
um Cabo da Boa
Esperança,
um abraço
que abraça o rio, e
que tu pescador da
beira Tejo
nos ofereces
como se fosse a tua
rosa preferida!
Manuel ouviu com
emoção estas palavras de quem já viveu um segundo suspenso numa corda grossa pendurada
numa árvore. Todas nós imaginámos o cenário que Manuel ia relatando
vagarosamente com a voz arrastada, como se aquele nó lhe atravessasse a
garganta: “Agarrei-me à corda grossa pendurada à árvore. Extensa corda esta,
cheia de nós que parece ligar o mundo ao céu.
Fora colocada de
maneira que ficou à vertical da represa, a meia altura da água, permitindo a
manobra de um baloiço. Não tem cadeirinha não, apenas nós pelo seu corpo acima.
Muitos nós, talvez de trinta em trinta centímetros. Nos nós de baixo, mais próximo
da água, fixo os meus pés, nos nós mais a cima, seguro com as mãos. Aos nós me
agarro e lhes confio a vida numa espiral de inocência. São nós que estrangulam
a própria corda como uma cobra aperta a presa, como um nó de marinheiro, aperta,
aperta...
Confio nestes nós. Eles
suportam o meu peso, são neles que me penduro. São nesses nós que entrego a
vida sem medo, tentando descobrir as razão das coisas que não entendo, e ali
teimo em ficar pendurado, indo e vindo ao sabor do vento, baloiçando naquele prumo,
de nós sobre a suave tolha de água e ler no espelho de água, antes de o rio se
precipitar nas pedras com o teu sorriso, a palavra quero-te.
Extensa corda de nós
com muitos nós, nós de trinta em trinta centímetros; nós que estrangulam sem
piedade a minha garganta ressequida, quando te escutei dizer sem piedade:
- não, não te amo Manuel, eu amo outro e tu sabes disso!!!
Quero desatar esse nó
que me aperta a garganta, não mais beber da minha lágrima.
Quero agarrar os nós
da vida e gritar bem alto e dizer ao mundo que já tenho a parcela que me
pertence. Por isso, agarrado a estes nós, vou e venho de uma margem a outra ao
sabor do vento e sobre este espelho de água respiro os ruídos do tempo sem nó
na garganta, enquanto sonho com o teu beijo”.
Já nada demovia Teresa
da sua intenção. Manuel teria que suportar aquele nó bem apertado na sua garganta.
Talvez fosse a sua libertação, um momento de felicidade, uma esperança
encontrada na garrafa que Ana lançou ao mar da Galiza e ao rio Tejo veio desaguar.
Foi António, o pescador de beira-rio, que a entregou a Manuel, percebendo que
aquele nó teimosamente lhe apertava a garganta. E a missiva de Ana foi a última
história que Manuel nos contou até que o nó da sua garganta ficou cada vez mais
lasso: “Ás veces nesa procura da
felicidade imos sen rumbo na nosa rutina, sen saber moi ben a onde, nin cómo...
Nin buscamos, nin pretendemos, incluso, xa cansos de corpo e alma,
desistimos ata de soñar.
Mais a vida, sempre sabia, sáenos ó paso e toma conta. É ela a que
dispón no momento certo, a que ata ou desata os nós.
Chegados a este punto podemos mirar para outro lado negando a evidencia
ou aventurarnos coa vertixe do descoñecido. O tempo é sempre fugaz e non
entende de pausas, nin admite prórrogas. El camiña cara adiante e non agarda
por nada nin por ninguén.
Sempre haberá un porto para aqueles que camiñan descalzos de destinos.
Sempre haberá cordas para os que prefiren ficar presos. Ás veces mesmo é así.
Quizais antes de acontecer, as historias que nos conforman, xa estaban
escritas. Agora só resta ter o valor de vivir, con ou sen nós, pero iso si, sen
quitarlle ollo á corda”.
Adérito Barbosa in olhosemente
Adérito Barbosa in olhosemente
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