Capim eléctrico.
A maior parte do tempo foi passada às voltas com a papelada,
em vez de o ter passado na praia. Outra parte do tempo foi passada a observar a
realidade.
Os meus problemas começaram
com o entendimento que comecei a
ter da sociedade onde estava. Alguns dos funcionários do Estado estão confusos
e não sabem qual a diferença entre o Estado e o Governo. Os funcionários da
administração pública assumem ser funcionários do Governo. Aqui reside toda a
diferença, pois não sabem que o Estado é formado por todos os cidadãos. Um
governo é um grupo de cidadãos que são eleitos, se a sociedade for
democrática, que gerem o Estado, ou o
governam.
Entrei na Casa do Cidadão e como estava cheia e não havia mais
cadeiras, além das nove existentes, sentei-me num lanço de escada da sala de
espera, que se confunde com a recepção. Como os dois lanços de escada eram
largos, sentei-me num cantinho, junto a uma cadeira e comecei a organizar os
meus papéis.
Levantou-se o recepcionista, com ar de chefe da repartição e
disse-me: - Nhô ka pôde xinta na escada.
- Pamodi se ka tem cadera pa xinta, perguntei.
- Nhô ka pode xinta pamodi nhô esta num edifício do governo.
- Desculpe, do governo? Mas esta repartição é uma repartição
do Estado ou do Governo?
- Do Governo!
Por esta e outras situações que vivi, apercebi-me que muitos dos funcionários públicos de base, que
pertencem à administração pública de Cabo Verde, sentem-se funcionários do
governo e não do Estado; quase que diria funcionários do partido, que
interpretam a lei de acordo com a sua visão e conhecimento pessoal e nunca
levam aos seus superiores, para apreciação, assuntos que não dominem.
É uma postura institucionalizada, coisa perfeitamente vulgar.
- Tive sucessivos dissabores na aventura que encetei no mundo
da administração pública em Cabo Verde:
ficaria de cama a beber água, para ver se entendia as peripécias e talvez não estivesse longe da
realidade se aceitasse que era impossível entender.
Os meus ouvidos
acabaram por ser afectados e os meus olhos ficaram turvos pelo que ouviram e
viram. Já descansado da viagem, depois de matar saudades na esplanada, à volta
de uma cachupa guisada com ovo estrelado, regado pelo branco Chã de Fogo,
fresquinho, dei início as démarches daquilo que viria a tornar-se num filme de
terror.
Primeiro passo: dirigi-me aos serviços competentes para
aquisição da minha certidão de nascimento.
Sala apinhada de gente, com lotação três vezes superior à capacidade
da sala, calor infernal, tudo apertado. Chegada a minha vez, não pude levantar
a certidão de nascimento, porque no primeiro averbamento estava escrito o
seguinte: "Cancelado por ter sido transcrito para Lisboa em 1975, nos termos tal e tal...”. No segundo
averbamento, de 1995, constava: “Este assento foi reformulado nos termos do
artigo 32º e seguintes do código civil vigente..."
Para o funcionário, ele próprio auto investido de competências
que só ele sabe, fui considerado estrangeiro, ponto. Resmunguei, pedi que
levasse o assunto ao chefe dos serviços, mas o veredito já estava proferido:- O
Sr. é estrangeiro!
Voltei no outro dia. Esperei, esperei... Chegada a minha vez,
solicitei então a certidão de nascimento da minha mãe e do meu avô, ambos falecidos.
- Lamento imenso, mas não temos sistema; tem de voltar amanhã, disse
gentilmente a senhora.
- Sim senhora, eu volto amanhã. Voltei no dia seguinte. A
espera foi tão longa que, de tanto esperar, desesperei. Chegada a minha vez, lá
estava eu, novamente sentado na cadeira do sofrimento.
- Preciso de uma certidão de nascimento da minha mãe, fulana
tal, falecida há 38 anos.
Desta vez, o sistema estava a funcionar. A senhora lá
encontrou qualquer coisa sobre a minha mãe. Teclou, teclou, teclou, pensou e
voltou a pensar, tomou nota numa folha de rascunho e voltou a teclar. Teclou,
teclou e no fim disse:
- Desculpe, mas o sistema está lento; a certidão da sua mãe
está pendente, o sistema está lento e não consigo imprimir.
- Então não consegue imprimir? perguntei.
- Não, isto ainda está pendente.
- Pendente?
- Sim, está pendente.
- Olhe lá, é possível então uma certidão de óbito da minha
mãe?
- A senhora, muito simpática, voltou à engenharia da tecla.
Teclou e eis que aparece a certidão de óbito da minha mãe.
- Então a senhora tem o óbito avulso e isto não está averbado
na certidão de nascimento. O sistema está com problemas.
Já agora veja se posso levar a certidão de nascimento do meu
avô.
- Que idade tem o seu avô?
- O meu avô teria hoje 95 anos, se fosse vivo.
Novamente começou o martírio dos teclanços. Teclou, teclou,
teclou e, solenemente, disse: - O seu avô não tem nada acerca dele no sistema.
Todos os cidadãos que nasceram antes da data tal não constam no sistema. Leve este número de telefone e ligue amanhã para cá; dê este número aqui que ela entretanto escreveu, para saber se já pode
obter a certidão.
Assim fiz; levei o número comigo e no dia seguinte liguei.
Ninguém atendeu, como já esperava.
Dois dias depois fui à casa do meu avô. Perguntei ao António,
rapaz adoptado e criado pelo meu avô, que cuidou do meu avô e lhe prestou todos
os cuidados, por quem nutro, portanto, grande admiração. O António lembra-se
muito bem de mim, até me indicou os locais onde gostávamos de brincar, quando
ia passar com o meu avô as férias escolares; ele tem a minha idade e trata o
meu avô por papá Bonito isso. O António tem o corpo maltratado pelo sol e pela labuta das
terras. Fiquei a gostar dele. A companheira do meu avô, cujo nome é Etelvina,
está lúcida, bonita, fresca, elegante, é uma mulher super inteligente, com uma
vida dedicada ao meu avô. O velhote do avô tinha bom gosto. A Etelvina parece ter 65
anos, mas deve somar muitos mais, muitos mais, mesmo!
- D. Etelvina, tem aí os documentos do meu avô? perguntei.
- Tenho sim!
Pouco depois, apareceu logo com uma pequena caixa, em forma de
baú. Lá estava o BI do homem, o cartão de eleitor do homem e outros documentos emitidos
pelos registos centrais em 2005.
Resumindo:- O meu avô tem documentos, tem BI votava e tudo mas ele não existe no sistema. No que diz respeito à minha mãe, sabe-se que
faleceu em Lisboa, segundo a certidão de óbito enviada de Lisboa, mas não tem
certidão de nascimento; isto é, morreu uma pessoa que não nasceu. Quanto a mim,
sou estrangeiro, porque pedi a conservação da nacionalidade portuguesa em 1980
e fui riscado do mapa.
A minha filha é cidadã Cabo Verdiana por ser minha filha, mas
eu não!
Dá para entender?
Depois destas lides e
já numa de desafogo cerebral e em conversa com alguém que se licenciou na
Alemanha em Agronomia, falávamos sobre países, culturas, educação. Fiquei a
saber que alguns dos Cabo Verdianos passam a vida a comparar os Estados Unidos
com Portugal e a denegrir a imagem de Portugal e dos Portugueses. A única safa
dos Portugueses é que vozes de burro não chegam ao céu. O que precisam de
saber,lá no fundo, é que os Estados Unidos, como o nome diz, são 50 estados federais,
sendo qualquer um deles maior que Portugal. Só pode ser comparado com a Europa,
mas enfim...
Como ia dizendo, a conversa evoluiu para a electricidade. Como
estudei bem electricidade, nas melhores instituições do país e trabalhei em
instituições com prestígio na área de automação e comando, achei que a conversa
entrara num campo do meu domínio.
Quando se começou com a definição da corrente alterna, comecei
por desenhar a sinusóide do ciclo de frequência no chão, explicando o ponto
de +220 e -220, para explicar a
alternância da corrente, que é aliás o a,e,i,o,u da electricidade.
Qual não foi o meu espanto, quando o Engº Agrónomo, licenciado
na Alemanha, me mandou calar, agoniado, porque eu estava a dizer asneira;
corrigindo-me, disse: - A corrente alterna é uma corrente que vai e vem. Em
crioulo: "ki ta bai e ta bem" e acrescentou: - É diferente de
corrente directa.
Como não sei o que é que vai, nem o que é que vem e nem o que
é directa ou indirecta, a conversa sobre electridade acabou ali mesmo, porque o
Engº Agrónomo, que estudou agronomia na Alemanha, como percebe de electridade,
não quis ouvir e eu, como não quis estupidificar-me com ele, a conversa eléctrica
entrou em curto-circuito e terminou por ali, com o fusível queimado.
No mesmo dia houve um apagão na cidade, à tarde. Então entendi
das razões dos apagões. Foi-se e não veio! pensei eu. Em crioulo " bai e
ka bem más"
Chegado a Lisboa, um ilustre e reputado Cabo Verdiano,de
passagem por Lisboa, telefonou-me para irmos almoçar.
- Então rapaz, como correu a visita à nossa terra?
- Aquilo foi porreiro, pá! A malta é fixe, come-se bem,
evoluiu muito! Falámos nos locais por onde andei, sobre as pessoas com quem
estive, etc, etc, etc... E contei a tal cena que tive com o Engº Agrónomo,
licenciado na Alemanha, que por pouco não degenerou num incidente diplomático
comigo.
Respondeu o meu interlocutor:
- Bonito! o tipo estudou terras e sementes, batatas e palha e manda
bitaites sobre a electridade? Interessante! Não ligues, são assim alguns tipos
iluminados da nossa terra. Entendes agora por que
eu não vivo lá?
Escreve sobre isso, pá e desde já te sugiro o título.
“Capim eléctrico” Já no carro, a caminho do Corte Inglês, lembrou-me
novamente:
- Capim eléctrico, não te esqueças!
Adéito Barbosa
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