poeta.adérito.barbosa.escritor.autor.escritor.artigos.opinião.política.livros.musica.curiosidades.cultura Olhosemlente

domingo, 14 de setembro de 2014

Capim eléctrico.

Capim eléctrico.


A maior parte do tempo foi passada às voltas com a papelada, em vez de o ter passado na praia. Outra parte do tempo foi passada a observar a realidade.
Os meus problemas começaram  com  o entendimento que comecei a ter da sociedade onde estava. Alguns dos funcionários do Estado estão confusos e não sabem qual a diferença entre o Estado e o Governo. Os funcionários da administração pública assumem ser funcionários do Governo. Aqui reside toda a diferença, pois não sabem que o Estado é formado por todos os cidadãos. Um governo é um grupo de cidadãos que são eleitos, se a sociedade for democrática,  que gerem o Estado, ou o governam.
Entrei na Casa do Cidadão e como estava cheia e não havia mais cadeiras, além das nove existentes, sentei-me num lanço de escada da sala de espera, que se confunde com a recepção. Como os dois lanços de escada eram largos, sentei-me num cantinho, junto a uma cadeira e comecei a organizar os meus papéis.
Levantou-se o recepcionista, com ar de chefe da repartição e disse-me: - Nhô ka pôde xinta na escada.
- Pamodi se ka tem cadera pa xinta, perguntei.
- Nhô ka pode xinta pamodi nhô esta num edifício do governo.
- Desculpe, do governo? Mas esta repartição é uma repartição do Estado ou do Governo?
- Do Governo!
Por esta e outras situações que vivi, apercebi-me que  muitos dos funcionários públicos de base, que pertencem à administração pública de Cabo Verde, sentem-se funcionários do governo e não do Estado; quase que diria funcionários do partido, que interpretam a lei de acordo com a sua visão e conhecimento pessoal e nunca levam aos seus superiores, para apreciação, assuntos que não dominem.
É uma postura institucionalizada, coisa perfeitamente vulgar.

- Tive sucessivos dissabores na aventura que encetei no mundo da administração  pública em Cabo Verde: ficaria de cama a beber água, para ver se entendia  as peripécias e talvez não estivesse longe da realidade se aceitasse que era impossível entender.
 Os meus ouvidos acabaram por ser afectados e os meus olhos ficaram turvos pelo que ouviram e viram. Já descansado da viagem, depois de matar saudades na esplanada, à volta de uma cachupa guisada com ovo estrelado, regado pelo branco Chã de Fogo, fresquinho, dei início as démarches daquilo que viria a tornar-se num filme de terror.

Primeiro passo: dirigi-me aos serviços competentes para aquisição da minha certidão de nascimento.
Sala apinhada de gente, com lotação três vezes superior à capacidade da sala, calor infernal, tudo apertado. Chegada a minha vez, não pude levantar a certidão de nascimento, porque no primeiro averbamento estava escrito o seguinte: "Cancelado por ter sido transcrito para Lisboa em 1975,  nos termos tal e tal...”. No segundo averbamento, de 1995, constava: “Este assento foi reformulado nos termos do artigo 32º e seguintes do código civil vigente..."
Para o funcionário, ele próprio auto investido de competências que só ele sabe, fui considerado estrangeiro, ponto. Resmunguei, pedi que levasse o assunto ao chefe dos serviços, mas o veredito já estava proferido:- O Sr. é estrangeiro!

Voltei no outro dia. Esperei, esperei... Chegada a minha vez, solicitei então a certidão de nascimento da minha mãe e do meu avô, ambos falecidos. - Lamento imenso, mas não temos sistema; tem de voltar amanhã, disse gentilmente a senhora.
- Sim senhora, eu volto amanhã. Voltei no dia seguinte. A espera foi tão longa que, de tanto esperar, desesperei. Chegada a minha vez, lá estava eu, novamente sentado na cadeira do sofrimento.
- Preciso de uma certidão de nascimento da minha mãe, fulana tal, falecida há 38 anos.
Desta vez, o sistema estava a funcionar. A senhora lá encontrou qualquer coisa sobre a minha mãe. Teclou, teclou, teclou, pensou e voltou a pensar, tomou nota numa folha de rascunho e voltou a teclar. Teclou, teclou e no fim disse:
- Desculpe, mas o sistema está lento; a certidão da sua mãe está pendente, o sistema está lento e não consigo imprimir.
- Então não consegue imprimir? perguntei.
- Não, isto ainda está pendente.
- Pendente?
- Sim, está pendente.
- Olhe lá, é possível então uma certidão de óbito da minha mãe?
- A senhora, muito simpática, voltou à engenharia da tecla. Teclou e eis que aparece a certidão de óbito da minha mãe.
- Então a senhora tem o óbito avulso e isto não está averbado na certidão de nascimento. O sistema está com problemas.
Já agora veja se posso levar a certidão de nascimento do meu avô.
- Que idade tem o seu avô?
- O meu avô teria hoje 95 anos, se fosse vivo.
Novamente começou o martírio dos teclanços. Teclou, teclou, teclou e, solenemente, disse: - O seu avô não tem nada acerca dele no sistema. Todos os cidadãos que nasceram antes da data tal não constam no sistema. Leve este número de telefone e ligue amanhã para cá; dê este número aqui que ela entretanto escreveu, para saber se já pode obter a certidão.
Assim fiz; levei o número comigo e no dia seguinte liguei. Ninguém atendeu, como já esperava.

Dois dias depois fui à casa do meu avô. Perguntei ao António, rapaz adoptado e criado pelo meu avô, que cuidou do meu avô e lhe prestou todos os cuidados, por quem nutro, portanto, grande admiração. O António lembra-se muito bem de mim, até me indicou os locais onde gostávamos de brincar, quando ia passar com o meu avô as férias escolares; ele tem a minha idade e trata o meu avô por papá Bonito isso. O António tem o corpo maltratado pelo sol e pela labuta das terras. Fiquei a gostar dele. A companheira do meu avô, cujo nome é Etelvina, está lúcida, bonita, fresca, elegante, é uma mulher super inteligente, com uma vida dedicada ao meu avô. O velhote do avô tinha bom gosto. A Etelvina parece ter 65 anos, mas deve somar muitos mais, muitos mais, mesmo!
- D. Etelvina, tem aí os documentos do meu avô? perguntei.
- Tenho sim!
Pouco depois, apareceu logo com uma pequena caixa, em forma de baú. Lá estava o BI do homem, o cartão de eleitor do homem e outros documentos emitidos pelos registos centrais em 2005.
Resumindo:- O meu avô tem documentos, tem BI votava e tudo mas ele não existe no sistema. No que diz respeito à minha mãe, sabe-se que faleceu em Lisboa, segundo a certidão de óbito enviada de Lisboa, mas não tem certidão de nascimento; isto é, morreu uma pessoa que não nasceu. Quanto a mim, sou estrangeiro, porque pedi a conservação da nacionalidade portuguesa em 1980 e fui riscado do mapa.
A minha filha é cidadã Cabo Verdiana por ser minha filha, mas eu não!
Dá para entender?

Depois destas lides  e já numa de desafogo cerebral e em conversa com alguém que se licenciou na Alemanha em Agronomia, falávamos sobre países, culturas, educação. Fiquei a saber que alguns dos Cabo Verdianos passam a vida a comparar os Estados Unidos com Portugal e a denegrir a imagem de Portugal e dos Portugueses. A única safa dos Portugueses é que vozes de burro não chegam ao céu. O que precisam de saber,lá no fundo, é que os Estados Unidos, como o nome diz, são 50 estados federais, sendo qualquer um deles maior que Portugal. Só pode ser comparado com a Europa, mas enfim...

Como ia dizendo, a conversa evoluiu para a electricidade. Como estudei bem electricidade, nas melhores instituições do país e trabalhei em instituições com prestígio na área de automação e comando, achei que a conversa entrara num campo do meu domínio.
Quando se começou com a definição da corrente alterna, comecei por desenhar a sinusóide do ciclo de frequência no chão, explicando o ponto de  +220 e -220, para explicar a alternância da corrente, que é aliás o a,e,i,o,u da electricidade.
Qual não foi o meu espanto, quando o Engº Agrónomo, licenciado na Alemanha, me mandou calar, agoniado, porque eu estava a dizer asneira; corrigindo-me, disse: - A corrente alterna é uma corrente que vai e vem. Em crioulo: "ki ta bai e ta bem" e acrescentou: - É diferente de corrente directa.
Como não sei o que é que vai, nem o que é que vem e nem o que é  directa ou indirecta, a conversa sobre electridade acabou ali mesmo, porque o Engº Agrónomo, que estudou agronomia na Alemanha, como percebe de electridade, não quis ouvir e eu, como não quis estupidificar-me com ele, a conversa eléctrica entrou em curto-circuito e terminou por ali, com o fusível queimado.
No mesmo dia houve um apagão na cidade, à tarde. Então entendi das razões dos apagões. Foi-se e não veio! pensei eu. Em crioulo " bai e ka bem más"

Chegado a Lisboa, um ilustre e reputado Cabo Verdiano,de passagem por Lisboa, telefonou-me para irmos almoçar.
- Então rapaz, como correu a visita à nossa terra?
- Aquilo foi porreiro, pá! A malta é fixe, come-se bem, evoluiu muito! Falámos nos locais por onde andei, sobre as pessoas com quem estive, etc, etc, etc... E contei a tal cena que tive com o Engº Agrónomo, licenciado na Alemanha, que por pouco não degenerou num incidente diplomático comigo.
Respondeu o meu interlocutor:
- Bonito! o tipo estudou terras e sementes, batatas e palha e manda bitaites sobre a electridade? Interessante! Não ligues, são assim alguns tipos iluminados da nossa terra. Entendes agora por que  eu não vivo lá?
Escreve sobre isso, pá e desde já te sugiro o título.
“Capim eléctrico” Já no carro, a caminho do Corte Inglês, lembrou-me novamente:

- Capim eléctrico, não te esqueças!

Adéito Barbosa

Sem comentários:

Enviar um comentário

Publicação em destaque

Florbela Espanca, Correspondência (1916)

"Eu não sou como muita gente: entusiasmada até à loucura no princípio das afeições e depois, passado um mês, completamente desinter...