Venderam-me uma ilusão. Disseram-me que vivia numa sociedade igualitária, onde a justiça era para todos, a política servia o bem comum e o jornalismo informava. Garantiram-me que os médicos cuidavam da saúde dos doentes, a polícia protegia os cidadãos, os professores ensinavam, os prados eram verdes e as galinhas esgravatavam a terra como sempre fizeram. Que os militares viviam nos quartéis.
Agora, olho à minha volta e vejo uma farsa. A política tornou-se um teatro do absurdo, onde governar é um jogo de bastidores e influências, e não uma missão de serviço público. Ser competente é um defeito, ter experiência de vida é um obstáculo. Se trabalhei, se construí algo, se me envolvi na realidade, então sou suspeito. Só aqueles que nunca fizeram nada na vida têm currículo para mandar. Se tive um café onde servia uns copos a um grupo de jogadores de cartas, já não posso ser ministro do vinho. Se tive galinhas no quintal e vendi ovos ao vizinho, então não posso tutelar a pasta da Agricultura. Os governantes são escolhidos como se a experiência fosse um crime.
E enquanto essa gente nos distrai com casos e casinhos, esquecem-se de falar dos advogados das grandes sociedades que se sentam no Parlamento a cozinhar leis ao gosto dos amigos. Esses, ninguém questiona.
Quanto ao jornalismo, já não há. Há jornaleiros, fabricantes de factos e mercadores de polémicas — ou melhor, vendilhões do templo. Passam o tempo a construir narrativas, a inventar escândalos, a decidir quem será crucificado no dia seguinte. Não informam, moldam. Não investigam, insinuam. Não questionam, impõem. Criam factos, comentam os factos que criaram e vendem-nos como se fossem a verdade revelada. E assim se vive, num ciclo vicioso onde a notícia de ontem já não interessa, porque hoje há uma nova indignação artificial para vender. É a perpetuação do jornalixo.
Por sua vez, os professores, que em princípio eram para ensinar, acabaram por criar uma superclasse: a dos diretores escolares, com presidente e tudo. Viraram gestores eternos de escolas e passam o tempo a fazer política.
Na semana passada, congratularam-se com o Governo por ter despejado milhões em computadores para as escolas por causa das provas intermédias. Enquanto há países europeus a bani-los das salas de aula, cá celebra-se o dia do descarregamento dos computadores. Claro que ninguém se lembrou de arrancar a ardósia das paredes. Os quadros velhos continuam lá, ao lado dos quadros eletrónicos novinhos, como um símbolo perfeito da contradição em que vivemos: vendem-nos modernidade, mas mantêm o peso do passado. Com estas mordomias, qualquer dia os professores deixam de saber escrever. Dos alunos, nem vale a pena falar.
E no meio disto tudo, lá aparece Filinto Lima, sempre pronto para discursar. No outro dia, na Antena 1, discutia-se um estudo liderado pelo professor David Justino sobre a escola e a educação. No meio do estudo, concluiu-se que há um número significativo de turmas com quinze alunos ou menos. Aquilo foi fogo no rabo do Filinto — o tipo apareceu indignado com o resultado do estudo, com aquela conversa paternalista em nome dos alunos, que sinceramente já me cansa. A certa altura, um professor humilde entrou em antena e disse o que toda a gente pensa: que os diretores, incluindo o Filinto, estão agarrados ao lugar, que não largam o osso, e que já não fazem falta. Os senhores diretores, figuras ultrapassadas e longe da realidade, querem é eternidade nos cargos, a preparar o futuro dos jovens. Um absurdo, disse ele.
“Mas que futuro? Um futuro em que os professores passam mais tempo a preencher grelhas e relatórios do que a ensinar? Em que os diretores são figuras vitalícias e aparecem na televisão sempre que um aluno se constipa?”
E o país segue ao ritmo dos comentadeiros: os militares passaram a políticos, de tal forma que parecem galinholas com grafonolas na mão, a berrar de manhã à noite, armados em especialistas de assuntos que desconhecem. O gado ainda pasta, as galinhas ainda esgravatam, os rios ainda correm para o mar e o preço de uma garrafa de água já custa tanto como um litro de gasolina. Tudo aquilo que me venderam como certo está a ir pelo cano, e eu pergunto-me se não fui eu que sonhei demais.
Imagino um país onde a política é um serviço e não um trampolim, onde os jornalistas voltam a ser jornalistas e não fabricantes de polémicas, onde os diretores escolares largam o osso e deixam de aparecer na televisão ao mínimo espirro. Um país onde pensar ainda é permitido, onde o mérito conta, onde a experiência de vida não é um defeito e onde ser rico não é pecado.
Um país onde a democracia cumpra o que prometeu.
E, já agora, um país onde alguém me consiga explicar a história da Solverde e do Primeiro-Ministro Montenegro.
Adérito Barbosa in olhosrmlente.blogspot.com
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