Ferreira Fernandes
04 Janeiro 2020 publicado Diário de Notícias
Há dez anos, o general iraniano Qassem Soleimani (1957-2020) discursou para os seus homens: "O campo de batalha é o paraíso perdido da humanidade." E, ciente do lirismo da frase, assim poeta continuou: "O paraíso onde a virtude e os atos dos homens estão no plano mais alto." No plano artístico, declamatório seja só este, as batalhas gostam de pairar alto: "Do alto destas pirâmides, quarenta séculos vos contemplam", já dissera outro general, Napoleão Bonaparte, em Gizé.
As batalhas antes de matar (os outros, outros), a jusante, têm de empolgar (os outros, nossos), a montante. Como a valentia dos soldados nem sempre é natural, ela deve ser espicaçada pelas palavras dos generais. Estes muitas vezes foram mais hábeis nos discursos prévios do que valorosos nos combates que se seguiram, o que não foi o caso do general Soleimani. Quarenta anos antes do discurso citado, no começo da Revolução Iraniana, o jovem trolha que ingressou na Guarda Revolucionária Islâmica, batalhão pretoriano e religioso do ayatollah Khomeini, começou a fazer carreira na guerra. E a carreira que fez, apesar das citações iniciais desta crónica, não se valeu sobretudo de palavras.
Ele aprendeu da guerra os combates e a intendência, onde se notabilizou contra o primeiro inimigo, o Iraque do sunita Saddam Hussein, e, recentemente, nos dez últimos anos, expandindo a influência do Irão xiita pela Síria, pelo Líbano e pela Palestina... Bom de guerra, Qassem Soleimani pôs sempre os seus combates ao serviço da visão política que tinha para o seu país. A influência deste, nas duas últimas décadas e sobretudo graças a ele, não cessou de crescer na região mais explosiva do mundo, o Médio Oriente. A região que mais dramaticamente pode vir a influenciar o mundo, ganhando-o, o que será péssimo, ou implodindo, o que não deixará também de ser trágico.
Mas o sapateiro que escreve esta crónica não quer subir ao tornozelo da geopolítica, basta-lhe a altura do cérebro de Qassem Soleimani, onde as linhas e os fusíveis produziram aquelas duas frases: "O campo de batalha é o paraíso perdido da humanidade" e "o paraíso onde a virtude e os atos dos homens estão no plano mais alto." Quem assim falou não foi tanto para os seus homens, soldados, religiosos, fiéis e prosélitos, foi para si. Foram palavras de mártir. Se querem que vos diga, na categoria dos combatentes que atravessaram a história da humanidade, os mártires foram e são os mais perigosos para essa humanidade.
Perder perdem sempre, mais cedo ou mais tarde, os generais das batalhas, tal como os civis que tremem com fogo de artifício. Napoleão venceu a citada batalha das Pirâmides e não venceria depois em Waterloo - mas bateu as botas, quinou, enfim, desapareceu definitivamente num lugar, a ilha de Santa Helena, onde a única batalha, em milénios, tem sido entre gaivotas, com muitos berros e poucas penas arrancadas. Com a promessa de um punhado de virgens ou de anjos com trombetas, à espera, ninguém é cobarde, nem mesmo só prudente. Por isso os mártires arriscam-se à vontade
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