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sábado, 14 de dezembro de 2024

Eu só queria entrar no rádio e dar-lhe um beijo


No ano passado, encontrei no OLX uma guitarra electroacústica sólida, mas “surda” para alguns. A guitarra tinha sofrido um acidente: a ponte descolou e, com ela, veio um pedaço da pintura de luxo. Uma desgraça que deixou alma do ex dono lixada. Comprei-a por uma pechincha e deixei-a na garagem, condenada à espera. Só hoje, ao montar a bancada, decidi recuperar a guitarra. Rádio ligado, lixas na mão, comecei a remover as camadas irregulares de betume. Foi então que, do nada, ouvi a entrevista da senhora presidente da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, Margarida Corrêa de Aguiar.  

No programa “Dúvidas Públicas” da Renascença, Margarida desfilava promessas, tal qual uma artesã a restaurar o brilho de um instrumento gasto. Prometeu um Fundo Sísmico – um nome pomposo para um projecto com cheiro a imposto disfarçado –, garantiu que os seguros subiriam menos em 2025, incentivou a poupança para a reforma e, como num truque de ilusionismo verbal, tentou tranquilizar o povo sobre os tropeços do Montepio.  

Mas, enquanto a senhora pintava o cenário com palavras cuidadosas, senti uma vontade tremenda de entrar pelo rádio adentro, passar pelos circuitos, sair pela antena e ir até ao estúdio da Renascença dar-lhe um beijinho de gratidão pelo discurso bem ensaiado. O tom professoral, intercalado com pitadas de paternalismo, criava a ilusão de autoridade. Mas bastava ouvir com atenção para perceber as falhas: o Fundo Sísmico, uma ideia reciclada de governos anteriores, parecia mais uma tentativa de transferir o risco do Estado para os já sobrecarregados cidadãos.  

Seguro obrigatório para todos os imóveis? Uma medida que parece proteger, mas que, na prática, só vai pesar nos bolsos de quem já se encontra sem nenhum.

Quanto aos PPRs e fundos complementares de pensões, a presidente pintava um cenário de incentivos necessários, mas esquecia-se de mencionar a desconfiança generalizada dos trabalhadores. Como investir num sistema que há muito tempo perdeu credibilidade? As seguradoras, envolvidas em escândalos e más práticas, continuam a operar com uma liberdade que desafia qualquer lógica. O Montepio, em particular, é o exemplo gritante de como o sistema insiste em empurrar problemas para debaixo do tapete, enquanto pede paciência e compreensão aos contribuintes.


Enquanto lixava a guitarra, percebia como a narrativa da senhora era, no fundo, uma metáfora perfeita para a nossa realidade. A ponte descolada representava a desconexão entre as promessas políticas e a execução prática. O verniz arrancado expunha a fragilidade de uma estrutura que, por fora, ainda tenta parecer sólida. As cordas frouxas, inúteis, ressoavam a impotência do cidadão comum diante de um sistema que o prende em contratos e regulamentos que só favorecem as seguradoras e as elites.  

A guitarra, ainda inacabada, ficou na bancada enquanto eu desligava o rádio. A entrevista terminou como terminam todas as grandes promessas: com mais dúvidas do que certezas. A ASF, com a sua presidente de fala macia, não apresenta soluções concretas, apenas um repertório de intenções vagas que deixam o povo à mercê do improviso político e económico.  

Confrontada com as más práticas dos seguros respondeu que a ASF não é fiscal.

Com essa resposta passou-me a vontade de lhe ir dar um beijinho e apoderou-se de mim uma vontade enorme de a mandar para um sítio que eu cá sei.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

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