Presidente Marcelo vai participar no evento na cidade da Praia que celebra os 50 anos da transferência da soberania de Portugal sobre Cabo Verde para o Partido da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).
A visita do Presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, a Cabo Verde nos dias 18 e 19 de dezembro de 2024, não poderia deixar de evocar memórias amargas e questões mal resolvidas sobre o processo de independência de Cabo Verde.
A festa que celebra os 50 anos da assinatura do acordo de transferência de soberania deveria ser, no mínimo, ocasião para um debate honesto e sem ilusões. Contudo, a realidade é outra: perpetua-se uma narrativa conveniente, que ignora os erros históricos e disfarça os interesses atuais.
O documento assinado em 19 de dezembro de 1974 entre Portugal e o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) não foi um acordo genuíno de descolonização, mas sim a entrega leviana de Cabo Verde a um grupo político com agenda totalitária que jamais lutara nas ilhas!
Não houve referendo! Não houve consulta popular! O povo cabo-verdiano, tratado como espectador, viu o seu futuro ser decidido numa sala fechada, sob a pressão de um contexto pós-revolucionário em Portugal e sob a chantagem do PAIGC e da ala radical do MFA.
Após o 25 de abril de 1974, três possíveis destinos se desenharam para Cabo Verde:
1 - Continuação da ligação a Portugal, como região autónoma, com administração local totalmente cabo-verdiana, sob soberania portuguesa;
2 - Independência imediata, alinhada com o projeto do PAIGC, que previa a união com a Guiné-Bissau, regime de partido único e economia planificada;
3 - Independência a médio prazo, com um período de transição que garantiria a criação de condições estruturais para a sustentabilidade do Estado e a formação de quadros qualificados. A primeira e a terceira opções foram esmagadas por uma aliança nefasta entre o PAIGC e a delegação do MFA local.
A imposição foi clara: ou Portugal aceitava as condições do PAIGC, reconhecendo-o como único e legítimo representante de Cabo Verde, ou perderia qualquer controlo sobre o processo. Aqui aconteceu violação de Direitos e Silêncio Cúmplice.
A transição foi marcada pela repressão jamais vista em Cabo Verde. Cerca de 70 cabo-verdianos, acusados de se oporem ao modelo de independência imposto, foram presos e maltratados, e desterrados para Portugal, sob prisão. Lembro entre eles o meu amigo e falecido Miguel Ângelo e Cecílio Nunes vítimas da campanha de intimidação que evidenciava o caráter autoritário do regime em gestação que durou cerca de 15 anos.
Não se tratava de uma independência plural e democrática para um povo que viveu o fascismo, mas de um processo conduzido sob a lógica do partido único, com um projeto de poder totalitário, servido por milícias.
Portugal, por sua vez, lavou as mãos melhor que Pilatos: O acordo de 19 de dezembro de 1974 foi tão mal digerido que nunca foi publicado no Diário do Governo. Juridicamente, esse documento nem sequer existe, mas politicamente selou a entrega de Cabo Verde ao PAIGC, sem garantias de legitimidade, estabilidade ou de justiça.
Neste contexto a presença de Marcelo Rebelo de Sousa nesta cerimónia não é apenas um ato de descuido histórico, mas também um elemento conveniente no xadrez político de Cabo Verde.
A celebração do "acordo" permite ao Presidente cabo-verdiano, José Maria Neves, suavizar as críticas e desviar a atenção do povo das controvérsias que o cercam. Entre os escândalos mais recentes estão as acusações de má gestão financeira da presidência, compra de quadros ao seu chefe da casa civil, nomeação da namorada para um cargo que não existe, e o uso de dinheiro público em actividades de caráter censurável, como o pagamento de supostos serviços "amorosos". Esta celebração surge como uma oportunidade perfeita para diluir essas críticas, distrair o público e desviar o foco de comportamentos questionáveis que deveriam estar sob escrutínio rigoroso.
Marcelo e o Erro de Validar o Erro. Ao aceitar o convite, ignora não apenas o peso histórico do acordo de 1974, mas também os problemas contemporâneos que ele ajuda, inadvertidamente ou não, a encobrir. A sua presença, em vez de ser um gesto diplomático, torna-se cúmplice de uma celebração que finge apagar os erros do passado e mascara os desafios do presente.
Cinquenta anos depois, o Parlamento cabo-verdiano, que compreende bem o peso deste acordo, opta por não se envolver na cerimónia. Talvez saiba que o verdadeiro significado deste "aniversário" está longe de ser motivo de celebração.
Este meu artigo não é um ataque gratuito, mas sim um alerta: a história não deve ser distorcida para conveniência política, e as feridas de um processo de descolonização injusto ainda não cicatrizaram. Fingir que tudo foi resolvido com um aperto de mãos em Lisboa é um insulto à memória de quem sofreu as consequências deste ato de entrega. Enquanto isso, a festa dos 50 anos é, na prática, um teatro conveniente para os que precisam de distrações.
Adérito Barbosa in olhosemente.blogspot.com
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