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segunda-feira, 30 de junho de 2025

Rapsódia da cor e da palavra

 Na língua portuguesa, a palavra em si já dita a sentença — o negro é réu antes do crime.

Queres ver?

— Se tens um marginal na família, o tipo é a ovelha negra da família.

— Se o teu registo criminal tem menções, então estás na lista negra.

— Se faltou luz no país, o país entrou em black-out.

— Se se tem muita fome, a fome é negra.

— Morreu alguém? Há luto. Qual é a cor? Preta.

— Se a vida não está a correr bem, a coisa está a ficar preta.

— Se tudo está certo, está tudo claro.

— Se há algum pormenor oculto, está obscuro.

— Se a memória falha, deu-me uma branca.

— Se se fala mal de alguém, está-se a denegrir.

— Se foges ao fisco, estás a sonegar ao Estado.

E ainda:

— A pior peste da História é a peste negra.

— A cor do amor é vermelha, a do dinheiro é amarela.

— Quando é difícil  fazer algo a pessoa vê-se negra para conseguir

— Quando não há Papa, sai fumo negro.

E se és problema no seio de um grupo - não passas de preto feio.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 27 de junho de 2025

A FOME DO LUME




Já me tens nas trevas,

a escorrer sangue das veias,

feito lume escondido,

nos olhos do demónio,

a cuspir silêncio.


Sou música das maldições

de Iron Maiden,

Sou o riso dos acrobatas

do inferno,

Sou quem dança enquanto ardo.


No fundo do grito

há uma ausência que canta.

É aí que te encontro,

É aí que me chamas,

sem saberes o meu nome.

Sinto a fome do desejo,

vermelha, crua,

rasgada nas entranhas.


Cor de sangue —

gota que lambe o corpo -‐

gota que não seca.

Lágrimas de orvalho,

lamber chão,

num suspiro

que não se encontra,

que morre antes de nascer.

Ver sem forma,

gritar sem boca

até deixar de caber...

em mim.


Não entendo, mas luto.

Luto de mãos fechadas

contra o vento que me veste.

Na ópera do Drácula em 

"Forgetting Sarah Marshall",

dançando de sentidos partidos,

verdades do "Hallowed be thy name"

que se engasgam na língua.


E então, 

as palavras são só cascas.

Os sons são só ecos.

Tudo ecoa

e eu sou o Drácula. 

E alguém me chama,

e eu não sei.

O mundo afunda-se no ruído

e eu, de pé, ainda ardo.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

terça-feira, 24 de junho de 2025

I am a descendant of Mr. Ambrósio Silva






O mais recente desastre aéreo na Índia revelou a alma putrefacta da república portuguesa. Entre os 298 desgraçados que subiram ao céu, estavam sete portugueses que nunca ouviram sequer um fado, e talvez nem sabiam onde ficava  portugal. Obtinham passaportes com uma facilidade tremenda, mais rápido que uma trincadela num pastel de bacalhau. Tudo graças ao labirinto legislativo do Governo da geringonça, que transformou a Constituição num menu de bufê, onde cada um serve-se a gosto e ninguém lava os pratos.

Segundo o jornal O Diabo (que, como todos sabemos, é o único periódico com coragem de chamar nomes às coisas), milhares de indianos — pasme-se, quase cem mil por ano! — usam Portugal como escadote para a Europa. Naturalizam-se mais depressa do que o meu neto de cinco anos muda de clube. Tudo com a ajuda de redes mafiosas que anunciam passaportes portugueses genuínos como se fossem tupperwares em promoção na feira de Nova Deli.

Cheguei mesmo a visitar um desses sites. Entre conselhos sobre como parecer devoto do Mr. Silva (uma divindade civil fictícia que substitui o nosso falecido Estado-nação), ensinavam como inventar aldeias transmontanas onde ninguém fala português, mas toda a gente sabe tirar fotocópias. Por diversão mórbida, fui procurar os nomes indianos mais comuns. Depois juntei “Silva”, claro. O resultado? Uma nova geração de lusos.

Rav Silva – Deus do Sol e da bica tirada curta.

Aditya Silva – Filho de Aditi e sobrinho do António Costa.

Dev Silva – Divino e isento de IRS.

Indra Silva – Deus da chuva, causa directa das infiltrações no IC19.

Hari Silva – Leão com passe da TAP.

Raj Silva – Príncipe do SEF.

Surya Silva – deus dos vistos gold.

Mohan Silva – deus da isenção de prova de residência.

Kabir Silva – Deus das filas do consulado.

Aarav Silva – Deus passaportes português 

Harvinder Silva – Deus do vinho, senhor do tinto do LIDL.

Nota de rodapé: Foi preciso cair um avião para se descobrir a marosca dos passaportes dos Silvas. Não havia necessidade.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

domingo, 22 de junho de 2025

Sissoco Embaló, o mediador dos confusão

 


Sissoco Embaló, esse prodígio da diplomacia do absurdo. O tipo que olha para uma guerra e pensa: "aqui está uma oportunidade para eu montar os confusão." Quando rebentou a guerra na Ucrânia, apareceu ele, peito cheio e raciocínio vazio, a oferecer-se como mediador do conflito. Disse, com a segurança de um iluminado num manicómio:

- Nós estamos habituados a viver nos confusão. Pudemos resolver os confusão na Ucrânia.

Genial, absolutamente genial. Porque, claro, quem melhor para resolver uma guerra entre potências militares do que alguém que vive num país onde as eleições são tão previsíveis como a lotaria, onde presidentes caem como tordos em época de caça. A Guiné-Bissau, segundo Sissoco, é basicamente Harvard dos confusão. E ele, com toda a humildade de um semideus africano, é doutorado em caos aplicado — para não dizer burrice pura e dura. E agora, como se o planeta já não estivesse suficientemente virado do avesso, Sissoco reaparece. Desta vez, quer resolver o conflito no Médio Oriente. A sério. Como quem diz: - já que pus ordem em Bissau, agora vou dar um saltinho ao Irão e a Israel para resolver mais uns confusãozinhos.” Talvez leve um saco de mancarra como oferenda de paz, ou talvez vá só com a sua retórica desengonçada e aquele ego que encheria o Estádio da Luz.Este fulano, que confunde diplomacia com conversa de tabanca, que acha que liderar é fazer discursos em crioulo como se fosse Esperanto para a paz mundial, continua a dar entrevistas como se estivesse a mudar o mundo — quando, na verdade, só está a mudar os canais de quem tem o azar de o ouvir na televisão, neste caso concreto O Observador, esse conhecidíssimo braço armado do Ministério Público português.

Mas voltando ao que interessa, façamos justiça à sua carreira gloriosa. Há cinquenta anos que vive metido nos confusão — e com gosto. Não bastava ser presidente de um dos países mais instáveis do mundo, não. Sissoco tem ambições históricas. Lembremo-nos do legado espiritual que herdou do seu patrono ideológico, Amílcar Cabral, o líder exportado para Cabo Verde como se fosse um presente de casamento que ninguém pediu. Um carniceiro que mandou matar milhares de guineenses, e que fez mais para dividir do que unir. Hoje é herói em Cabo Verde. Haja paciência.E depois há esta mania parva de que a Guiné e Cabo Verde são siameses separados à força por uma cesariana portuguesa. Sissoco fala de unidade — já anexou Cabo Verde, impôs-lhes, por longos anos um macabro governo comunista, impôs o dialecto crioulo como língua suprema, fazendo meia dúzia de palermas acharem que o português é só uma marquinha colonial que atrapalha a verdadeira essência da palhota. É com essa lógica que o burro do Neves propôs que o crioulo passasse a ser língua oficial de Cabo Verde.Sissoco Embaló é o tipo de anormal- daqueles em que ninguém sabe se está a brincar ou a falar a sério. Mas neste mundo de pernas para o ar, o homem está em cimeiras, aperta a mão a Putin, manda e-mails para Netanyahu e dá entrevistas a falar da sua “missão de paz universal”, como se fosse uma mistura de Gandhi com o Zé Povinho.

E o mais incrível? Há sempre alguém que o ouve. Há sempre um microfone apontado, uma câmara ligada, um assessor a dizer: - excelência, ficou muito bem! O mundo precisa de paz, sim. Mas também precisa de menos Sissocos a complicar ainda mais os confusão.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Quando a Ideologia fala mais alto que os factos

A recente confirmação da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) de que as centrífugadoras nucleares iranianas localizadas em Karaj e Natanz foram severamente atingidas e ficaram fora de serviço deveria, à luz dos factos, encerrar qualquer debate sobre o alcance e eficácia da operação militar israelita. Contudo, perante este cenário cristalino, o General Agostinho Costa continua, nos estúdios da CNN Portugal, numa campanha obstinada de negação da realidade, defendendo com convicção inabalável que Israel “não atingiu nada”, que “não há domínio aéreo em Teerão” e que as forças armadas iranianas “são as maiores do mundo”. É impossível assistir a este tipo de comentário sem sentir um profundo desconforto — não só pelo conteúdo ideologicamente enviesado, mas pelo estatuto de autoridade militar que o general representa. A sua postura não é apenas desinformada; é perigosamente cúmplice de uma narrativa que visa descredibilizar os interesses estratégicos do Ocidente em benefício de regimes autoritários e teocráticos. A insistência cega de Agostinho Costa em relativizar ou negar factos atestados por fontes independentes e credíveis revela mais do que uma simples cegueira ou erro de análise. Trata-se de uma linha de discurso cuidadosamente alinhada com uma corrente ideológica que há muito se enraizou em certos setores da opinião pública: uma mistura de antiamericanismo primário, romantismo antiocidental e simpatia ativa por regimes autocráticos sob o disfarce de resistência ao “imperialismo”. Neste caso, é o Irão que merece a defesa cega do general — mas podia ser a Rússia ou a Síria, como já o vimos fazer no passado recente. A verdade é que o General Agostinho Costa, general (NATO) com visível costela soviética, parece mais empenhado em manter viva a chama da Guerra Fria do que em contribuir com análises militares honestas e informadas. A sua leitura da atualidade internacional está contaminada por uma nostalgia ideológica, uma espécie de síndrome de Moscovo, que distorce permanentemente o seu julgamento. É curioso como, independentemente do tema, Agostinho Costa parece sempre encontrar uma forma de colocar a Rússia, o Irão ou grupos armados como o Hamas ou Hezbollah na posição de vítimas injustiçadas — enquanto Israel, os Estados Unidos ou a NATO são invariavelmente retratados como agressores imperialistas. Esta parcialidade é ainda mais grave por ser apresentada sob a capa de "análise militar especializada". O público, ao ouvir um general português a comentar assuntos internacionais, espera ponderação, conhecimento técnico e, sobretudo, independência. Mas o que recebe de Agostinho Costa é uma ladainha panfletária, repetida ad nauseam, com os mesmos chavões: “resistência armada”, “ingerência ocidental”, “soberania dos povos” — tudo, evidentemente, desde que esses  “povos” estejam alinhados com Moscovo ou Teerão. A questão ganha contornos ainda mais preocupantes com os relatos crescentes de que existe uma rede bem estruturada de comentadores pro-Rússia e pro-Irão nos media europeus, muitos deles direta ou indiretamente financiados para propalarem uma narrativa de sucesso militar das forças aliadas a Moscovo, Líbano, Gaza ou Teerão. Esta propaganda, disfarçada de análise, tem como objetivo enfraquecer o consenso ocidental, gerar confusão entre a opinião pública e legitimar as ações de regimes que desprezam sistematicamente os direitos humanos e o direito internacional. E, quer se queira admitir ou não, o General Agostinho Costa está a desempenhar um papel ativo — consciente ou inconsciente — nesse esforço de desinformação.

A guerra da informação é hoje tão importante quanto a guerra no terreno. E quando figuras públicas com passado militar e acesso privilegiado aos media se tornam peças dessa máquina de propaganda, estamos perante um problema de segurança e credibilidade nacional. O espaço público democrático deve ser plural e aberto ao debate — mas também deve exigir responsabilidade. A liberdade de expressão não pode ser escudo para quem, sob o pretexto de "opinião", promove sistematicamente interesses antidemocráticos e revisionistas. Os factos são claros: Israel lançou uma operação cirúrgica que conseguiu danificar instalações nucleares iranianas de alta relevância, segundo confirma a própria AIEA. Esta ação demonstra, independentemente da opinião que se possa ter sobre os méritos morais da mesma, uma superioridade tecnológica e estratégica assinalável. Negar isto é negar a realidade. E quando essa negação vem de um oficial-general reformado, que deveria estar ao serviço da verdade e da soberania da informação, isso deixa de ser apenas patético — passa a ser profundamente irresponsável. A televisão não pode continuar a servir de tribuna a este tipo de propaganda encapotada. É preciso fazer perguntas sérias: a quem serve o General Costa? Com quem se alinha ideologicamente? E por que continua a gozar de tanto tempo de antena para espalhar posições que coincidem, de forma quase milimétrica, com a retórica oficial de regimes hostis ao Ocidente? Está na hora de fazer um escrutínio sério sobre a qualidade e independência dos comentadores que povoam os nossos media. Não podemos continuar a aceitar, em nome do pluralismo, que se ofereça palco a quem trocou o rigor pela ideologia e a análise pela propaganda. O caso do General Agostinho Costa é apenas o mais evidente — mas não é único. É urgente defender a informação da intoxicação programada que visa corroer os alicerces do debate democrático.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 16 de junho de 2025

A Europa apaixonou-se por si própria e fodeu-se


Enquanto o Médio Oriente arde a sério, com explosões, corpos mutilados, drones a caçar gente como moscas e blocos de betão a esmagarem famílias inteiras, a Europa continua de volta dos seus salões envidraçados. Cimeira atrás de cimeira, entre bandeiras içadas e selfies, António Costa e companhia desfilam como se estivessem a gerir um clube de golfe da Consolação, entre beijinhos de circunstância, discursos vazios e a eterna encenação do “nós, europeus, somos a consciência moral do mundo”. 

A verdade, nua e crua, é que a Europa está fora das grandes decisões. Não por falta de história, de peso económico ou de cultura estratégica — mas porque preferiu sonhar durante décadas no sentido mais infantil da palavra: progressista, pacífica, multicultural, eticamente superior, oásis da civilização entre selvagens. Tanto parlapier gasto a sonhar, a pregar, a organizar cimeiras, discursos do clima, do amor fraterno, e da transição ecológica, o gás russo fluía para as casas da malta serenamente. Acreditaram que a guerra era coisa do passado, que a defesa era um luxo reacionário e que o mundo, tal como uma criança bem-educada, ia aprender pelos bons exemplos.

E então vieram os refugiados às catadupas. Primeiro uns milhares, depois dezenas, centenas de milhares. Subsarianos, afegãos, sírios, líbios africanos. E lá estavam elas — as meninas das organizações humanitárias da esquerda europeia, vestidas de branco, corações de peluche ao peito, prontas para acolher, beijar, embalar, dar serviços de apoio e mais tarde soube-se do serviço sexual que algumas alemãs também prestaram - Era a nova religião europeia: acolher o outro. Dar a outra face, oferecer abrigo, cidadania e Estado Social a quem, muitas vezes, nem sequer partilha os fundamentos civilizacionais do país que o acolhe. Mas isso não se podia dizer. Era racismo, era fascismo, era intolerância.

A utopia exigiu silêncio total. 

Os burocratas de Bruxelas, os governos bem-pensantes do Norte, os parlamentares do Sul, todos entoaram o cântico das boas intenções. E à medida que o mundo se militarizava, que a Rússia se rearmava, que a China montava a sua rede de influência global, que os Estados Unidos escolhiam o isolacionismo intermitente, a Europa ia discutindo a treta das quotas de carbono.

O Reino Unido percebeu cedo que estava a bordo de um cruzeiro que seguia em direção ao iceberg. Saltou fora. Chamaram-lhes de tudo: retrógrados, nacionalistas, populistas. Mas o tempo acabou por lhes dar razão. Porque enquanto os europeus dormem embalados no seu delírio pós-nacional, a realidade morde. A realidade não ouve discursos nem respeita cimeiras. A realidade chega com tanques, hackers, sabotagem industrial e alianças oportunistas entre ditadores. E o que tem a Europa para responder? Uma força armada conjunta? Uma indústria de armamento robusta? Uma diplomacia eficaz? Nada disso. Tem comités, regulamentos e resoluções.

As Forças Armadas europeias, onde existem, estão subnutridas, envelhecidas e dependentes do que os EUA quiserem fornecer. Os arsenais estão desatualizados, a prontidão militar é ridícula. E, no entanto, continuam a falar em “autonomia estratégica europeia”. Como se fosse possível construir estratégia sem vontade, sem músculo, sem convicção — apenas com papelada.

Não é de agora. A decadência é longa. Foram décadas de culto do desarmamento, de redução orçamental na Defesa, de desprezo pelo poder duro. A Europa entregou-se ao ideal kantiano da paz perpétua, sem perceber que o mundo funciona ainda no registo hobbesiano — onde quem não tem força, não tem lugar à mesa. Só resta-lhe o papel de espectadora. Uma espectadora moralista, que protesta, assina petições e organiza fóruns. Uma espectadora que aplaude os seus próprios gestos simbólicos, mesmo quando a casa está a arder.

O problema é este: a Europa apaixonou-se pela sua própria imagem no espelho. Uma imagem serena, acolhedora, civilizada. Mas esqueceu-se que o espelho não é o mundo. O mundo não se compadece com vaidades nem com princípios se não forem defendidos com coragem. E coragem não é um valor europeu neste momento. O que há são ministros do Ambiente, secretários de Estado do Bem-Estar Emocional e cimeiras sobre o futuro do planeta num planeta onde a guerra, o petróleo, os mísseis hipersónicos e a escassez de alimentos estão a escrever a próxima era.

A União Europeia, de Costa e companhia, continua a dançar o seu bailado cerimonial em Bruxelas, entre bandeiras, sorrisos, beijinhos e PowerPoints. Ignorando que lá fora, o mundo é feio, sujo e perigoso. 

E a Europa já não está à altura dele.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Cavalo de Tróia flutuante




E lá foram eles  outra vez. A mais recente tentativa de "salvar Gaza" foram em forma de flotilha: uma espécie de barco do amor, só que com menos romance e mais pretensões geopolíticas. Liderada por um elenco digno de reality show — Greta Thunberg, a eurodeputada recém-coroada Rima Hassan e o ator Liam Cunningham (sim, o de Game of Thrones) —, a embarcação foi amorosamente interceptada pela Marinha israelita antes de conseguir transformar o Mediterrâneo num palco de redenção ativista.

O objetivo da operação? "Levar ajuda humanitária a Gaza", disseram. E que ajuda! Cerca de 20 quilos de comida. Vinte e dois sacos de arroz, três de massa, uma ou duas latas de atum para dar aquele toque gourmet. Um gesto nobre, claro, se estivéssemos a falar de um piquenique. Mas para aliviar uma crise humanitária? Só se fosse para alimentar a gata cá de casa, a INDY. A bordo, para além da ração simbólica, levavam também discursos prontos, câmaras bem posicionadas no tecto da embarcação e uma certeza absoluta: que estavam do lado certo da história, mesmo quando nem sequer  sabem onde fica Gaza no mapa. Foram detidos e serão deportados sem os seus telemóveis atirados borda fora - do plano fazia parte a deportação para dar aquela toque de mártir internacional — rende bem no Instagram.

Israel, por sua vez, não se limitou a deter esses brincalhões. Identificou logo o cérebro por trás da operação: Zaher Birawi, um velho conhecido das autoridades, com ligações ao Hamas desde 2013. Não é exatamente o tipo de padrinho que se quer numa missão humanitária, mas isso parece ser apenas um detalhe técnico para os nossos viajantes. Afinal, que mal pode haver em embarcar numa iniciativa organizada por alguém com currículo terrorista? Se calhar nem viram o rodapé.

Greta, coitada, foi levada a Israel e colocada a assistir a imagens dos massacres cometidos pelo Hamas contra civis israelitas. Um gesto simbólico — mas desta vez por parte de quem leva a segurança a sério. A ideia era simples: mostrar-lhe que o mundo não é feito de binários bonzinhos e malvados, mas sim de complexidades que não cabem num cartaz com letras pretas em fundo branco.

Não se sabe se Greta ficou convencida. Talvez tenha pensado que aquilo era uma montagem. Ou talvez estivesse a fazer contas mentais a quantos painéis solares seriam necessários para iluminar as zonas bombardeadas. A sua presença, no entanto, levanta uma questão pertinente: em que momento é que a luta pelo ambiente passou a incluir sessões fotográficas em zonas de conflito, em colaboração com agentes de movimentos islâmicos radicais? Devemos esperar que o próximo passo seja uma manifestação climática em Pyongyang?

A eurodeputada Rima Hassan também marcou presença. De origem sírio-palestiniana, foi recentemente eleita sob a bandeira da luta pelos direitos humanos — desde que não se aplique a todos os humanos, claro. Tem mostrado grande entusiasmo em denunciar Israel, mas uma curiosa relutância em condenar o Hamas, mesmo depois do massacre de civis israelitas. Talvez não queira perder pontos junto do eleitorado que acha que o terrorismo é só uma questão de perspectiva.

Liam Cunningham, por seu lado, parecia ainda a meio de um ensaio de personagem. Talvez tenha pensado que ainda estava nas filmagens de Game of Thrones, onde se distingue claramente quem são os vilões e os heróis. No Médio Oriente, infelizmente, não há argumento da HBO que salve. E muito menos um bote com meia dúzia de celebridades e um saco de lentilhas.

Não se trata de minimizar o sofrimento da população palestiniana. Trata-se de chamar as coisas pelos nomes. A tal "ajuda humanitária" era um cavalo de Troia flutuante. O verdadeiro objetivo não era alimentar ninguém, mas sim furar o bloqueio naval israelita — um bloqueio que, goste-se ou não, existe porque o Hamas tem a mania de usar cimento para fazer túneis em vez de escolas, e foguetes em vez de hospitais. Esta flotilha, como tantas outras, não pretendia aliviar nada. Pretendia provocar, filmar, publicar e acumular capital simbólico. Porque o que realmente alimenta estes ativistas de elite não são os grãos de arroz — são os likes, as entrevistas, os convites para conferências e os abraços públicos da moralidade fácil.

No final, todos voltam para casa: bem penteados, com as selfies já editadas, e prontos para a próxima indignação de boutique. Gaza continua em ruínas. Israel continua sob ameaça. E nós, espectadores deste teatro flutuante, somos convidados a aplaudir mais uma peça de um guião escrito por gente que confunde o Mediterrâneo com o palco de um festival de verão com a Greta faltando às aulas sem que os pais dela sejam responsabilizados.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

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