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sexta-feira, 13 de junho de 2025

Cavalo de Tróia flutuante




E lá foram eles  outra vez. A mais recente tentativa de "salvar Gaza" foram em forma de flotilha: uma espécie de barco do amor, só que com menos romance e mais pretensões geopolíticas. Liderada por um elenco digno de reality show — Greta Thunberg, a eurodeputada recém-coroada Rima Hassan e o ator Liam Cunningham (sim, o de Game of Thrones) —, a embarcação foi amorosamente interceptada pela Marinha israelita antes de conseguir transformar o Mediterrâneo num palco de redenção ativista.

O objetivo da operação? "Levar ajuda humanitária a Gaza", disseram. E que ajuda! Cerca de 20 quilos de comida. Vinte e dois sacos de arroz, três de massa, uma ou duas latas de atum para dar aquele toque gourmet. Um gesto nobre, claro, se estivéssemos a falar de um piquenique. Mas para aliviar uma crise humanitária? Só se fosse para alimentar a gata cá de casa, a INDY. A bordo, para além da ração simbólica, levavam também discursos prontos, câmaras bem posicionadas no tecto da embarcação e uma certeza absoluta: que estavam do lado certo da história, mesmo quando nem sequer  sabem onde fica Gaza no mapa. Foram detidos e serão deportados sem os seus telemóveis atirados borda fora - do plano fazia parte a deportação para dar aquela toque de mártir internacional — rende bem no Instagram.

Israel, por sua vez, não se limitou a deter esses brincalhões. Identificou logo o cérebro por trás da operação: Zaher Birawi, um velho conhecido das autoridades, com ligações ao Hamas desde 2013. Não é exatamente o tipo de padrinho que se quer numa missão humanitária, mas isso parece ser apenas um detalhe técnico para os nossos viajantes. Afinal, que mal pode haver em embarcar numa iniciativa organizada por alguém com currículo terrorista? Se calhar nem viram o rodapé.

Greta, coitada, foi levada a Israel e colocada a assistir a imagens dos massacres cometidos pelo Hamas contra civis israelitas. Um gesto simbólico — mas desta vez por parte de quem leva a segurança a sério. A ideia era simples: mostrar-lhe que o mundo não é feito de binários bonzinhos e malvados, mas sim de complexidades que não cabem num cartaz com letras pretas em fundo branco.

Não se sabe se Greta ficou convencida. Talvez tenha pensado que aquilo era uma montagem. Ou talvez estivesse a fazer contas mentais a quantos painéis solares seriam necessários para iluminar as zonas bombardeadas. A sua presença, no entanto, levanta uma questão pertinente: em que momento é que a luta pelo ambiente passou a incluir sessões fotográficas em zonas de conflito, em colaboração com agentes de movimentos islâmicos radicais? Devemos esperar que o próximo passo seja uma manifestação climática em Pyongyang?

A eurodeputada Rima Hassan também marcou presença. De origem sírio-palestiniana, foi recentemente eleita sob a bandeira da luta pelos direitos humanos — desde que não se aplique a todos os humanos, claro. Tem mostrado grande entusiasmo em denunciar Israel, mas uma curiosa relutância em condenar o Hamas, mesmo depois do massacre de civis israelitas. Talvez não queira perder pontos junto do eleitorado que acha que o terrorismo é só uma questão de perspectiva.

Liam Cunningham, por seu lado, parecia ainda a meio de um ensaio de personagem. Talvez tenha pensado que ainda estava nas filmagens de Game of Thrones, onde se distingue claramente quem são os vilões e os heróis. No Médio Oriente, infelizmente, não há argumento da HBO que salve. E muito menos um bote com meia dúzia de celebridades e um saco de lentilhas.

Não se trata de minimizar o sofrimento da população palestiniana. Trata-se de chamar as coisas pelos nomes. A tal "ajuda humanitária" era um cavalo de Troia flutuante. O verdadeiro objetivo não era alimentar ninguém, mas sim furar o bloqueio naval israelita — um bloqueio que, goste-se ou não, existe porque o Hamas tem a mania de usar cimento para fazer túneis em vez de escolas, e foguetes em vez de hospitais. Esta flotilha, como tantas outras, não pretendia aliviar nada. Pretendia provocar, filmar, publicar e acumular capital simbólico. Porque o que realmente alimenta estes ativistas de elite não são os grãos de arroz — são os likes, as entrevistas, os convites para conferências e os abraços públicos da moralidade fácil.

No final, todos voltam para casa: bem penteados, com as selfies já editadas, e prontos para a próxima indignação de boutique. Gaza continua em ruínas. Israel continua sob ameaça. E nós, espectadores deste teatro flutuante, somos convidados a aplaudir mais uma peça de um guião escrito por gente que confunde o Mediterrâneo com o palco de um festival de verão com a Greta faltando às aulas sem que os pais dela sejam responsabilizados.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

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