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sexta-feira, 4 de julho de 2025

Pobre pátria




Parece que anda por aí uma catrefada de julgamentos a decorrer — um deles talvez já tenha acontecido, ou ainda esteja a decorrer, não sei bem. O que me interessa é que há militares da Força Aérea a ser julgados por causa de umas praxes. Sim, leram bem — praxes.

E estão a ser julgados não por um superior hierárquico, não por um tribunal militar, não no recato austero de uma caserna. Estão a ser julgados num tribunal civil, desses onde a gravata pesa mais do que a verdade e a toga vale mais do que a farda.

Ora vamos por partes, talvez consiga destrinçar a palha do grão.

Os quartéis sempre foram lugares de força, suor e autoridade. As praxes sempre fizeram parte — rituais de iniciação, hierarquias informais — estiveram sempre lá. Nem tudo o que é tradição é bom, é certo. Mas há coisas que fazem parte do ADN das instituições militares. Desde que não se cruze a linha do sadismo gratuito, há ali um propósito: moldar, formar, dobrar sem partir. Ensinar, incutir o espírito de corpo, e fazer entender ao militar que a missão que tem pela frente é maior do que o seu ego.

Mas no Portugal do século XXI, um país onde se desfila mais com bandeiras do que com metralhadoras, eis que os tribunais civis passaram a meter o bedelho dentro das muralhas dos quartéis.

Foi aí que o meu último neurónio — esse que sobreviveu ao IVA e às promessas eleitorais — acendeu como uma lâmpada.

Como é que se justifica que uma instituição com códigos próprios — os militares — tenha de responder perante magistrados civis? Gente que nunca calçou umas botas, que nunca comeu rancho, que nunca passou uma noite a vigiar um posto no meio do nada, que nunca sentiu o peso de uma ordem superior em situação de risco real?

Não é que os militares estejam acima da lei. Ninguém está.

Mas os militares têm leis próprias, têm tribunais próprios, têm estruturas disciplinares próprias. Justamente porque vivem realidades diferentes. Porque a lógica da caserna não é — nem pode ser — a lógica do tribunal civil.

É por isso que existem tribunais militares. Ou existiam, vá. Porque em Portugal há esta mania de civilizar tudo até à morte, como se uniformes e hierarquia fossem relíquias do passado colonial.

Vivemos num país onde se confunde justiça com espectáculo. Basta ver as barracas TVs à porta dos tribunais.

E no meio disto tudo, quem perde são sempre os mesmos: os que se voluntariam para servir, os que marcham, os que voam, os que disparam se for preciso, e os que tombam.

Os outros — os que nunca fizeram uma flexão de braços na vida, os que confundem disciplina com autoritarismo — esses sentam-se em bancos de madeira envernizada a ditar o que é certo e o que é errado na vida de quartel.

Esta inversão de valores não é inocente. É parte de uma lógica maior: desmilitarizar por dentro, tirar autoridade a quem veste a farda, transformar soldados em funcionários públicos com bata e cartão de ponto.

Em Portugal, há cada vez menos Forças Armadas, menos disciplina, menos autoridade.

O país parece um campo de papoilas saltitantes, onde tudo o que mexe é julgado, e tudo o que não está alinhado com a política do Ministério Público é arrastado — não sem antes ser assado em lume brando durante anos a fio.

E claro, como sempre, há espaço para a paneleiragem institucional — não a da vida pessoal de cada um, que pouco me interessa — mas a da frouxidão instalada.

Enquanto isso, os que ainda acreditam na missão, no sacrifício, na camaradagem de combate, esses assistem em silêncio, vendo o país que juraram servir a desmoronar-se por dentro.

E nem uma praxe podem fazer sem correr o risco de acabar sentados no banco dos réus, julgados por quem nunca fez uma marcha de vinte quilómetros, carregado que nem mulas. Pobre pátria. Ainda bem que os nossos inimigos lá fora sabem pouco sobre nós e  muito menos sabem como estamos por dentro. 

Se um dia a guerra chegar a Portugal, é fácil: avança para o terreno a magistratura portuguesa e os políticos. Eu já dei para esse peditório.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Branquear o meu capital

 


Como é que os outros gajos conseguem branquear milhões e eu ando à nora para branquear 3100 euros.

Hoje ouvi na televisão uma informação que me surpreendeu, embora talvez já devesse tê-la como adquirida: a partir de agora, qualquer pessoa que pretenda comprar uma casa com dinheiro vivo — qualquer montante acima dos três mil euros — incorre, à luz da lei, num crime. Mais especificamente, um crime de branqueamento de capitais. A justificação, presume-se, é a necessidade de impedir que dinheiro de proveniência duvidosa entre no circuito económico formal sem rastreabilidade. Em teoria, faz sentido. Na prática, é absurdo. Em primeiro lugar, porque já não há casas — mesmo as mais degradadas — a preços tão baixos que permitam uma aquisição em notas abaixo desse limite. Em segundo, porque a própria noção de que pagar com o seu próprio dinheiro, ganho de forma lícita, pode constituir crime, é um sinal preocupante da inversão de presunção que se está a instalar: o cidadão comum, a partir de agora, é presumido culpado até provar a origem de cada euro que tem na carteira.

Mas há excepções. Diz-se que, por exemplo, posso comprar uma casa usando bitcoins. Desde que alegue - troca de produto, ou que esteja incluído no contexto de uma transação digital legítima, posso dar uma casa e receber em troca criptoativos. A ironia é total: um instrumento financeiro que nasceu da informalidade, da descentralização e da não rastreabilidade pode, segundo a norma europeia, ser mais aceitável do que dinheiro vivo, aquele que posso mostrar, contar e guardar fisicamente. A regulamentação europeia, com as suas diretivas sucessivas sobre prevenção ao branqueamento de capitais (AML), tem vindo a apertar o cerco ao uso do numerário. Entendo a lógica: evitar lavagem de dinheiro, evitar financiamento ao terrorismo, combater a economia paralela. Mas a consequência direta para o cidadão comum é outra: quem quer pagar por fora é criminoso; quem quer pagar por dentro tem de pedir autorização ao banco, justificar origens, explicar intenções e cruzar os dedos para não ver o processo bloqueado por um alerta de compliance. Ora, pergunto: e quem apenas quer resolver um problema simples? É o meu caso. Preciso de construir um passeio de cimento à volta da casota do meu cão, o Boris, Nada extravagante. Dois metros quadrados de calçada, talvez três, no máximo quatro. Uma solução que impeça que o barro entre na casota e que permita ao cão circular com dignidade. Isto era o tipo de coisa que se resolvia, noutros tempos, com um telefonema para um pedreiro qualquer, um orçamento directo e pagamento em dinheiro no final do trabalho.Mas não vivemos mais nesses tempos. Depois de semanas a procurar alguém que fizesse o maravilhoso passeio — e de ouvir orçamentos absurdos, recusa de pequenos trabalhos, ou simplesmente silêncio — encontrei um pedreiro reformado e resmungão. Tem má disposição crónica, alguma competência e nenhuma paciência. Fez-me uma proposta direta: 3100 euros, dinheiro à vista, sem factura e sem complicações. “Se quer, quer. Se não quer, procure outro.” E aqui comecei a entrar em terreno legal pantanoso. Se eu aceitar pagar os 3100 euros em dinheiro, posso incorrer num crime de branqueamento de capitais, por ultrapassar o limite legal sem justificação nem intermediação bancária.

Se eu não pagar, mas o trabalho for feito, cometo um crime de burla. Se o pedreiro aceitar o dinheiro e não declarar o rendimento, incorre num crime fiscal — pelo menos evasão, senão mais. Se ele nem sequer estiver habilitado a exercer, estando reformado, pode incorrer num exercício ilegal de atividade. Se ambos avançarmos com o negócio nestes termos, pode considerar-se que existe uma associação informal para a prática de infrações fiscais ou económicas. Tudo isto... para fazer um passeio de cimento à volta de uma casota de cão. Tentámos uma solução alternativa: pagamento fracionado, à hora, em pequenas parcelas. O trabalho seria executado por fases, com compensação proporcional. Legalmente, continua a ser arriscado. O dinheiro, ainda assim, não passaria pelo circuito formal. Ainda seria numerário. Ainda estaria sujeito a escrutínio. Nenhum de nós tem recibos, empresa ou estrutura para emitir faturas. Nenhum de nós quer envolver-se com a máquina fiscal para resolver um problema de cinquenta centímetros de alpendre.

A certa altura, o pedreiro olhou para mim e perguntou:

— O seu dinheiro está no banco?

— Está, sim — respondi.

— Então como é que vocemecê explica isso?

Não consegui responder. Porque não sei. Não sei como explicar que dinheiro que é meu, guardado por mim, resultante do meu trabalho, não pode ser usado para resolver um problema banal do meu quotidiano, sem que eu corra o risco de me tornar alvo de suspeita criminal. Vivemos num sistema em que a criminalização da normalidade é feita em nome do controlo. Onde o pequeno arranjo é mais arriscado do que a grande fraude, se não tiver a documentação certa. Onde o gesto comum, ancestral, de pagar alguém diretamente por um serviço pontual se tornou um entrave burocrático — ou pior, uma infração penal. No final, o passeio ainda não foi feito. Boris continua a sujar as patas, e eu continuo a tentar perceber como é que o meu próprio dinheiro se tornou um objeto suspeito.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

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