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domingo, 27 de julho de 2025

A Felicidade da miséria e ignorância da Trabessa


Esta madrugada, depois de assistir a mais um episódio de pancadaria entre um general e um jornaleiro —, fui dar uma volta pelo Facebook. Diga-se, não foi por tédio. Procurava a crónica viva do dia. Esperava ver o General Carlos Branco com gelo no olho, a mascar a vergonha da surra que apanhou do jornaleiro Bello, com aquele ar fingido de missão cumprida que os generais sabem ensaiar. Mas não, tropecei nas desculpas esfarrapadas do guerrilheiro.

Um clique bastou. Uma imagem partilhada algures: um pequeno aglomerado de casas encravadas entre pedras e arbustos secos, nas encostas de Polon di Engenhos, baptizado — vá-se lá saber por quem — de Trabessa. A imagem é crua. Pobreza. Seca. Resistência. Uma espécie de sobrevivência amarrada à pedra.

Mas o que me rebentou com os miolos não foi a imagem em si. Foram os comentários. "Aldeia maravilha", "coisa linda", "pura natureza", "quem me dera viver num sítio assim". Palermices de luxo. Uma galeria de poesia barata escrita por gente que até sabe o que é carregar água à cabeça, cagar no mato ou ver um filho morrer de apendicite por falta de um posto de saúde mas que agora com um telemóvel e 5G, acha que a miséria é paisagem natural.

Alguns caboverdianos estão apaixonados pela sua própria pobreza. Mas não a pobreza real, fedida, sufocante, estão apaixonados pela versão polida, limpa, emoldurada, com legenda inspiradora e tudo: como se o sofrimento fosse um património a proteger. E depois queixam-se que os políticos continuam a viver como condes. Alguém tem de usufruir do conforto, já que o povo se satisfaz com a estética da miséria.

É nesse mundo que o déspota José Maria Neves é presidente — o eterno incapaz, pai da nação endividada, padrasto dos esquecidos. Ele e os seus herdeiros, filhos do compadrio e da propaganda estalinista, vivem mergulhados na opulência e intriga, enquanto o povo se orgulha da sua própria miséria. "Nôs ka sta mal", dizem. Pois claro. O mal é um privilégio dos que ainda se indignam.

Os deputados de Cabo Verde são outra aberração, uns papagaios engravatados que recitam leis inúteis enquanto o povo se alimenta de vento e esperança. Falam montes de baboseiras, palavras ocas, vomitadas de cima, enquanto as aldeias continuam paradas no ano 1920.  Pegaram na palavra portuguesa Travessa, assassinaram-na sem piedade, e ao cadáver chamaram "marca local". Ser burro é triste.

Se a ignorância do povo é pecado, a hipocrisia dos governantes é crime. Eles fodem o povo até ao tutano, exigem vénia, respeito, e o título de excelência. E o povo, domesticado, agradece. Lambe-lhes o rabo com orgulho, chama-lhes doutores e aplaude quando chegam de carros novos pagos com dívida pública. É o síndrome de Estocolmo em versão africana. Chegaram ao cúmulo de prometer aviões a voar pela metade.

Mas a culpa não é só deles. É também de quem acha a miséria bonita, de quem partilha fotos de pobreza com emojis de coração, de quem romantiza a dureza de um povo que não escolheu ser forte — apenas não teve alternativa. De quem confunde resistência com destino.

Trabessa não é coisa linda. É o retrato da negligência. Um postal ilustrado do fracasso do Estado, da ausência de visão, do desprezo institucionalizado por quem vive longe do poder. E enquanto continuarmos a tratar a pobreza como arte, os artistas continuarão os mesmos: políticos ricos, povo ignorante — e um país inteiro a bater palmas ao seu próprio funeral.

E José Maria Neves ainda tem a desfaçatez de dizer que a namorada faz de primeira dama e por isso recebe 310 contos mensais — mais de sete vezes o ordenado médio no país. Talvez receba esse dinheiro por outros serviços. Uma namorada fazer de primeira dama é preciso ter uma lata do tamanho da ilha. E é aqui que se entende a imagem. Não é uma aldeia. É uma metáfora. Uma ferida exposta. Uma miséria transformada em 

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sábado, 19 de julho de 2025

Boris


Finalmente temos cão. Disciplinado, obediente grandalhão, goloso e gordo.

Continua amigo do carteiro, amigo do João Bernardo, amigo do bode e meio amigo da gata.

Já apanhou um coelho mas, não sei como.  Comeu-o com pele e tudo. 

Já tem 22 meses. 

Só falta saber o que ele é capaz de fazer com um intruso.

No joelho, ainda a marca recente da última queda de moto.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Eles perderam a guerra no estúdio

 



Montaram uma banca de peixeiradas na praça da lixeira CNNPortugal. A única diferença é que aparecem de farda invisível e patente no ego, disparam argumentos como quem dá ordens para marchar. E quando o contraditório lhes bate à porta, respondem como se estivessem a lidar com recrutas ou com inferiores hierárquicos aos gritos, com ataques pessoais e, nalguns casos, com bocas foleiras à mistura.

É neste lamaçal estratégico que alguns dos nossos generais de microfone na lapela continuam a sarnar a molécula ao totó português com a história de que Putin está a um passo da consagração, como se Moscovo já estivesse a ensaiar o desfile da vitória.

Neste contexto, têm-se multiplicado os atritos no lixo canal. Carlos Branco, ex-oficial de alta patente da NATO — possivelmente um agente da FSB infiltrado — tem vindo a adoptar uma leitura tão simpática da estratégia russa que quase parece funcionário do Ministério da Defesa em Moscovo. Por outro lado o meu velho conhecido Agostinho, com o seu estilo educacional forçado, doce como mel, mas menos descarado, não esconde as dificuldades em aceitar visões diferentes, especialmente quando vêm de jornalistas ou comentadeiras. Estas últimas, por serem mulheres — e nós, os casados, já sabemos: quando elas se passam connosco, atiram pratos ao ar, copos e choram desalmadamente de tanta infelicidade por estarem casadas com um homem bom — tornam o estúdio num local muito perigoso para se estar.


Aqui no monte, ouço-os tranquilamente e sinto um odor a bafo de álcool da caserna.

Habituados a mandar sem serem questionados, os generais transportam para os estúdios de televisão a lógica do quartel. Só que no mundo civil a autoridade não está nas estrelas nem nos galões — está nos argumentos. E, de preferência, servidos em esplanadas com elevação. Mas eles não vão para discutir, vão para comandar. E quando alguém ousa questionar o comandante, está tudo fodido. Começam os ataques pessoais num suspiro teatral.

Carlos Branco, por exemplo, já protagonizou diversos episódios tensos com o jornaleiro Pedro Bello, chegando ao ponto de virar um copo de água num acesso de fúria contida. O meu amigo Agostinho não ficou atrás, envolvido em discussões onde o tom roçou o insulto directo, sobretudo com comentadeiras que não lhe prestaram continência analítica. Estes gestos de impaciência, que no quartel podiam ser tolerados como temperamento do comandante, na praça pública soam a birra de velho autoritário que nunca aprendeu a discutir ideias.

É a ilusão do monopólio do saber.

Convém sublinhar que os três generais (uns mais do que outros) representam uma elite militar que nunca se habituou à crítica. Cresceram num meio onde se repetem ordens e onde o debate é substituído pela execução. Passar da caserna para o estúdio, sem um processo de adaptação crítica, leva a uma espécie de choque civilizacional. Acreditam ter o monopólio da análise militar e estratégica, como se os civis — mesmo bem informados — não tivessem legitimidade para opinar sobre política internacional. E essa falsa ilusão de superioridade intelectual colide de frente com a realidade democrática do contraditório.


Ao serem confrontados com dados, interpretações alternativas ou simplesmente com perguntas incómodas, os generais perdem o norte. Não conseguem defender a sua posição com serenidade nem aceitar que o mundo não é uma ordem de batalha. É aí que entram os insultos, os olhares de desdém e os célebres: “não me interrompa, e mais, digo-lhe mais, não lhe admito, eu estive na guerra, vá estudar e depois venha para aqui falar”.

Com esta postura, os generais perderam a guerra no estúdio claramente.

Ironia das ironias: homens que dedicaram a vida a estudar guerra não conseguem conviver com o conflito mais básico da democracia — o debate. Perderam a compostura, perderam a razão e, pior ainda, perderam o respeito do público, que esperava deles elevação, não berraria. Por isso mesmo eu próprio não os reconheço!

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Filhos da Sombra



Nas vielas da ilha, ao cair da tarde

Marchavam em silêncio os senhores da fraude

Com alianças brilhantes e promessas vazias

Desciam sobre moças em noites sombrias

faziam juras a raparigas de tranças,

com olhos grandes demais para a idade.


— És linda. Mereces mais do que ser donzela —

diziam, com a mesma voz que usavam na missa.

Ofereciam futuro,

ofereciam nome,

e ao cair da noite, tomavam o corpo.

Comiam com pressa,

e deixavam a alma a arder nos lençóis.


Tinham três, quatro, cinco mulheres ao mesmo tempo.

E quase todas sabiam de todas.

Dividiam-nas como quem reparte sal,

mas em casa, a legítima dormia

de rosário na mão e vergonha nos olhos.


Os outros filhos — os da sombra —

nascidos no silêncio,

em casas emprestadas,

com nome de mãe e rasto de pai ausente.

Uns com apelido inventado,

outros sem apelido nenhum.


E quando cresceram,

viram os irmãos do casamento

a subir degraus com sapatos limpos,

com diploma na parede

e arrogância na língua.


Eu sou irmão de polícia barrigudo,

de autodidata analfabeto,

de professor que ensina mas nunca leu,

de músico de batuque que desafina na vaidade.

Sou irmão de advogado por correspondência,

de engenheiro de obra de pala,

de doutor da mula e mestre do discurso da treta converseta


Eu sou o erro.

Sou o pedaço esquecido da história,

o parente de gaveta,

a nódoa no linho da família.


Quando falo, fazem-se surdos.

Quando apareço, disfarçam.

Quando passo, mudam de passeio.

E quando escrevo fingem

Quem não me lêem.


Cresci a ver tudo.

Vi-o a atravessar a rua

sem coragem de cruzar o meu olhar.

Vi os do casamento, os filhos 

vestirem o sangue com vaidade,

sem saberem que o sangue é sujo

quando a verdade é limpa.


Eles falam alto nos jantares.

Recitam leis, defendem moral,

batem no peito com títulos e cargos.

Mas tremem com um teste de ADN.

Fazem discursos sobre família

mas têm armários cheios de fantasmas.


E eu?

Eu sou o fantasma com rosto

Da minha mãe que foi vítima 


Não quero herança.

Não quero lugar à mesa.

Não quero o nome,

quero história,

quero que alguém diga:

— Ele também é nosso

das vergonhas da ilha.


Porque o pai que me gerou

espalhou filhos como semente ao vento,

e agora colhe silêncio nos funerais.

O caixão desce,

mas os segredos não.

O segredo ficou.


E há-de chegar o tempo —

o tempo em que os filhos da sombra

hão-de sair da margem,

não para pedir,

mas para dizer:


Estamos cá.

Fomos feitos como vós,

mas crescemos no escuro.


E há-de doer.

Doer nos retratos,

nas árvores genealógicas,

nas biografias mentirosas.

Porque a verdade,

quando vem,

não pede licença.

Entra.


E ninguém quer entender

A negra história da ilha

negra história da ilha…

A negra história.

negra a história…

da ilha.

da Ilhaaaaaaaaaa!


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Eu sou um bom idiota

Sou, hoje, um dos grandes sábios do meu tempo. Sei tudo, comento tudo, opino sobre o que conheço e, sobretudo, sobre o que não faço a menor ideia. Acordo e, mal abro os olhos, já estou pronto a deixar a minha marca na Humanidade — com um scroll e dois comentários sobre temas que mal sei pronunciar. 

Tenho um telemóvel e uma ligação miserável à internet: é quanto basta para me sentir preparado para discutir desde geopolítica a misticismo quântico, passando por vacinas, inflação, meteorologia, ortografia comparada e, claro, corrupção portuguesa — e ainda tenho tempo para me armar em perito do acidente do Lamborghini em Espanha.

Vou a um exemplo: eu digo alto e bom som que Sócrates é corrupto, mas não sei explicar bem porquê. O Ministério Público também não sabe explicar, por isso há dez anos que os gajos andam às turras — mas eu sei, vi algures no Facebook e não preciso de mais. Se há coisa que aprendi com a internet foi a dispensar provas evidentes — basta-me ligar a CMTV ou  CNNPortugal.

Também sei que os políticos são todos ladrões. Não sei bem o que roubam — eu acho que há uns cinco ou seis, ou vinte escalões de IRS — e se me pedissem para fazer uma simulação de imposto, borrava a folha toda. Mas que eles nos estão a roubar para dar aos ricos, estão. É evidente, está tudo feito. Vi num vídeo com um tipo aos gritos numa manifestação, com uma tabela do IRS às costas e um cartaz no fundo a dizer "ladrões".

Nunca na vida li um tratado sobre economia, mas dou conselhos fiscais no Facebook como se tivesse saído ontem do ISEG. Não percebo a diferença entre RNA e ADN, mas já escrevi vários textos sobre os perigos da vacinação. Mal sei escrever português decente, mas dou lições de gramática a quem me aparece pela frente. A minha fonte de informação? Um vídeo com música de fundo e legendas mal escritas. Se tem muitos gostos, é porque é verdade — certo?

E se há coisa em que me especializei foi em fingir que não sou ignorante. Porque o meu telemóvel, esse pequeno altar da minha vaidade, faz de mim um génio por breves minutos. Dou por mim a citar Aristóteles sem saber quem foi, a falar de inflação sem saber fazer uma regra de três simples. Clico, partilho, indigno-me, escrevo frases carregadas de certezas sobre assuntos que nem sei pronunciar. E o mais bonito? Faço tudo isto com a confiança inabalável de um catedrático com pós-graduação em coisa nenhuma.

Mas não estou sozinho. Faço parte de um exército cada vez maior: os pobres, os menos instruídos, os analfabetos funcionais — como eu. Gente como eu, que nunca teve acesso a muita coisa, mas que agora, com um telefone na mão, se sente finalmente no topo da pirâmide. Igual ao doutor. Ou melhor. Porque o doutor estudou, mas eu vi dois vídeos de cinco minutos no TikTok, com gráficos e tudo. E, ao contrário dele, eu não me deixo enganar pela ciência. Eu pesquiso. No Facebook. De madrugada. Mesmo com sono.


Claro que isso tem o seu preço. A desinformação começa a fazer ricochete. Aponta-se para fora, mas acerta sempre nos mesmos: nós próprios. Somos os primeiros a acreditar em teorias absurdas, os primeiros a partilhar notícias falsas, os primeiros a cair nas armadilhas de quem sabe mais — e usa esse saber para nos manipular. Mas seguimos, firmes e confiantes, como se fôssemos iluminados por um saber que não temos. E quanto menos sabemos, mais opinamos.

A certa altura, deixei de perguntar. Passei a afirmar. Já não me interessa saber como funciona uma coisa — interessa-me dizer aos outros que está mal. Não interessa compreender uma ideia — interessa-me indignar-me com ela. A dúvida morreu, e com ela a possibilidade de aprender. Agora é tudo certeza. Li algures. Alguém me disse. Está num vídeo com muitos comentários. É factual, portanto.

A língua portuguesa que me perdoe. Se Camões visse os meus textos no blog olhosemlente.blogspot.com, atirava o livro à água, atirava-se ao Tejo outra vez só para salvar o livro e corrigir frases sem pés nem cabeça, erros de palmatória, palavras inventadas, anglicismos a mais e sentido a menos. Mas, mesmo assim, continuo, porque agora tenho inteligência artificial que corrige o que escrevo. Ou, pelo menos, tenta. A pontuação pode ficar mais direitinha, mas o disparate continua lá todinho.

E claro, como bom ignorante que sou, tenho palco. Posso ser ministro, juiz, professor, epidemiologista, historiador, polícia, polícia outra vez ou mesmo ladrão — tudo no mesmo dia, bastando para isso ligar o telefone e abrir a boca. Digo as maiores barbaridades com orgulho, como se estivesse a prestar um serviço público. Sou um emissor de ignorância em alta definição. E como ninguém me contradiz — ou, se o fazem, eu bloqueio — sinto-me cada vez mais sábio.

O mais assustador? É que esta ignorância que cultivo virou estatuto. Identidade. Eu não sou burro: sou livre-pensador. Eu não sou mal informado: sou contra a manipulação dos media. Eu não erro: tenho uma visão diferente. E quanto mais me engano, mais teimo. Porque, no mundo digital, mudar de opinião é sinal de fraqueza. E eu, como todo o bom idiota digital, sou forte. Mesmo quando estou errado. Sobretudo quando estou errado.

As tecnologias não são más. O problema sou eu. Eu e os outros como eu, que fizemos do telefone uma extensão do nosso ego desinformado. Um livro podia ser usado para aprender, mas eu prefiro ver vídeos de três minutos que confirmem o que já penso. O silêncio podia ser usado para pensar, mas eu preciso de dizer tudo o que me passa pela cabeça. E o resultado é este: uma cacofonia de opiniões, onde todos falam, ninguém escuta, e ainda menos gente sabe do que está a falar.

Talvez o futuro precise de menos ignorantes como eu a mandar bitaites, e de mais gente que sabe estar calada. Mas, enfim, isto sou eu a filosofar. Entre dois vídeos de teorias da conspiração e um post indignado sobre a gramática do ministro da Educação. Vou ali insultar alguém no X e já volto.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 7 de julho de 2025

RUN FOR YOUR LIVES – Crónica de uma noite com Iron Maiden

 


Marquei com o Joaquim às 19h15. Ele marchou de Estoril, eu do Bombarral. Destino comum: MEO Arena. Uma amiga nossa, muito querida,  tinha desencantado dois bilhetes para os Iron Maiden, em plena digressão mundial Run For Your Lives. Claro que não era coisa para se desperdiçar.

Agora, ventos favoráveis é que não estavam. Desde o dia anterior que o meu ouvido direito andava com ideias próprias — dor aguda, daquelas que só querem estragar planos. Mas nada que o arsenal tradicional português não resolva: antibiótico no ouvido, Ben-u-ron no estômago, e um pastel com ar de chamuça no bucho. Pronto, estava preparado para o embate.

Chegados ao recinto, o ambiente não desiludiu. No ar, um perfume pesado a ganzas, daqueles que fazem mossa na alma — e, já agora, no tímpano também. A banda de abertura, os suecos Avatar, já ia a meio da função. Não conhecia, confesso. Mas os tipos safam-se bem: bons de palco, cheios de energia, sabem entreter a malta. Aqueceram o motor como manda a lei do rock.

Três minutos antes das 21h00 — pontualidade britânica, claro — apagam-se as luzes. Entram os Iron Maiden. O cenário abre com ruas de Londres, mas logo na primeira música já estamos sob um céu parisiense. Cenários a mudar a cada tema, luzes a estalar, produção de luxo. Dá gosto ver bandas que ainda tratam isto como arte e missão.

Estava com receio que o meu ouvido não aguentasse o embate. Mas, curiosamente, ao fim de três músicas, ou a dor desapareceu, ou fui eu que deixei de a sentir. Conclusão provisória, mas convicta: em vez de ir ao médico, vá-se antes a um concerto de rock no MEO Arena. A combinação de decibéis com a fumarola das passas de erva forma uma espécie de vapor terapêutico. Cura. Cura mesmo.

O concerto foi qualquer coisa. Os Iron Maiden regressaram a Portugal com um espectáculo de peso e memória. Estão a celebrar cinquenta anos de estrada, e esta é a vigésima sexta digressão mundial da banda. O alinhamento foi certeiro: só temas dos primeiros nove álbuns — de Iron Maiden (1980) até Fear of the Dark (1992). Ou seja, só clássicos.

Aces High, The Trooper, Revelations, Fear of the Dark, The Number of the Beast, Run to the Hills, Seventh Son of a Seventh Son, Hallowed Be Thy Name, Wasted Years.

Bruce Dickinson, com sessenta e seis anos bem aviados no lombo, continua a ser um senhor do palco. Fatos militares, bandeiras, uma máscara comprada numa sex shop (segundo ele) — não faltou nada. Em The Trooper, aparece vestido como se viesse mesmo da Guerra da Crimeia. Em Powerslave, está mascarado e possuído. Energia para dar e vender.

E, claro, Eddie, o eterno mascote, surge em múltiplas encarnações: digitalizado, fardado, esquelético, a mandar no palco como sempre mandou.

O Hallowed Be Thy Name, com Bruce dentro de uma jaula, é daquelas cenas que ficam para sempre. E o final com Wasted Years foi de levantar o MEO. Estivemos lá, eu e o Joaquim. Sentimos tudo. E o que se vive ali, sinceramente, não se consegue explicar a ninguém que não tenha estado.

Foi uma noite inesquecível. E saí de lá com uma certeza científica, quase espiritual: aquela nuvem densa sobre a plateia — aquele cheiro estranho, medicinal, místico — resolveu a minha otite. Não sei explicar. Mas que cura, cura. Imaginem o que aquilo não faz a quem fuma... Devem sair de lá virados do avesso. Eu só inspirei... e saí novo.

Cheguei a casa, enfiei-me no vale dos lençóis e voltei à condição inicial: conviver com a dor no ouvido. Antibiótico despejado lá para dentro — e agora, é rezar para que eu consiga dormir.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Pobre pátria




Parece que anda por aí uma catrefada de julgamentos a decorrer — um deles talvez já tenha acontecido, ou ainda esteja a decorrer, não sei bem. O que me interessa é que há militares da Força Aérea a ser julgados por causa de umas praxes. Sim, leram bem — praxes.

E estão a ser julgados não por um superior hierárquico, não por um tribunal militar, não no recato austero de uma caserna. Estão a ser julgados num tribunal civil, desses onde a gravata pesa mais do que a verdade e a toga vale mais do que a farda.

Ora vamos por partes, talvez consiga destrinçar a palha do grão.

Os quartéis sempre foram lugares de força, suor e autoridade. As praxes sempre fizeram parte — rituais de iniciação, hierarquias informais — estiveram sempre lá. Nem tudo o que é tradição é bom, é certo. Mas há coisas que fazem parte do ADN das instituições militares. Desde que não se cruze a linha do sadismo gratuito, há ali um propósito: moldar, formar, dobrar sem partir. Ensinar, incutir o espírito de corpo, e fazer entender ao militar que a missão que tem pela frente é maior do que o seu ego.

Mas no Portugal do século XXI, um país onde se desfila mais com bandeiras do que com metralhadoras, eis que os tribunais civis passaram a meter o bedelho dentro das muralhas dos quartéis.

Foi aí que o meu último neurónio — esse que sobreviveu ao IVA e às promessas eleitorais — acendeu como uma lâmpada.

Como é que se justifica que uma instituição com códigos próprios — os militares — tenha de responder perante magistrados civis? Gente que nunca calçou umas botas, que nunca comeu rancho, que nunca passou uma noite a vigiar um posto no meio do nada, que nunca sentiu o peso de uma ordem superior em situação de risco real?

Não é que os militares estejam acima da lei. Ninguém está.

Mas os militares têm leis próprias, têm tribunais próprios, têm estruturas disciplinares próprias. Justamente porque vivem realidades diferentes. Porque a lógica da caserna não é — nem pode ser — a lógica do tribunal civil.

É por isso que existem tribunais militares. Ou existiam, vá. Porque em Portugal há esta mania de civilizar tudo até à morte, como se uniformes e hierarquia fossem relíquias do passado colonial.

Vivemos num país onde se confunde justiça com espectáculo. Basta ver as barracas TVs à porta dos tribunais.

E no meio disto tudo, quem perde são sempre os mesmos: os que se voluntariam para servir, os que marcham, os que voam, os que disparam se for preciso, e os que tombam.

Os outros — os que nunca fizeram uma flexão de braços na vida, os que confundem disciplina com autoritarismo — esses sentam-se em bancos de madeira envernizada a ditar o que é certo e o que é errado na vida de quartel.

Esta inversão de valores não é inocente. É parte de uma lógica maior: desmilitarizar por dentro, tirar autoridade a quem veste a farda, transformar soldados em funcionários públicos com bata e cartão de ponto.

Em Portugal, há cada vez menos Forças Armadas, menos disciplina, menos autoridade.

O país parece um campo de papoilas saltitantes, onde tudo o que mexe é julgado, e tudo o que não está alinhado com a política do Ministério Público é arrastado — não sem antes ser assado em lume brando durante anos a fio.

E claro, como sempre, há espaço para a paneleiragem institucional — não a da vida pessoal de cada um, que pouco me interessa — mas a da frouxidão instalada.

Enquanto isso, os que ainda acreditam na missão, no sacrifício, na camaradagem de combate, esses assistem em silêncio, vendo o país que juraram servir a desmoronar-se por dentro.

E nem uma praxe podem fazer sem correr o risco de acabar sentados no banco dos réus, julgados por quem nunca fez uma marcha de vinte quilómetros, carregado que nem mulas. Pobre pátria. Ainda bem que os nossos inimigos lá fora sabem pouco sobre nós e  muito menos sabem como estamos por dentro. 

Se um dia a guerra chegar a Portugal, é fácil: avança para o terreno a magistratura portuguesa e os políticos. Eu já dei para esse peditório.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Branquear o meu capital

 


Como é que os outros gajos conseguem branquear milhões e eu ando à nora para branquear 3100 euros.

Hoje ouvi na televisão uma informação que me surpreendeu, embora talvez já devesse tê-la como adquirida: a partir de agora, qualquer pessoa que pretenda comprar uma casa com dinheiro vivo — qualquer montante acima dos três mil euros — incorre, à luz da lei, num crime. Mais especificamente, um crime de branqueamento de capitais. A justificação, presume-se, é a necessidade de impedir que dinheiro de proveniência duvidosa entre no circuito económico formal sem rastreabilidade. Em teoria, faz sentido. Na prática, é absurdo. Em primeiro lugar, porque já não há casas — mesmo as mais degradadas — a preços tão baixos que permitam uma aquisição em notas abaixo desse limite. Em segundo, porque a própria noção de que pagar com o seu próprio dinheiro, ganho de forma lícita, pode constituir crime, é um sinal preocupante da inversão de presunção que se está a instalar: o cidadão comum, a partir de agora, é presumido culpado até provar a origem de cada euro que tem na carteira.

Mas há excepções. Diz-se que, por exemplo, posso comprar uma casa usando bitcoins. Desde que alegue - troca de produto, ou que esteja incluído no contexto de uma transação digital legítima, posso dar uma casa e receber em troca criptoativos. A ironia é total: um instrumento financeiro que nasceu da informalidade, da descentralização e da não rastreabilidade pode, segundo a norma europeia, ser mais aceitável do que dinheiro vivo, aquele que posso mostrar, contar e guardar fisicamente. A regulamentação europeia, com as suas diretivas sucessivas sobre prevenção ao branqueamento de capitais (AML), tem vindo a apertar o cerco ao uso do numerário. Entendo a lógica: evitar lavagem de dinheiro, evitar financiamento ao terrorismo, combater a economia paralela. Mas a consequência direta para o cidadão comum é outra: quem quer pagar por fora é criminoso; quem quer pagar por dentro tem de pedir autorização ao banco, justificar origens, explicar intenções e cruzar os dedos para não ver o processo bloqueado por um alerta de compliance. Ora, pergunto: e quem apenas quer resolver um problema simples? É o meu caso. Preciso de construir um passeio de cimento à volta da casota do meu cão, o Boris, Nada extravagante. Dois metros quadrados de calçada, talvez três, no máximo quatro. Uma solução que impeça que o barro entre na casota e que permita ao cão circular com dignidade. Isto era o tipo de coisa que se resolvia, noutros tempos, com um telefonema para um pedreiro qualquer, um orçamento directo e pagamento em dinheiro no final do trabalho.Mas não vivemos mais nesses tempos. Depois de semanas a procurar alguém que fizesse o maravilhoso passeio — e de ouvir orçamentos absurdos, recusa de pequenos trabalhos, ou simplesmente silêncio — encontrei um pedreiro reformado e resmungão. Tem má disposição crónica, alguma competência e nenhuma paciência. Fez-me uma proposta direta: 3100 euros, dinheiro à vista, sem factura e sem complicações. “Se quer, quer. Se não quer, procure outro.” E aqui comecei a entrar em terreno legal pantanoso. Se eu aceitar pagar os 3100 euros em dinheiro, posso incorrer num crime de branqueamento de capitais, por ultrapassar o limite legal sem justificação nem intermediação bancária.

Se eu não pagar, mas o trabalho for feito, cometo um crime de burla. Se o pedreiro aceitar o dinheiro e não declarar o rendimento, incorre num crime fiscal — pelo menos evasão, senão mais. Se ele nem sequer estiver habilitado a exercer, estando reformado, pode incorrer num exercício ilegal de atividade. Se ambos avançarmos com o negócio nestes termos, pode considerar-se que existe uma associação informal para a prática de infrações fiscais ou económicas. Tudo isto... para fazer um passeio de cimento à volta de uma casota de cão. Tentámos uma solução alternativa: pagamento fracionado, à hora, em pequenas parcelas. O trabalho seria executado por fases, com compensação proporcional. Legalmente, continua a ser arriscado. O dinheiro, ainda assim, não passaria pelo circuito formal. Ainda seria numerário. Ainda estaria sujeito a escrutínio. Nenhum de nós tem recibos, empresa ou estrutura para emitir faturas. Nenhum de nós quer envolver-se com a máquina fiscal para resolver um problema de cinquenta centímetros de alpendre.

A certa altura, o pedreiro olhou para mim e perguntou:

— O seu dinheiro está no banco?

— Está, sim — respondi.

— Então como é que vocemecê explica isso?

Não consegui responder. Porque não sei. Não sei como explicar que dinheiro que é meu, guardado por mim, resultante do meu trabalho, não pode ser usado para resolver um problema banal do meu quotidiano, sem que eu corra o risco de me tornar alvo de suspeita criminal. Vivemos num sistema em que a criminalização da normalidade é feita em nome do controlo. Onde o pequeno arranjo é mais arriscado do que a grande fraude, se não tiver a documentação certa. Onde o gesto comum, ancestral, de pagar alguém diretamente por um serviço pontual se tornou um entrave burocrático — ou pior, uma infração penal. No final, o passeio ainda não foi feito. Boris continua a sujar as patas, e eu continuo a tentar perceber como é que o meu próprio dinheiro se tornou um objeto suspeito.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

Publicação em destaque

Florbela Espanca, Correspondência (1916)

"Eu não sou como muita gente: entusiasmada até à loucura no princípio das afeições e depois, passado um mês, completamente desinter...