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domingo, 27 de julho de 2025

A Felicidade da miséria e ignorância da Trabessa


Esta madrugada, depois de assistir a mais um episódio de pancadaria entre um general e um jornaleiro —, fui dar uma volta pelo Facebook. Diga-se, não foi por tédio. Procurava a crónica viva do dia. Esperava ver o General Carlos Branco com gelo no olho, a mascar a vergonha da surra que apanhou do jornaleiro Bello, com aquele ar fingido de missão cumprida que os generais sabem ensaiar. Mas não, tropecei nas desculpas esfarrapadas do guerrilheiro.

Um clique bastou. Uma imagem partilhada algures: um pequeno aglomerado de casas encravadas entre pedras e arbustos secos, nas encostas de Polon di Engenhos, baptizado — vá-se lá saber por quem — de Trabessa. A imagem é crua. Pobreza. Seca. Resistência. Uma espécie de sobrevivência amarrada à pedra.

Mas o que me rebentou com os miolos não foi a imagem em si. Foram os comentários. "Aldeia maravilha", "coisa linda", "pura natureza", "quem me dera viver num sítio assim". Palermices de luxo. Uma galeria de poesia barata escrita por gente que até sabe o que é carregar água à cabeça, cagar no mato ou ver um filho morrer de apendicite por falta de um posto de saúde mas que agora com um telemóvel e 5G, acha que a miséria é paisagem natural.

Alguns caboverdianos estão apaixonados pela sua própria pobreza. Mas não a pobreza real, fedida, sufocante, estão apaixonados pela versão polida, limpa, emoldurada, com legenda inspiradora e tudo: como se o sofrimento fosse um património a proteger. E depois queixam-se que os políticos continuam a viver como condes. Alguém tem de usufruir do conforto, já que o povo se satisfaz com a estética da miséria.

É nesse mundo que o déspota José Maria Neves é presidente — o eterno incapaz, pai da nação endividada, padrasto dos esquecidos. Ele e os seus herdeiros, filhos do compadrio e da propaganda estalinista, vivem mergulhados na opulência e intriga, enquanto o povo se orgulha da sua própria miséria. "Nôs ka sta mal", dizem. Pois claro. O mal é um privilégio dos que ainda se indignam.

Os deputados de Cabo Verde são outra aberração, uns papagaios engravatados que recitam leis inúteis enquanto o povo se alimenta de vento e esperança. Falam montes de baboseiras, palavras ocas, vomitadas de cima, enquanto as aldeias continuam paradas no ano 1920.  Pegaram na palavra portuguesa Travessa, assassinaram-na sem piedade, e ao cadáver chamaram "marca local". Ser burro é triste.

Se a ignorância do povo é pecado, a hipocrisia dos governantes é crime. Eles fodem o povo até ao tutano, exigem vénia, respeito, e o título de excelência. E o povo, domesticado, agradece. Lambe-lhes o rabo com orgulho, chama-lhes doutores e aplaude quando chegam de carros novos pagos com dívida pública. É o síndrome de Estocolmo em versão africana. Chegaram ao cúmulo de prometer aviões a voar pela metade.

Mas a culpa não é só deles. É também de quem acha a miséria bonita, de quem partilha fotos de pobreza com emojis de coração, de quem romantiza a dureza de um povo que não escolheu ser forte — apenas não teve alternativa. De quem confunde resistência com destino.

Trabessa não é coisa linda. É o retrato da negligência. Um postal ilustrado do fracasso do Estado, da ausência de visão, do desprezo institucionalizado por quem vive longe do poder. E enquanto continuarmos a tratar a pobreza como arte, os artistas continuarão os mesmos: políticos ricos, povo ignorante — e um país inteiro a bater palmas ao seu próprio funeral.

E José Maria Neves ainda tem a desfaçatez de dizer que a namorada faz de primeira dama e por isso recebe 310 contos mensais — mais de sete vezes o ordenado médio no país. Talvez receba esse dinheiro por outros serviços. Uma namorada fazer de primeira dama é preciso ter uma lata do tamanho da ilha. E é aqui que se entende a imagem. Não é uma aldeia. É uma metáfora. Uma ferida exposta. Uma miséria transformada em 

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

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