Finalmente, um sopro de lucidez atravessou as nuvens pesadas da retórica nacional. O governo de Cabo Verde, talvez num raro momento de clareza mental, decidiu retirar do currículo escolar o manual de crioulo. Sim, o mesmo manual que durante anos foi vendido como símbolo de identidade e resgate cultural, mas que, na prática, mais parecia um brinquedo pedagógico destinado a entreter políticos nostálgicos e intelectuais em crise de originalidade.
Eis que Ulisses Correia e Silva, homem habitualmente prudente, desta vez teve a ousadia de enfrentar a gritaria dos eternos guardiões da alma cabo-verdiana. Fê-lo com uma simplicidade quase desarmante: invocou o descontentamento das elites intelectuais, tanto as que se passeiam pelos corredores da Praia e do Mindelo, quanto as que, do conforto das suas diásporas, escrevem manifestos inflamados sobre a importância do crioulo. Elites estas que, ironicamente, raramente escrevem em crioulo os seus textos académicos, os relatórios de cooperação internacional ou os artigos de opinião — todos, invariavelmente, em português ou em inglês, a língua dos adultos.
Convém dizê-lo com clareza: o crioulo não é língua. É um dialeto mestiço, uma invenção oral nascida da necessidade, útil para a comunicação quotidiana, mas incapaz de suportar a sofisticação de uma gramática sólida, de um corpo literário estruturado ou de uma produção científica minimamente respeitável. Que ninguém se ofenda: não é uma questão de desprezo, mas de realismo. O crioulo nunca atravessou a linha que separa a fala caseira da língua institucional. Não possui um padrão unificado — cada ilha cultiva o seu sotaque e a sua variação como quem guarda o último segredo de família. Como poderia, então, ser transformado em instrumento de ensino? Como ensinar matemática, física ou biologia num idioma que não possui sequer consenso ortográfico entre linguistas?
Mas há ainda um outro ingrediente neste caldo provinciano: a vaidade dos analfabetos. Muitos dos mais ruidosos defensores da língua cabo-verdiana são precisamente aqueles que nunca conseguiram dominar o português escrito e que veem na oficialização do crioulo uma espécie de vingança simbólica contra a gramática, a ortografia e a disciplina do estudo. Para eles, escrever em crioulo seria a consagração da sua própria ignorância: finalmente o erro deixaria de ser erro e o improviso oral passaria a chamar-se literatura. É a vingança doce do analfabeto: não aprender a língua oficial, mas transformar a sua limitação pessoal em bandeira política. Uma pirueta genial — e desastrosa.
Os defensores da oficialização do crioulo comportam-se como missionários de uma religião exótica: carregam consigo uma fé inabalável na sua causa, mesmo que os factos a contradigam dia após dia. Invocam slogans sobre identidade, raízes e autenticidade, como se a elevação do crioulo ao estatuto de língua nacional fosse resolver a crise educativa ou, milagre dos milagres, melhorar a compreensão leitora das nossas crianças. É uma fantasia provinciana, um complexo de inferioridade disfarçado de orgulho cultural. O que está em jogo não é pedagogia, é vaidade. É a tentativa desesperada de certos cabo-verdianos de trazer por casa uma bandeira linguística que os faça sentir diferentes, especiais, originais — como se isso fosse suficiente para escapar ao destino de pequenos arquipélagos periféricos.
O crioulo pode — e deve — viver na oralidade, na música, na poesia popular, no convívio das famílias. É uma fala com ritmo, com sabor, com musicalidade. Mas querer transformá-la em veículo de ensino é uma violência contra o próprio futuro das crianças. O mundo não nos espera. A ciência não se traduz para crioulo. A economia não se discute em crioulo. A diplomacia não se assina em crioulo. Nem sequer os grandes intelectuais da causa escrevem os seus artigos académicos nessa língua que tanto defendem. Porquê? Porque sabem, no íntimo, que não passa de uma bandeira simbólica.
É preciso coragem política para admitir isto. Coragem para suportar o insulto previsível dos arautos da autenticidade, que acusam de traidor qualquer um que ouse questionar o dogma da oficialização. Coragem para não se deixar intimidar pela retórica inflamável dos que confundem identidade com atraso. Ulisses Correia e Silva demonstrou, ao menos por uma vez, essa coragem: resistiu ao coro provinciano e tomou uma decisão sensata.
Alguns dirão que é conservadorismo, outros que é rendição ao colonialismo linguístico. Eu prefiro chamar-lhe progressismo lúcido. Sim, porque há momentos em que o verdadeiro progresso não está em inventar bandeiras, mas em libertar-nos delas. Progresso é compreender que uma criança que domina bem o português tem acesso direto a bibliotecas, universidades, ciência, mercado de trabalho. Que um jovem que aprende inglês abre portas no mundo inteiro. Que um profissional que escreve corretamente em português não precisa de tradutores para ser entendido em Angola, em Portugal, no Brasil, em Moçambique.
Progresso, meus caros, não é insistir numa fantasia linguística que apenas serve para encher discursos de conferências culturais. Progresso é preparar a nova geração para o mundo real, e não para a sala de estar de uma tertúlia identitária.
Hoje, por uma vez, celebro o governo. Celebro o primeiro-ministro que ousou dizer não ao capricho provinciano. Celebro a lucidez rara de um país que, por um breve instante, deixou de lado a ilusão de que a fala de casa podia ser promovida a língua universal.
Se amanhã voltarmos à confusão habitual, não me surpreenderei. Mas hoje, pelo menos hoje, foi um dia de lucidez.
Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com
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