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terça-feira, 9 de setembro de 2025

A miséria e o luxo I


Desde que a tromba de água desabou sobre S. Vicente venho acompanhando em silêncio, com angústia e também com revolta. Angústia porque o povo daquela ilha precisava de chuva, sim, mas das chuvas serenas, fecundas, que penetram na terra e alimentam os campos, e não dessas enxurradas assassinas que arrastaram casas, sonhos e vidas. Não precisavam que a lama viesse bater-lhes à porta para lembrar, com brutalidade, a miséria que já era o seu pão de cada dia.

E o que se viu? Barracas inteiras engolidas pelo barro, pedaços de vidas desfeitos na corrente. Não foi apenas a lama que invadiu a cidade: foi a vergonha nacional o retrato cru de um país que há quarenta anos, os  políticos fingem governar mas nunca souberam dar dignidade ao seu povo.

A miséria ficou exposta, transformada em espectáculo para os drones dos novos ricos Sobrevoar barracos de zinco, de lata e de tábuas como se filmar a pobreza fosse o último grito da modernidade. Cineastas de ocasião, orgulhosos, partilhando tragédias em directo, exibindo desgraças como troféus digitais. O YouTube encheu-se dessa vaidade miserável de um povo pequeno, sempre explorado, agora convertido em figurante da sua própria desgraça.

O presidente da república, vazio de ideias, passeava-se por Lisboa, entre centros comerciais e estádios, a ver jogos, proclamando que Cabo Verde é Benfica. Enquanto os mortos eram enterrados na lama, o chefe de Estado coleccionava bilhetes de futebol. Não é apenas falta de vergonha: é falta de cérebro.

O Neves, mestre em sugar protagonismo, apressou-se a agarrar para si a glória da doação da Fundação Benfica, como se tivesse sido ele a salvar S. Vicente. Um verdadeiro chico-esperto, desses que fazem da tragédia um palco para o seu teatro pessoal.

E não ficamos por aqui. O presidente da Câmara de S. Vicente, esse outro iluminado, abriu a boca para afirmar com orgulho que sempre se construiu casas nas ribeiras. Foi o retrato perfeito da irresponsabilidade criminosa de um autarca que empurra famílias inteiras para os braços da lama. Outro sem cérebro, tal como o presidente da república.

A Janira também quis a sua fatia de palco. Publicou no Facebook uma mensagem politiqueira, fingindo solidariedade enquanto ajudava, de facto, a consolidar a miséria. Mais uma a juntar-se ao clube dos sem cérebro.

Enquanto isso, a população, em vez de se erguer em revolta, agarrou nos telemóveis e começou a transmitir directos. As vítimas, no meio da lama, mostravam ao mundo os seus barracos desfeitos, pedindo ajuda entre pedidos de atenção. Nada de denúncia séria contra os políticos que os condenaram a viver ali. Nada de exigência de dignidade. Apenas pedidos e mais pedidos, embrulhados em vídeos caseiros, com legendas coloridas.

É chocante: a tragédia virou espectáculo digital. O país inteiro transformado em conteúdo para consumo imediato da miséria. Os drones voaram, os novos ricos exibiram a mais recente tecnologia de filmagem, e o povo — faminto, humilhado, mas com iPhones no bolso — continuou a alimentar o circo.

Cabo Verde é hoje um país rico. Rico em miséria humana. Rico em pobreza de espírito. Rico em governantes medíocres que trocam dignidade por viagens a Lisboa. Um país onde há sempre dinheiro para o último modelo de ténis de marca, mas nunca para um tecto seguro. Um país de aviões penhorados, mas de vaidades intactas.

E no meio desta encenação, a lama continua. Não apenas a lama física que matou e arrasou casas. A lama moral, que escorre todos os dias pela boca dos governantes e pela passividade cúmplice de um povo que se habituou à miséria como se fosse destino.

O que caiu em S. Vicente não foi apenas uma tromba de água. Foi o retrato cru de um país inteiro atolado em lama — e que, mesmo assim, insiste em dançar sobre ela, de telemóvel na mão, orgulhoso de transformar a própria desgraça em espectáculo.

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