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segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Saudades do mar



Ericeira foi o local do mais recente encontro do nosso ciclo periódico de almoços. Estes encontros, que vamos alternando de casa em casa ao longo do ano, não são apenas ocasiões de partilha gastronómica: são sobretudo momentos de reencontro, de celebração da amizade e de continuidade de um acto que já se tornou parte de nós.

Ontem, mais uma vez, ficou claro que não é apenas a mesa que nos une, mas sim a vontade de estar juntos, de conversar, de rir e de saborear a vida em comum. Há quem diga que o sabor dos pratos é importante; eu arrisco acrescentar que o tempero essencial está no convívio, na forma como cada um se dispõe a dar um pouco de si e a receber do outro.

A Ericeira, com a sua paisagem marítima e a sua luz inconfundível, acrescentou um pano de fundo especial. Há qualquer coisa de simbólico em estarmos ali, junto do oceano, a falar e a pensar no mar, mesmo quando o assunto não agrada a todos por igual. A vastidão azul, que se estende até ao horizonte, oferece a uns uma sensação de paz e a outros um convite à reflexão. A mim, confesso, oferece sobretudo a lembrança de episódios menos entusiasmantes. Por azar, tive algumas namoradas depressivas – tinham em comum essa mania de querer ver o mar. Para elas, ver o mar era uma espécie de ritual terapêutico: um bálsamo contra as angústias, uma promessa de serenidade. Para mim, foi sempre um suplício arrastado, quase uma penitência sem redenção. Fiquei, por isso, queimado com o assunto. Nunca associei o mar a uma necessidade vital; nunca tive saudades de ouvir o quebrar das ondas nem me ocorreu que a ausência desse som fosse motivo de nostalgia.

E contudo, ontem, sentado à mesa, dei por mim a ouvir as várias interpretações sobre o fascínio do mar. Houve quem defendesse que escutar o marulhar das ondas é uma terapia silenciosa, capaz de apaziguar os nervos mais tensos. Outros falaram da experiência de mergulhar no mar e sentir a água gelada a atravessar os ossos como um choque libertador. Houve ainda quem preferisse a contemplação imóvel, sentado num banco das arribas, a observar o oceano como quem procura ali uma resposta para as grandes perguntas da vida. Para todos, de modos diferentes, o mar é uma referência emocional, quase espiritual.

Ora, para mim, que nunca tive essa ligação, o debate foi divertido. Senti-me quase um estrangeiro na conversa, um exilado da devoção marítima para não dizer um E.T., tal um recém nascido de olhos esbugalhados e de cabeça bicuda visto de perfil pela mãe. 

Quando disse que nunca senti saudades do mar, logo surgiu a suspeita: devo ter um problema qualquer. Talvez, pensei eu, mas não é coisa que me preocupe. Se o mar consola uns, a mim basta-me a mesa bem composta, o vinho partilhado e as histórias trocadas entre amigos. Cada um que procure a sua terapia; eu encontro a minha nestes encontros de convívio.

Uma palavra especial, naturalmente, para a Augusta. Bem sabemos que momentos como este não acontecem por acaso. São fruto de trabalho, de organização e de uma dedicação que se nota em cada detalhe. Desde a escolha dos pratos até à forma cuidada como tudo estava disposto, percebeu-se o empenho e o carinho. Organizar não é apenas preparar comida: é pensar no ambiente, garantir que todos se sentem confortáveis, prever as conversas e até permitir que o tema do mar se infiltrasse na sobremesa. Fica aqui o meu reconhecimento sincero por todo esse esforço, que mais uma vez fez do almoço uma ocasião memorável.

Não posso deixar de notar, ainda, a ausência das netinhas do Bernardo – as diabinhas, como carinhosamente lhes chamamos. Fizeram-se sentir pela falta do barulho que só a ausência de crianças se consegue notar. É curioso como a vida, tal como o mar, se movimenta em ondas: umas vezes temos o barulho alegre das gargalhadas, outras vezes apenas a lembrança do que ficou por acontecer. Ainda assim, mesmo sem a agitação das pequenas, o almoço teve a leveza própria dos momentos bem passados.

Num mundo cada vez mais apressado, em que os dias se atropelam e as preocupações se acumulam, parar para partilhar uma refeição é quase um acto de resistência.

Por tudo isto, quero deixar uma vez mais o meu obrigado. Obrigado, Augusta, pelo trabalho, pela dedicação e pelo cuidado em cada gesto. Obrigado, Bernardo, pela generosa hospitalidade e pela forma como abriste as portas da tua casa.

Se o mar, com o seu apelo misterioso, não me comove nem me consola, o mesmo não posso dizer da vossa companhia. Essa, sim, é indispensável. É nela que encontro a serenidade que outros buscam no oceano. Talvez, afinal, o meu mar esteja aqui: nesta amizade que resiste, nesta mesa que se quer repetir sempre.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

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