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segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A lucidez do Primeiro Ministro Ulisses

 


Finalmente, um sopro de lucidez atravessou as nuvens pesadas da retórica nacional. O governo de Cabo Verde, talvez num raro momento de clareza mental, decidiu retirar do currículo escolar o manual de crioulo. Sim, o mesmo manual que durante anos foi vendido como símbolo de identidade e resgate cultural, mas que, na prática, mais parecia um brinquedo pedagógico destinado a entreter políticos nostálgicos e intelectuais em crise de originalidade.

Eis que Ulisses Correia e Silva, homem habitualmente prudente, desta vez teve a ousadia de enfrentar a gritaria dos eternos guardiões da alma cabo-verdiana. Fê-lo com uma simplicidade quase desarmante: invocou o descontentamento das elites intelectuais, tanto as que se passeiam pelos corredores da Praia e do Mindelo, quanto as que, do conforto das suas diásporas, escrevem manifestos inflamados sobre a importância do crioulo. Elites estas que, ironicamente, raramente escrevem em crioulo os seus textos académicos, os relatórios de cooperação internacional ou os artigos de opinião — todos, invariavelmente, em português ou em inglês, a língua dos adultos.

Convém dizê-lo com clareza: o crioulo não é língua. É um dialeto mestiço, uma invenção oral nascida da necessidade, útil para a comunicação quotidiana, mas incapaz de suportar a sofisticação de uma gramática sólida, de um corpo literário estruturado ou de uma produção científica minimamente respeitável. Que ninguém se ofenda: não é uma questão de desprezo, mas de realismo. O crioulo nunca atravessou a linha que separa a fala caseira da língua institucional. Não possui um padrão unificado — cada ilha cultiva o seu sotaque e a sua variação como quem guarda o último segredo de família. Como poderia, então, ser transformado em instrumento de ensino? Como ensinar matemática, física ou biologia num idioma que não possui sequer consenso ortográfico entre linguistas?

Mas há ainda um outro ingrediente neste caldo provinciano: a vaidade dos analfabetos. Muitos dos mais ruidosos defensores da língua cabo-verdiana são precisamente aqueles que nunca conseguiram dominar o português escrito e que veem na oficialização do crioulo uma espécie de vingança simbólica contra a gramática, a ortografia e a disciplina do estudo. Para eles, escrever em crioulo seria a consagração da sua própria ignorância: finalmente o erro deixaria de ser erro e o improviso oral passaria a chamar-se literatura. É a vingança doce do analfabeto: não aprender a língua oficial, mas transformar a sua limitação pessoal em bandeira política. Uma pirueta genial — e desastrosa.

Os defensores da oficialização do crioulo comportam-se como missionários de uma religião exótica: carregam consigo uma fé inabalável na sua causa, mesmo que os factos a contradigam dia após dia. Invocam slogans sobre identidade, raízes e autenticidade, como se a elevação do crioulo ao estatuto de língua nacional fosse resolver a crise educativa ou, milagre dos milagres, melhorar a compreensão leitora das nossas crianças. É uma fantasia provinciana, um complexo de inferioridade disfarçado de orgulho cultural. O que está em jogo não é pedagogia, é vaidade. É a tentativa desesperada de certos cabo-verdianos de trazer por casa uma bandeira linguística que os faça sentir diferentes, especiais, originais — como se isso fosse suficiente para escapar ao destino de pequenos arquipélagos periféricos.

O crioulo pode — e deve — viver na oralidade, na música, na poesia popular, no convívio das famílias. É uma fala com ritmo, com sabor, com musicalidade. Mas querer transformá-la em veículo de ensino é uma violência contra o próprio futuro das crianças. O mundo não nos espera. A ciência não se traduz para crioulo. A economia não se discute em crioulo. A diplomacia não se assina em crioulo. Nem sequer os grandes intelectuais da causa escrevem os seus artigos académicos nessa língua que tanto defendem. Porquê? Porque sabem, no íntimo, que não passa de uma bandeira simbólica.

É preciso coragem política para admitir isto. Coragem para suportar o insulto previsível dos arautos da autenticidade, que acusam de traidor qualquer um que ouse questionar o dogma da oficialização. Coragem para não se deixar intimidar pela retórica inflamável dos que confundem identidade com atraso. Ulisses Correia e Silva demonstrou, ao menos por uma vez, essa coragem: resistiu ao coro provinciano e tomou uma decisão sensata.

Alguns dirão que é conservadorismo, outros que é rendição ao colonialismo linguístico. Eu prefiro chamar-lhe progressismo lúcido. Sim, porque há momentos em que o verdadeiro progresso não está em inventar bandeiras, mas em libertar-nos delas. Progresso é compreender que uma criança que domina bem o português tem acesso direto a bibliotecas, universidades, ciência, mercado de trabalho. Que um jovem que aprende inglês abre portas no mundo inteiro. Que um profissional que escreve corretamente em português não precisa de tradutores para ser entendido em Angola, em Portugal, no Brasil, em Moçambique.

Progresso, meus caros, não é insistir numa fantasia linguística que apenas serve para encher discursos de conferências culturais. Progresso é preparar a nova geração para o mundo real, e não para a sala de estar de uma tertúlia identitária.

Hoje, por uma vez, celebro o governo. Celebro o primeiro-ministro que ousou dizer não ao capricho provinciano. Celebro a lucidez rara de um país que, por um breve instante, deixou de lado a ilusão de que a fala de casa podia ser promovida a língua universal.

Se amanhã voltarmos à confusão habitual, não me surpreenderei. Mas hoje, pelo menos hoje, foi um dia de lucidez.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sábado, 20 de setembro de 2025

Estufa Fria

Portugal decidiu reconhecer o chamado Estado da Palestina. A decisão é celebrada por uns como acto de coragem diplomática e por outros como dever moral. Mas a verdade nua e crua, despida de propaganda e sentimentalismo barato, Portugal escolheu legitimar o caos. Reconhecer como Estado aquilo que não passa de um território dominado por facções terroristas, sem eleições livres, sem instituições credíveis e sem qualquer condição mínima para ser considerado soberano é uma cagada em três actos. Mais uma vez é necessário expor as contradições, manipulações e hipocrisias que sustentam esta farsa, confrontando a narrativa oficial com dados concretos, números irrefutáveis e uma análise fria da realidade.

A primeira pergunta é inevitável: qual Estado? A Palestina não possui fronteiras definidas, não tem moeda própria, não controla espaço aéreo, marítimo ou terrestre. O que existe são dois enclaves — Gaza e Cisjordânia — governados por rivais que se odeiam entre si e nos intervalos atiram roquetes para Israel e raptam civis idosos e crianças. Na Cisjordânia, a Autoridade Palestiniana governa sem legitimidade democrática: não há eleições desde 2006. Mahmoud Abbas, no poder há quase vinte anos e já perto dos noventa, transformou-se num ditador sustentado por um aparelho de segurança e pelos milhões desviados da ajuda internacional. Em Gaza manda o Hamas, organização reconhecida como terrorista pela União Europeia e pelos Estados Unidos, cujo estatuto fundador proclama abertamente a destruição de Israel.

Reconhecer esta realidade como Estado é o mesmo que legitimar uma coligação entre máfia, cartéis da droga e jihadistas. Portugal premeia a corrupção, a violência e os raptos. O mínimo teria sido exigir a  de reféns, o desarmamento do Hamas e o reconhecimento do Estado de Israel pelos palestinianos. Até hoje nenhuma dessas condições foi satisfeita. Ainda assim, Lisboa segue a cantiga de Madrid e de Pretória. Quanto à África do Sul, basta procurar no YouTube documentários sobre o que os negros fizeram a Joanesburgo para perceber o paralelo. A ONU transformou a questão palestiniana numa indústria. Cinco agências dedicam-se em exclusivo a esta causa, gerindo campos de refugiados que já duram há mais de setenta anos. É um caso único: os palestinianos são a única população do mundo cujos descendentes continuam oficialmente classificados como refugiados, geração após geração.

Resolver o problema não interessa. A miséria é negócio. Os campos são fonte de financiamento contínuo para a ONU e para organizações associadas. Se o problema fosse resolvido, milhares de burocratas perderiam os seus empregos e contratos milionários evaporar-se-iam. Gaza e Ramallah são palcos de miséria encenada para as câmaras da CNN e da Al Jazeera. Uma miséria mantida de pé porque rende horas de antena para papalvos. Agora repete-se até à exaustão a narrativa da fome. Imagens de crianças magras e filas por pão circulam como armas emocionais. Mas os números são claros: só no último ano entraram em Gaza mais de 100 mil camiões carregados de alimentos, cada um com cerca de vinte toneladas. Mais de dois milhões de toneladas de produtos básicos.

Isto equivale a cerca de 600 quilos de alimentos por cada habitante. Em qualquer parte do mundo seria suficiente para eliminar a escassez. Mas em Gaza cerca de 400 quilos desaparecem logo à chegada. Parte vai para o mercado negro, parte enche armazéns do Hamas, parte perde-se na corrupção. A população não passa fome por falta de recursos, mas porque o sofrimento é moeda política. A fome serve à propaganda, não à barriga do povo. Outra mentira é a conversa do genocídio. O tal genocídio que multiplica a população. Israel é acusado diariamente de genocídio em Gaza. Mas basta abrir as estatísticas para desmontar o mito.

Desde 1970 a população de Gaza não parou de crescer: de 400 mil habitantes para mais de 2,2 milhões. Quadruplicou em meio século. Pergunta simples: em que genocídio da história documentada uma população quadruplica? Em nenhum. Em genocídios verdadeiros, as populações são exterminadas. Em Gaza multiplicam-se. Chamar a isto genocídio é uma falsificação e um insulto às vítimas de genocídios autênticos, do Holocausto aos tutsis do Ruanda. Outro ponto que a propaganda ignora: o exército israelita anuncia previamente os ataques, avisa a população para abandonar as zonas de combate, cumpre regras internacionais de guerra e actua fardado e identificado.

O Hamas, pelo contrário, mistura-se com a população, usa escolas, hospitais e mesquitas para armazenar armas e serve-se de civis como escudos humanos. A diferença é total: um cumpre deveres de um Estado, o outro pratica terrorismo. Todas as facções palestinianas armadas — Hamas, Jihad Islâmica, Brigadas Mártires de al-Aqsa, Frente Popular — convergem num único objectivo: a destruição de Israel. Não se trata de negociar fronteiras ou coexistência, mas de eliminar um Estado soberano. Israel, por seu lado, é o único país do Médio Oriente com eleições livres, imprensa independente, minorias representadas no parlamento e tribunais que condenam políticos de topo por corrupção. Ainda assim, é Israel que Portugal condena e é o Hamas que Portugal legitima ao reconhecer a Palestina como Estado.

Portugal tem uma diplomacia igual à da estufa a que os gays praticam na Estufa Fria. Ao reconhecer a Palestina, não escolhe a justiça, escolhe a propaganda, não escolhe a paz, escolhe a farsa, não escolhe o direito internacional, escolhe alinhar com quem lucra com a miséria. Uma vergonha que ficará na História como um capítulo da política externa portuguesa marcada por incoerência, subserviência e provincianismo da Estufa fria. Portugal podia defender a verdade, confrontar as mentiras, afirmar o direito de Israel à existência em paz. Preferiu a via fácil: o aplauso momentâneo da ONU e dos opinadores da Estufa Fria.

Reconhecer a Palestina é reconhecer o inexistente. É premiar a corrupção, legitimar o terrorismo, alimentar a indústria do vitimismo e perpetuar a miséria.

Portugal, ao fazê-lo, escolheu o lado errado da História. E fá-lo-á sem vergonha, sem pudor, sem dignidade. Uma verdadeira vergonha ao ar livre igual ao que se pratica nas noites frias da Estufa.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com


segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Afinal está tudo entulhado

  

Ele garantiu semanas a fio na CNN que os quatrocentos quilos de urânio enriquecido a sessenta por cento, nas instalações subterrâneas do Irão, estavam perfeitamente a salvo, retirados do local de enriquecimento antes do início da chamada guerra dos “doze dias” entre Israel e Irão.

Também assegurou que Israel nunca atacaria o Irão porque o Irão não era Gaza nem o Líbano. Quis mostrar ao mundo que tinha informações credíveis sobre as centrifugadoras iranianas. Contudo, a história gosta de contrariar os brincalhões.

Agostinho não se limitou a lançar uma hipótese; jurou, de pés juntos, que o material nuclear mais sensível do Médio Oriente estava guardado em local seguro. O detalhe não importava, o que interessava era a pose, a certeza e a pompa com que anunciava a sua convicção. O tom era tão categórico que parecia profecia.

Afinal, ontem pelas treze horas soubemos de outra realidade: os bombardeamentos contínuos sobre as instalações nucleares iranianas transformaram tudo em entulho. Mais irónico ainda: o Irão anunciou também um acordo com a Agência Internacional de Energia Atómica para que técnicos tentem verificar, debaixo da montanha, em que condições o urânio realmente se encontra. Ou seja, enquanto Agostinho garantia a salvação total do material, o próprio país envolvido e a agência de vigilância nuclear admitiam não saber se o urânio está intacto, perdido ou contaminado. A narrativa triunfal do general caía por terra mais uma vez.

Como ficamos, então, Agostinho? De duas, uma: ou as tuas fontes seguras não passam de grupos de WhatsApp com conversa mole, ou alguém anda a soprar-te mentiras ao ouvido. Talvez de Moscovo? Talvez de Teerão? Ou será apenas a vaidade de aparecer na CNN a promover Moscovo?

Não sejamos ingénuos. A história da espionagem está cheia de generais, conselheiros e analistas que, um belo dia, se revelaram mais leais ao inimigo do que à bandeira que ostentavam no uniforme. A dúvida é legítima: será Agostinho apenas mais um falador compulsivo, viciado em microfones e holofotes, ou estaremos perante um caso clássico de infiltração, em que a desinformação serve de arma para descredibilizar a própria NATO?

E assim chegamos ao cúmulo: de um lado, um general que anuncia certezas; do outro, a dura realidade de escombros radioativos, acordos de emergência com a Agência de Energia Atómica e declarações oficiais que o desmentem. Pergunta-se, sem rodeios: Agostinho, o que tens a dizer sobre a notícia de ontem? Não basta desfilar nos estúdios da CNN com ar de estratega. A guerra não se ganha na televisão; a guerra ganha-se com informações verdadeiras — e essa, ao que parece, continua enterrada, junto com os quatrocentos quilos de urânio que juraste estarem a salvo.

Adérito Barbosa, in olhosemlente.blogspot.com

terça-feira, 9 de setembro de 2025

A miséria e o luxo I


Desde que a tromba de água desabou sobre S. Vicente venho acompanhando em silêncio, com angústia e também com revolta. Angústia porque o povo daquela ilha precisava de chuva, sim, mas das chuvas serenas, fecundas, que penetram na terra e alimentam os campos, e não dessas enxurradas assassinas que arrastaram casas, sonhos e vidas. Não precisavam que a lama viesse bater-lhes à porta para lembrar, com brutalidade, a miséria que já era o seu pão de cada dia.

E o que se viu? Barracas inteiras engolidas pelo barro, pedaços de vidas desfeitos na corrente. Não foi apenas a lama que invadiu a cidade: foi a vergonha nacional o retrato cru de um país que há quarenta anos, os  políticos fingem governar mas nunca souberam dar dignidade ao seu povo.

A miséria ficou exposta, transformada em espectáculo para os drones dos novos ricos Sobrevoar barracos de zinco, de lata e de tábuas como se filmar a pobreza fosse o último grito da modernidade. Cineastas de ocasião, orgulhosos, partilhando tragédias em directo, exibindo desgraças como troféus digitais. O YouTube encheu-se dessa vaidade miserável de um povo pequeno, sempre explorado, agora convertido em figurante da sua própria desgraça.

O presidente da república, vazio de ideias, passeava-se por Lisboa, entre centros comerciais e estádios, a ver jogos, proclamando que Cabo Verde é Benfica. Enquanto os mortos eram enterrados na lama, o chefe de Estado coleccionava bilhetes de futebol. Não é apenas falta de vergonha: é falta de cérebro.

O Neves, mestre em sugar protagonismo, apressou-se a agarrar para si a glória da doação da Fundação Benfica, como se tivesse sido ele a salvar S. Vicente. Um verdadeiro chico-esperto, desses que fazem da tragédia um palco para o seu teatro pessoal.

E não ficamos por aqui. O presidente da Câmara de S. Vicente, esse outro iluminado, abriu a boca para afirmar com orgulho que sempre se construiu casas nas ribeiras. Foi o retrato perfeito da irresponsabilidade criminosa de um autarca que empurra famílias inteiras para os braços da lama. Outro sem cérebro, tal como o presidente da república.

A Janira também quis a sua fatia de palco. Publicou no Facebook uma mensagem politiqueira, fingindo solidariedade enquanto ajudava, de facto, a consolidar a miséria. Mais uma a juntar-se ao clube dos sem cérebro.

Enquanto isso, a população, em vez de se erguer em revolta, agarrou nos telemóveis e começou a transmitir directos. As vítimas, no meio da lama, mostravam ao mundo os seus barracos desfeitos, pedindo ajuda entre pedidos de atenção. Nada de denúncia séria contra os políticos que os condenaram a viver ali. Nada de exigência de dignidade. Apenas pedidos e mais pedidos, embrulhados em vídeos caseiros, com legendas coloridas.

É chocante: a tragédia virou espectáculo digital. O país inteiro transformado em conteúdo para consumo imediato da miséria. Os drones voaram, os novos ricos exibiram a mais recente tecnologia de filmagem, e o povo — faminto, humilhado, mas com iPhones no bolso — continuou a alimentar o circo.

Cabo Verde é hoje um país rico. Rico em miséria humana. Rico em pobreza de espírito. Rico em governantes medíocres que trocam dignidade por viagens a Lisboa. Um país onde há sempre dinheiro para o último modelo de ténis de marca, mas nunca para um tecto seguro. Um país de aviões penhorados, mas de vaidades intactas.

E no meio desta encenação, a lama continua. Não apenas a lama física que matou e arrasou casas. A lama moral, que escorre todos os dias pela boca dos governantes e pela passividade cúmplice de um povo que se habituou à miséria como se fosse destino.

O que caiu em S. Vicente não foi apenas uma tromba de água. Foi o retrato cru de um país inteiro atolado em lama — e que, mesmo assim, insiste em dançar sobre ela, de telemóvel na mão, orgulhoso de transformar a própria desgraça em espectáculo.

domingo, 7 de setembro de 2025

Rockin’ 1000 Leiria 2025

À hora marcada o cronómetro regressivo foi descontando segundos em direcção ao zero. Quando finalmente estalou o zero, rebentou o Rockin’1000 no estádio. Fui, com a ajuda da minha filha, ver a malta dos mil roqueiros. E olhem que foi coisa bonita de se ver.

O concerto teve o selo do Turismo Centro de Portugal e, ao que parece, também da edilidade de Leiria. Vieram músicos de todo o mundo, cerca de trinta países representados. Europa, América do Sul, África do Sul, Indonésia. O mais velho tinha setenta e quatro anos, português, baixista. Os dois mais novos também portugueses. Curiosamente, os três de Leiria.

Antes da primeira nota, houve o ritual: juramento solene de que ninguém se atreveria a dedilhar cordas ou a martelar teclas nos intervalos. Disciplina, dizia-se. Mas disciplina rockeira, com mais de mil almas prontas a rebentar colunas de som… é obra.

No ano passado, o alinhamento do relvado foi de duzentos e vinte vocalistas, trezentos e cinquenta guitarristas, cento e oitenta baixistas, duzentos bateristas e cinquenta teclistas. Este ano o equilíbrio foi semelhante, só mudou a energia. Do Brasil chegou o maestro Daniel Plantes, e da casa tivemos Daniel José Neto. Ambos meteram ordem na anarquia, chicote em riste mas com um sorriso de quem manda.

O público vibrava ao fim de cada música, e logo de seguida as trezentas e cinquenta guitarras, carregadas de drives, rasgavam o ar sob o olhar do castelo. Bateria a rebentar pratos, baixo a cavar o chão, teclas a costurar atmosferas, vozes a gritar ao céu. E que vozes. A maioria raparigas, a saltar e a cantar como se a vida lhes dependesse desse momento, numa espiral sonora, sempre a subir, até ao infinito, a cortar-nos o fôlego.

Nas bancadas ninguém ficou quieto. Eu próprio, pregado na cadeira, batia o pé e abanava o capacete, contagiado pelas músicas. Todo o estádio cantava, e tudo tremia de tal forma que por momentos temi pelas juntas do meu esqueleto.

E houve convidados. A Marisa Liz apareceu no palanque central, com a canção “Guerra Nuclear”, acompanhada pelos mil. Foi um momento fora da escala. Depois, surpresa maior: o Tim dos Xutos disparou a canção À minha maneira.

Nem tudo foi música. O organizador, armado em profeta de causas, resolveu puxar a ladainha do costume, o discurso mole dos coitadinhos palestinianos, parlapier escrita pelos de sempre. Gaza e Sudão no cartaz da converseta, silêncio absoluto sobre Israel, que há setenta anos engole foguetes, raptos e insultos de ódios da vizinhança. Foi um momento de incoerência vestido de moralismo barato.

No próximo ano lá estarei, quem sabe como músico participante.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blospot.com

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Os Ratos de Calhoun



Quem não conhece a célebre experiência de John B. Calhoun, baptizada de Universo 25? 

O cientista fechou ratos num condomínio de luxo: comida à descrição, água corrente, abrigo seguro, sem predadores nem lutas pela sobrevivência. Criou-lhes um paraíso perfeito.

O paraíso, porém, durou pouco. Rapidamente os ratos descobriram que, sem esforço, a vida perde sentido.

No início, tudo corria bem: ratos bem nutridos, a multiplicarem-se a ritmo acelerado. A população cresceu em flecha e parecia que a experiência iria triunfar. Mas não. Em poucos meses, o condomínio entrou em decadência: menos reprodução, mais agressividade, hierarquias rígidas — uns tornaram-se reis, outros foram relegados à miséria. As mães começaram a abandonar as crias, os machos afundaram-se em apatia, e a comunidade resvalou para canibalismo, violência e comportamentos estranhos. Depois deixou de nascer qualquer cria e a mortalidade chegou a 100%. Restou apenas um silêncio de cemitério.

Calhoun chamou-lhe Universo 25. Eu chamar-lhe-ia a grande experiência da esquerda radical em laboratório.

Um Estado que oferece tudo de mão beijada, elimina a competição natural, proclama que ninguém deve enfrentar dificuldades e que a luta pela sobrevivência é fascismo. O resultado? Gerações inteiras que confundem direitos com esmolas, mérito com privilégio, trabalho com exploração.

Os ratos de Calhoun não tinham culpa: reagiram como ratos, perderam o rumo e devoraram-se. Os políticos da esquerda radical fazem o mesmo — mas conscientemente. Montam um sistema de abundância artificial, pago com o dinheiro dos contribuintes, e vendem a ilusão de que a teta do Estado é inesgotável.

Só que seca. E quando seca, seca de vez.

Tal como no laboratório, os ratos alfa são os barões do partido, prontos a morder os fracos enquanto discursam sobre igualdade.

As fêmeas que abandonam as crias são as ministras e secretárias de Estado que falam em políticas familiares enquanto empurram os filhos dos outros para a creche subsidiada.

Os miseráveis são a massa de dependentes, eternos eleitores fiéis, convencidos de que são protegidos quando, na realidade, apenas prolongam a experiência como cobaias.

No fim, como no Universo 25, não faltará comida. Faltará sentido. O colapso não vem da escassez, mas da saturação: o apodrecimento lento de uma sociedade que já não encontra propósito porque tudo lhe foi dado sem esforço.

E, inevitavelmente, a elite de ratos culpará o neoliberalismo enquanto a colónia se dissolve em silêncio.

A moral da história é simples: as minorias sem luta, sem mérito e sem esforço são um paraíso, são uma ratoeira. E os políticos da esquerda, são os zeladores desse laboratório gigante a que chamamos de subsídio garantido.

O que me assusta é repetir a experiência quando se sabe de antemão qual será o resultado. Mais subsidiados.

E, se dúvidas restassem, basta olhar para o nosso palco político nacional: o Bloco desapareceu no nevoeiro a caminho de Gaza e espero que não volte nunca mais.  O PCP esse definha à espera que um proletariado angustiado ressuscite e o PS arrasta-se como um rato obeso que comeu demasiado queijo. Todos vítimas do seu próprio Universo 25, todos a apodrecer no mesmo condomínio ideológico onde prometeram dar o que não é deles. No fim, sobrou-lhes apenas o silêncio — o silêncio de cemitério que sempre acompanha os ratos quando a teta seca.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Saudades do mar



Ericeira foi o local do mais recente encontro do nosso ciclo periódico de almoços. Estes encontros, que vamos alternando de casa em casa ao longo do ano, não são apenas ocasiões de partilha gastronómica: são sobretudo momentos de reencontro, de celebração da amizade e de continuidade de um acto que já se tornou parte de nós.

Ontem, mais uma vez, ficou claro que não é apenas a mesa que nos une, mas sim a vontade de estar juntos, de conversar, de rir e de saborear a vida em comum. Há quem diga que o sabor dos pratos é importante; eu arrisco acrescentar que o tempero essencial está no convívio, na forma como cada um se dispõe a dar um pouco de si e a receber do outro.

A Ericeira, com a sua paisagem marítima e a sua luz inconfundível, acrescentou um pano de fundo especial. Há qualquer coisa de simbólico em estarmos ali, junto do oceano, a falar e a pensar no mar, mesmo quando o assunto não agrada a todos por igual. A vastidão azul, que se estende até ao horizonte, oferece a uns uma sensação de paz e a outros um convite à reflexão. A mim, confesso, oferece sobretudo a lembrança de episódios menos entusiasmantes. Por azar, tive algumas namoradas depressivas – tinham em comum essa mania de querer ver o mar. Para elas, ver o mar era uma espécie de ritual terapêutico: um bálsamo contra as angústias, uma promessa de serenidade. Para mim, foi sempre um suplício arrastado, quase uma penitência sem redenção. Fiquei, por isso, queimado com o assunto. Nunca associei o mar a uma necessidade vital; nunca tive saudades de ouvir o quebrar das ondas nem me ocorreu que a ausência desse som fosse motivo de nostalgia.

E contudo, ontem, sentado à mesa, dei por mim a ouvir as várias interpretações sobre o fascínio do mar. Houve quem defendesse que escutar o marulhar das ondas é uma terapia silenciosa, capaz de apaziguar os nervos mais tensos. Outros falaram da experiência de mergulhar no mar e sentir a água gelada a atravessar os ossos como um choque libertador. Houve ainda quem preferisse a contemplação imóvel, sentado num banco das arribas, a observar o oceano como quem procura ali uma resposta para as grandes perguntas da vida. Para todos, de modos diferentes, o mar é uma referência emocional, quase espiritual.

Ora, para mim, que nunca tive essa ligação, o debate foi divertido. Senti-me quase um estrangeiro na conversa, um exilado da devoção marítima para não dizer um E.T., tal um recém nascido de olhos esbugalhados e de cabeça bicuda visto de perfil pela mãe. 

Quando disse que nunca senti saudades do mar, logo surgiu a suspeita: devo ter um problema qualquer. Talvez, pensei eu, mas não é coisa que me preocupe. Se o mar consola uns, a mim basta-me a mesa bem composta, o vinho partilhado e as histórias trocadas entre amigos. Cada um que procure a sua terapia; eu encontro a minha nestes encontros de convívio.

Uma palavra especial, naturalmente, para a Augusta. Bem sabemos que momentos como este não acontecem por acaso. São fruto de trabalho, de organização e de uma dedicação que se nota em cada detalhe. Desde a escolha dos pratos até à forma cuidada como tudo estava disposto, percebeu-se o empenho e o carinho. Organizar não é apenas preparar comida: é pensar no ambiente, garantir que todos se sentem confortáveis, prever as conversas e até permitir que o tema do mar se infiltrasse na sobremesa. Fica aqui o meu reconhecimento sincero por todo esse esforço, que mais uma vez fez do almoço uma ocasião memorável.

Não posso deixar de notar, ainda, a ausência das netinhas do Bernardo – as diabinhas, como carinhosamente lhes chamamos. Fizeram-se sentir pela falta do barulho que só a ausência de crianças se consegue notar. É curioso como a vida, tal como o mar, se movimenta em ondas: umas vezes temos o barulho alegre das gargalhadas, outras vezes apenas a lembrança do que ficou por acontecer. Ainda assim, mesmo sem a agitação das pequenas, o almoço teve a leveza própria dos momentos bem passados.

Num mundo cada vez mais apressado, em que os dias se atropelam e as preocupações se acumulam, parar para partilhar uma refeição é quase um acto de resistência.

Por tudo isto, quero deixar uma vez mais o meu obrigado. Obrigado, Augusta, pelo trabalho, pela dedicação e pelo cuidado em cada gesto. Obrigado, Bernardo, pela generosa hospitalidade e pela forma como abriste as portas da tua casa.

Se o mar, com o seu apelo misterioso, não me comove nem me consola, o mesmo não posso dizer da vossa companhia. Essa, sim, é indispensável. É nela que encontro a serenidade que outros buscam no oceano. Talvez, afinal, o meu mar esteja aqui: nesta amizade que resiste, nesta mesa que se quer repetir sempre.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

Publicação em destaque

Florbela Espanca, Correspondência (1916)

"Eu não sou como muita gente: entusiasmada até à loucura no princípio das afeições e depois, passado um mês, completamente desinter...