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quarta-feira, 19 de novembro de 2025

50 anos de complexo de inferioridade

  


Cinquenta anos de independência, 3,8 mil milhões de dólares desaparecidos no BES/BESA Angola, e todas as infra-estruturas deixadas para trás. Ainda assim, o Presidente angolano tem a ousadia, passados 59 anos, de vir falar do colonialismo português.

No discurso, o homem dirigiu duras críticas ao passado colonial de Portugal em Angola, afirmando que o país fora oprimido e escravizado durante séculos.

Sustentou que Angola não esquece os séculos de humilhação e exploração sob domínio português.

Num tom ainda mais incisivo, classificou historicamente os portugueses como exploradores e escravagistas, segundo relatos da própria imprensa angolana.

Ao mesmo tempo, celebrou os cinquenta anos de independência como um percurso de superação, afirmando que Angola se ergueu das cinzas da opressão e construiu a sua liberdade com sangue.

Ó Sr. Presidente Lourenço, então como é?

Cinquenta anos de independência e nada fez, salvo permitir que os da sua laia enchessem os bolsos, enquanto o Banco Espírito Santo Angola acumulava uma carteira de crédito malparado na ordem dos 5,7 mil milhões de dólares.

De acordo com um relatório parlamentar português, a exposição do Banco Espírito Santo ao BESA ascendia a 3.880 milhões de euros em 30 de Junho de 2014.

Sabe o que fizeram ao dinheiro? Não sabe?

Sr. Presidente, deixe os complexos de inferioridade e cuide dos cidadãos. Afinal, já passaram cinquenta anos. Veja a fotografia.


Adérito Barbosa, in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Otário certificado

 




Eu sou um verdadeiro totó entre milhões de otários portugueses que esta noite assistiu ao primeiro debate entre o presidenciável André e António Seguro. O debate foi igual aos milhares que já vi desde os tempos do PREC, quando ainda achávamos que o país ia endireitar-se por força da vontade popular.

O André não disse nada. Aliás, disse tanto nada que quase me convenceu de que o vazio é uma proposta política séria. Não ouviu nada, não respondeu a nada, não explicou porque razão desistiu de varrer Portugal como primeiro-ministro para agora nos prometer que vai pôr Portugal na ordem como presidente. Fiquei baralhado. Em Portugal, quem gere a política é o primeiro-ministro e não o presidente — mas pronto, talvez eu seja demasiado quadrado para perceber estas novas estratégias de governação. 

Então, porquê estou a escrever esta lenga-lenga? Porque depois do debate dei comigo a ouvir os comentadeiros do costume, os mesmos oleosos que aparecem em todos os canais como praga de caracóis e caramujos no meu quintal  a explicar-me como é que eu deveria ter visto o debate. Não basta assistir; é preciso ser reeducado. Fui informado que o André esteve seguro e  que o Seguro esteve contido.

E foi aí que me senti um totó, um verdadeiro otário certificado pelo Sistema Nacional de Interpretação Televisiva. Passo meia hora a ver dois homens um a falar de assunto da república e no fim, chegam os iluminados de microfone na lapela a explicar-me que afinal não percebi nada. Eu, que até já devia ter crédito de horas acumuladas por consumo abusivo de debates, afinal continuo a ser um ignorante com carteira profissional de eleitor enganado.

Enquanto ouvia os comentadeiros, percebi que o país vive numa espécie de teatro prolongado onde todos fingem compreender o enredo, menos eu. E eu, como bom totó, continuo a aparecer religiosamente em frente à televisão e é isso que me irrita: o facto de eu continuar a cair na armadilha. Continuar a acreditar que desta é que é, que alguém vai finalmente falar claro, assumir responsabilidades, dizer para que serve o cargo que ambiciona. Mas não. A política portuguesa é como aqueles velhos televisores com válvulas cansadas: fazem barulho, aquecem muito, mas a imagem é sempre uma porcaria.

Talvez seja esse o meu destino enquanto contribuinte e espectador desta comédia nacional.

Conheço o Tozé há cerca de 40 anos. Por isso ele conta com o meu voto.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Três dias, um apagão e setenta euros

 



A Europa passou anos a martelar o juízo ao povo sobre as virtudes do dinheiro de plástico: use o cartão, é mais prático; pague por aproximação, é moderno; evite o dinheiro vivo!

Com essa treta converseta — os bancos encheram-se de comissões e as autoridades fizeram o resto com as célebres buscas judiciais. Encontrar dinheiro vivo tornou-se um escândalo mediático. Bastava meia dúzia de notas no fundo de uma gaveta para o comentador de serviço Luís Rosa anunciar, em directo, o novo paradigma da corrupção doméstica. O dinheiro comigo honestamente ganho, passou a ser suspeito.

Eis senão quando as mentes gloriosas de Bruxelas, decidiram impor a norma da pureza financeira: proibido pagar em dinheiro acima de três mil euros.

A liberdade do cidadão passou a caber num envelope de tamanho médio. Tudo o que ultrapassasse esse limite era automaticamente pecado fiscal, heresia monetária, sintoma de desvio moral.

Mas o destino tem um sentido de humor do catano.

Deu-lhes agora para anunciar os efeitos dos apagões.

E o Banco de Portugal, num rasgo de lucidez, veio recomendar que as pessoas tivessem algum dinheiro em casa para acautelar eventuais interrupções de energia. É a ironia institucional no seu esplendor: depois de criminalizarem o dinheiro vivo, voltam a aconselhar o seu uso — mas com moderação, claro, não vá o povo entusiasmar-se.

E eis a pérola: setenta euros. Setenta euros.

Segundo a autoridade monetária, é o montante ideal para sobreviver três dias de apagão.

Três dias e setenta euros — uma matemática de cordel, só ao alcance de quem nunca entrou num supermercado.

Parece uma experiência social: cortar a luz, desligar os sistemas e ver quanto tempo o povo aguenta com o bolso regulamentado.

Depois de nos dizerem o que comer, o que fumar, o que pensar, o que dizer e como F@der, chegou o momento inevitável: dizem-nos quanto dinheiro podemos ter e quanto tempo ele deve durar.

No fundo, é o Estado a dar-nos a liberdade de escolher como gastar os nossos setenta euros — até ao apagão seguinte.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

domingo, 9 de novembro de 2025

Feira do Cavalo 2025



 A convite do José Dias, fui a correr. Golegã fervilhava e estava no auge, está a decorrer a Feira do Cavalo.

Segundo a anfitriã, a vila cresceu e prosperou com o trabalho agrícola e o comércio. Mais tarde, no século XVIII, a tradição equestre ganhou força com as feiras dedicadas a São Martinho, onde os criadores de cavalos exibiam os seus melhores animais. Essas feiras evoluíram até se tornarem na actual Feira Nacional do Cavalo, evento de prestígio que celebra o majestoso cavalo lusitano e mantém viva a essência rural e cultural da região.

Foi neste cenário de história e tradição que decorreu o almoço. O Martins também lá esteve; veio de Gaia e contou histórias que fariam o mais céptico desmanchar-se a rir.

A Golegã, com a sua paisagem marcada pela lezíria e pela serenidade do Tejo, ofereceu o cenário ideal para um dia inesquecível e proporcionou-me uma passagem pela exposição digital na Casa da Música José Dias

Foi um dia memorável, já guardado na memória. 

Para memória futura registei.

Obrigado malta.

Adérito Barbosa, in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

O Conluio dos Fariseus

 


Monte Negro, antes de ser primeiro-ministro, vivia no parque de diversões da oposição. Ali, debaixo dos holofotes, fazia-se ouvir como um profeta indignado com cada parturiente que paria num banco de ambulância ou num corredor de hospital. A cada tragédia, lá vinha ele, com ar grave e voz de trovão, anunciar a catástrofe nacional. O homem sofria, ou fingia sofrer, com uma intensidade que faria corar qualquer cão de loiça. O país, dizia ele, não podia continuar assim — tínhamos de mudar, tínhamos de reformar, tínhamos de refundar o SNS, ou coisa que o valha.

Ao lado, o noviço André, apóstolo das juras de ocasião, fazia de relé. Repetia as palavras do ex-colega com zelo. Quando um gritava vergonha, o outro berrava escândalo, bandalheira. O povo, entorpecido pela ladainha, foi acreditando que o pântano ia secar, que a lama seria varrida, que a justiça chegaria um dia.

Entretanto, Marcelo, o criador de factos, o eterno encenador do improviso, o pior presidente de todos os presidentes, não descansou enquanto não empurrou Costa para as luzes de Bruxelas. Foi uma encenação perfeita. Lá se aparamentou o eleito no altar europeu, com a bênção presidencial. Marta Temido, essa sacerdotisa da saúde mediática, aproveitou a deixa: a morte de uma parturiente deu-lhe asas, e lá foi ela também para a Europa lavar a alma. Levou consigo o puto-maravilha, o seu Sebastião Bugalho, que também subiu para a carroça e arrumou bagagem rumo a Bruxelas.

Foram-se embora todos. Deixaram o altar por purificar. Ficou Monte Negro com o incensário nas mãos, cheiro a incenso e fumo no ar — o país à espera de milagre. E o milagre nunca veio.

Agora morrem parturientes e bebés recém-nascidos todos os dias. As ambulâncias continuam a servir de berçário de emergência. A ministra da Saúde, outrora ministra-sombra, é agora sombra de si própria. Fala muito, age pouco, e quando age é sempre tarde demais. Miguel Guimarães, que fazia política como bastonário dos médicos e hoje é deputado das promessas, jurou revolução na saúde e garantia que o hospital do Oeste seria prioridade nacional assim que fosse eleito. Hoje é deputado, e do hospital do Oeste nem uma palavra.

Tudo mentira. Assim nasceu o Clube dos Mentirosos — uma confraria de fariseus unidos pela vocação de mentir com convicção e pela arte de jurar o contrário do que disseram ontem.

O André já não quer saber dos ciganos, nem dos refugiados, nem das mulheres que morrem nas urgências. Nem das facadas diárias nos bairros, nem do polícia que está a ser julgado por pressão daquela maltinha do socialismo europeu. Agora o André quer ser presidente do sistema. Já não quer varrer Portugal.

O povo continua fiel ao ritual. O país funciona assim há séculos, e o povo gosta assim.

Monte Negro, o outrora justiceiro da oposição, é agora um funcionário da normalidade. A cada novo escândalo, surge um inquérito; a cada nova morte, uma comissão. O sistema político português é uma paróquia de fariseus. Fingem-se piedosos, distribuem bênçãos, beijam nas feiras e chamam a isso proximidade.

O Conluio dos Fariseus não é teoria — é o retrato do poder em Portugal. Um país que vive em estado de penitência permanente, guiado por apóstolos de plástico. De cada vez que um cai, outro se levanta, com igual cinismo e o mesmo sorriso.

E no fim, como sempre, o silêncio volta. Ninguém responde, ninguém renuncia, ninguém tem culpa. As mães estrangeiras continuam a vir cá parir, continua a morrer gente sem atendimento capaz, os hospitais continuam por construir, as facadas multiplicam-se, a CNN mantém a sua porca transmissão, a SIC está falida, o Benfica, o Sporting, o Porto e os outros clubes de futebol estão falidos mas felizes. Fiz as contas: cada sócio de qualquer um desses chamados grandes deve, em média, dois mil euros, e ninguém se chateia.

E assim seguimos, com Monte Negro no púlpito, André a vigiar o rebanho e Marcelo a benzer a procissão.

O Conluio dos Fariseus está completo. E nós, pobres crentes, continuamos a pôr o voto na urna como quem deposita esmola numa igreja em ruínas, convencidos de que, desta vez, talvez o milagre aconteça.


Adérito Barbosa, in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Aqui com os meus botões





Lembro-me de Mahmoud Amin Ya’qub al-Muhtadi. O artista foi à festa de 7 de Outubro matar civis em nome do Hamas. Depois do serviço, fugiu da Faixa de Gaza como se tivesse asas. Atravessou o Atlântico e apareceu na América. Lá fez-se de vítima, limpou o currículo, varreu o passado, ensaiou o papel de coitadinho e conseguiu viver como um senhor na Louisiana — até a Mossad lhe bater à porta.

Olho para isto e penso: quantos Mahmouds deste calibre já se instalaram em Portugal? Quantos circulam por aí, de sorriso aberto, com cartão de residência no bolso e subsídio garantido? Portugal não perguntou nada, não confirmou nada, não investigou nada. Foi um fartote.

Ouvi também que o pessoal do antigo SEF, engolido pela PSP, anda irritado porque terminou o prazo de afectação e o Governo, depois de prometer integração na PJ, afinal já veio dizer que não. Cá para mim, o Governo enganou-os à grande.

Noutro canto do país ficámos a saber que, na quinta do poder judiciário, o juiz Ivo Rosa foi investigado quatro vezes pela porta do cavalo pelos magistrados do Ministério Público, tudo porque desmontou a tese da Operação Marquês. Chafurdaram na vida do homem até dizer chega. Se fizeram isto a um juiz, imagine-se o que não farão ao comum português.

Diz-se à boca cheia que o famoso Luís Rosa-dos-dossiers, velho operacional das sombras no Ministério Público, foi quem puxou a espoleta da denúncia, a mando de quem lhe sopra ao ouvido. Mesmo que não tenha sido ele, o país ficou desconfiado: desde que o juiz pobre saiu do TICÃO, anda tudo amuado. É isto que me tira do sério: um país fascinado com novelas.

Entretanto, temos um surto crescente de filhos que espancam os pais, esfaqueiam familiares e até matam a mãe porque a mãe exige que estudem. Fruto da modernice pedagógica baptizada de parentalidade positiva. Traduzida para português claro: a canalhada faz o que quer desde pequena e ninguém pode contrariar, que é crime. Assim crescem pequenos ditadores. Agora aí têm o resultado das modernices.

Para cúmulo, até chamar os bois pelos nomes se tornou proibido. Inventaram um festival de eufemismos. Já não há pobres: há pessoas sem meios. Já não há criminosos: há pessoas em reintegração. Já não há violentos: há cidadãos com histórico de impulsividade. Já não há fronteiras: há portas de visita. Tudo embrulhado em palavras mansas, para que ninguém se ofenda. Horror à verdade, pavor do conflito, paixão pela ilusão.

Se o Mahmoud tivesse escolhido Lisboa em vez da Louisiana, a esta hora já teria T2 camarário e talvez fosse mascote oficial da bondade — até ao dia em que voltasse ao seu desporto preferido. O país passou anos como condomínio de porta aberta, porque alguém perdeu a chave. Agora acordam com o prédio vandalizado e fingem surpresa. 

Eu já não tenho energia para fingir surpresa com nada.

Ninguém aprende. A comunicação social vende ilusões de manhã à noite. Discutem as mudanças no Benfica, falam do Benfica, sonham com o Benfica — e no fim nada muda. Mas os sócios ficam felizes porque há recorde. O país real, esse, ficou à porta das TVs. 

Adérito Barbosa In olhosemlente.blogspot.com

terça-feira, 21 de outubro de 2025

O silêncio dos cúmplices



Há um momento específico em que a humanidade revela o que verdadeiramente é: não quando grita, mas quando se cala. E o silêncio em torno do que o Hamas faz ao seu próprio povo é hoje a sinfonia moral do mundo civilizado. Uma melodia suave, conveniente, tocada em surdina para não incomodar jantares, cimeiras e palestras sobre direitos humanos.

O Hamas lincha, executa e humilha palestinianos. Quem se atreve a discordar, desaparece. É rápido, limpo, eficiente. Na Faixa de Gaza, as valas comuns não precisam de discurso. E enquanto isso acontece, o planeta escolhe olhar para o lado porque a verdade dá mau enquadramento nas selfies militantes. O activismo internacional, tão barulhento quando a causa promete aplausos, engoliu a língua. Influencers regressaram ao conforto do edredão, politólogos de campus voltaram ao TikTok, e os indignados profissionais trocaram Gaza por brunch. Afinal, já não rende.

Na Europa, os governos dormem — ou fingem dormir, que vai dar ao mesmo. A ONU, com a sua maquinaria de relatórios e lágrimas burocráticas, ensaia consternações, convoca reuniões, e regressa sempre à mesma conclusão milenar: nada fazer é a solução mais diplomática. Guterres suspira, o ANC discursa, e Bruxelas medita sobre a paz enquanto passa a mão pelo queixo, calculando o próximo acordo energético. A moralidade é um Excel: filtra-se, ordena-se, e deleta-se quando não convém.

Macron, coitado, anda tão atarefado com a pose de estadista que até se esqueceu de olhar para o Louvre. E não me admiraria que um militante do Hamas tivesse levado as jóias — a Europa tornou-se o tipo de casa onde o ladrão entra, bebe um copo, leva a prataria e ainda deixa bilhete a agradecer.

No terreno, o espectáculo continua. Execuções públicas de rivais, diante de civis. Armazéns cheios até ao tecto com alimentos da ajuda humanitária, enquanto as ruas passam fome. O povo aplaude, resignado ou fanatizado — pouco importa, o efeito é o mesmo. Setenta anos a viver de promessas falsas, propaganda escolar e ódio subsidiado criaram uma população refém e cúmplice. A miséria tornou-se doutrina. O martírio, aspirina. A morte, ocupação.

E o Ocidente, esse animal moralmente obeso, finge que não vê. A esquerda europeia, tão rápida no punho cerrado e na lágrima estetizada, mudou de canal. Já não há poesia nem utilidade em condenar terroristas quando o inimigo não é o habitual. A indignação tornou-se um detergente: só é aplicada quando dá brilho na superfície certa. O resto é nódoa invisível.

Há um triângulo perfeito nesta tragédia:

terror interno, silêncio externo, manipulação diplomática.

Funciona como relógio suíço. O Hamas mata. Os activistas calam. A ONU lamenta. A Europa relativiza. E no fim, todos dormem descansados, embalados pelo mantra colectivo: - o culpado é sempre o mesmo. A moralidade, essa, ficou soterrada debaixo dos escombros que já ninguém fotografa.

O povo palestiniano é o cadáver político mais instrumentalizado do século XXI. Mantém-se vivo o suficiente para chorar e morto o suficiente para dar jeito. E o mundo, esse colosso de valores recicláveis, continua a dizer-se defensor da justiça enquanto observa o massacre em silêncio, desde que o massacre não estrague a agenda.

No fundo, ninguém quer paz. Querem narrativa. A paz não dá palco. A paz não elege. A paz não radicaliza. A paz não rende.

E por isso o silêncio continua. Porque é útil. Porque é confortável. Porque é cobarde.

E porque, no fundo, o mundo escolheu o lado que mais lhe convém: o lado onde não é preciso fazer nada.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

domingo, 19 de outubro de 2025

Se aconteceu, foi na Ericeira. Onde poderia ser?

 



À semelhança dos anos anteriores, ontem a romaria dirigiu-se novamente ao restaurante Estrela do Mar. Falo do encontro anual dos pára-quedistas da Ericeira, que continua a crescer de forma notável. A cada edição, chegam novos participantes e o convívio alarga-se para além das fronteiras das freguesias vizinhas, levado pelo simples passa-palavra. Este ano tivemos ainda a alegria de reencontrar o Olegário e o Gurka, cuja presença acrescentou mais brilho e entusiasmo ao momento.

O cardápio do jantar esteve à altura da tradição e do apetite da tropa. A refeição iniciou-se com uma sopa rica do mar, seguida de um saboroso arroz de marisco e de vitela estufada com legumes e batatas. As sobremesas, variadas e bem apresentadas, fizeram as delícias de todos, rematadas com um café reconfortante. Tudo isto acompanhado pelos vinhos tinto e branco Pinta Negra, que contribuíram para animar a noite e soltar algumas das melhores histórias.

O Sergio Silva e o incansável João Bernardo merecem destaque e da minha parte agradecimento sincero pela forma exemplar como organizaram o encontro. Estava tudo no sítio, sem falhas, permitindo que cada um se limitasse a desfrutar da companhia, da boa disposição e da memória partilhada.

É emocionante juntar pára-quedistas de várias gerações, todos unidos pelo mesmo espírito e por uma camaradagem que o tempo não apaga. Há laços que se reforçam justamente nestes reencontros simples, onde um abraço tem mais peso do que qualquer medalha. Foi especialmente bonito rever o Olegário e o Gurka, como bem testemunha a fotografia que ficará para memória. Que venham mais encontros e que o próximo leve ainda mais amigos, mais histórias e que não falte as SECAS do costume.

Adérito Barbosa, olhosemlente. blogspot.com

terça-feira, 14 de outubro de 2025

neutralidade é apenas cobardia com nome novo.



Passei metade da vida a ouvir o coro desafinado do politicamente correcto, essa espécie de missa laica onde se reza pela cartilha do “não se pode dizer - não é bem assim - és radical - a guerra é uma construção - eu sou da paz e do amor universal”. E no meio dessa liturgia melosa a Europa foi-se esvaziando de coragem, perdeu o pulso, esqueceu-se do que é agir, deixou-se embalar na cantilena da moral de bolso e acabou esticado ao comprido diante das tragédias que agora finge lamentar. Gaza, Ucrânia, mas do Sudão zero, nem uma palavra. (Lá está, os gajos do Sudão são pretos, isso não interessa a ninguém). O mesmo enredo de sempre: discursos, cimeiras, resoluções que ninguém cumpre, comunicados de imprensa cheios de lágrimas virtuais e zero consequências reais. O politicamente correcto é a religião do conforto moral, e a Europa ajoelha-se todos os dias diante do altar do consenso, a pedir perdão por existir, enquanto o mundo lá fora arde.

Não foi por acaso que nada fizeram. A esquerda europeia, herdeira de uma culpa que já nem lhe pertence, vive obcecada com o reflexo da própria virtude. Encheram-se de palavras bonitas e esvaziaram-se de ideias firmes. Pregam a tolerância, mas não suportam a dissidência; defendem a liberdade, mas apenas a liberdade que se encaixa no seu vocabulário aprovado; e quando alguém ousa pensar fora da cartilha, é logo taxado de extremista, reacionário, populista ou outro insulto reciclado da moda. Tornaram-se burocratas da moral, gestores do pensamento, editores da linguagem. A guerra tornou-se-lhes incómoda, não porque os incomode a morte, mas porque lhes estraga o discurso de salão. Falar de sangue exige coragem, e a coragem é coisa que não se ensina nas conferências de Bruxelas.

Eu, que vivi o suficiente para ver as voltas que o mundo dá e as cambalhotas que a retórica dá com ele, olho para isto e rio-me. Passei 66 anos a ouvir gente a justificar a própria covardia com palavras bonitas. Vi políticos e académicos a enfeitar o vazio com adjetivos importados. Enquanto isso, os tais homens de má vontade, os que ainda chamam as coisas pelo nome, vão sendo empurrados para a margem, porque é mais cómodo viver num mundo onde o mal não tem nome e o inimigo é sempre relativo. Dizem-me que o meu discurso é duro, que o meu estilo choca, que uso expressões que baixam o nível da mensagem. Eu rio-me. O objectivo nunca foi agradar aos ouvidos delicados da plateia europeia, o meu objectivo é acordar os sonâmbulos. O palavrão que uso não é ofensa, é uma ferramenta. Serve para sacudir o torpor, para lembrar que há um mundo lá fora onde as palavras não salvam ninguém.

Esta semana sentei-me com dois irmãos meus, homens bons, inteligentes, decentes — e politicamente correctos até ao tutano. Discutimos Gaza, Israel, o sofrimento dos inocentes, o direito à defesa, a tragédia dos civis e a culpa que muda de lado conforme a estação. Um jarro cheio de lágrimas pelos palestinianos, outro com o argumento simples e cru de que quem começa uma guerra tem de saber que pode perdê-la. E enquanto falávamos, percebi que eles já não me ouviam: ouviam o eco das rádios, dos jornais, das televisões, das vozes alinhadas na mesma frequência da moral europeia. Acharam que eu era bruto por dizer que o Hamas atacou primeiro, que se esconde entre civis, que a guerra não é um poema. E quando lhes tentei explicar que a minha escrita é assim porque o mundo é assim, responderam-me com aquele sorriso piedoso de quem se acha no lado certo da história.

Foi então que percebi que o politicamente correcto não é apenas uma linguagem — é uma couraça mental. É o escudo com que se protege a boa consciência europeia para não ter de olhar o horror nos olhos. É a máscara que se põe para parecer civilizado enquanto se fecha os olhos à brutalidade que cresce à porta. E é por isso que a Europa já não tem pulsação. Perdeu a chama da ação, o instinto da defesa, o sentido da urgência. A Ucrânia foi engolida pelo relativismo diplomático, Gaza pela culpa colonial reciclada, e no fim ficam os comunicados, as velas acesas e os apelos à paz — sempre os apelos à paz — feitos por quem nunca sujou as mãos por nada.

Os meus irmãos, a quem quero bem e respeito, vivem em paz porque houve sempre alguém disposto a lutar para que pudessem viver assim. Gente bruta, talvez, mas necessária. É fácil ser pacifista quando outros fazem a guerra por ti. É fácil ser moralista quando o sangue é dos outros. E é por isso que não entro no peditório do politicamente correcto: não me apetece fingir que viver é um exercício de boas maneiras. A verdade é que o mundo não cabe nas palavras suaves com que a Europa tenta embalá-lo. A verdade é que há momentos em que o silêncio é cumplicidade, e a neutralidade é apenas cobardia com nome novo.

Os homens do politicamente correcto continuarão a declamar a paz nos cafés enquanto as bombas caem noutros fusos horários. Eu continuarei a escrever como falo, a dizer o que penso, a irritar quem prefere o verniz à verdade. Não por raiva, mas por amor — amor à lucidez, amor à palavra livre, amor aos meus irmãos, mesmo quando discordamos até à exaustão. Porque no fim de contas, a diferença entre nós é só uma: eles acreditam que o mundo muda com boas intenções; eu sei que o mundo só muda quando alguém tem coragem de dizer e fazer aquilo que não é bonito, mas real 


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

É o medo do que não se entende



A maioria dos portugueses padece de uma ignorância quase absoluta no que toca a questões jurídicas. O país foi cuidadosamente moldado para que assim fosse. O juridiquês português é uma língua morta, feita por vivos, mas mortos de pudor. É o idioma perfeito para a opacidade, para o distanciamento entre quem faz as leis e quem sofre as leis. 

O juridiquês português foi estudado pelos doutos do direito que, tendo passado fugazmente pela Assembleia da República, ali deixaram a sua marca — leis feitas à medida de si próprios e, sobretudo, dos seus pares. 

O Ministério Público apropriou-se e deu-lhe uma roupagem à sua moda e tornou-se, nas últimas décadas, o verdadeiro poder efectivo da República. Não responde perante ninguém, não é eleito, não é fiscalizado, e, no entanto, governa o medo dos portugueses com mão de ferro. Quando decidem tramar um cidadão qualquer, tramam. Quando decidem interferir na política, interferem. Se for necessário derrubar um governo, fazem-no com a naturalidade de quem muda de toga. O povo, esse, assiste feliz porque tudo é ladrão, tudo é criminoso em portugal— e eu também fiquei estupefacto com a história macabra que fizeram a um juiz.

O problema é que a santidade do Ministério Público é uma invenção piedosa. Por trás do verniz da legalidade e do discurso da justiça, esconde-se uma estrutura corporativa, viciada, onde reina a impunidade. Quando um juiz se atreve a contrariar o curso de um processo, não falta quem o queira castigar. Investigam-no, escutam-no, seguem-no. Metem o nariz na vida privada dele e da família, como se a privacidade fosse um luxo proibido a quem ousa pensar de modo diferente.

E depois há a questão central: quem são estes magistrados? Quem os escolhe, quem os fiscaliza, a quem respondem? A resposta é simples: ninguém. São uma casta fechada, protegida por uma teia de influências, e blindada por um sindicato que se comporta mais como braço armado do poder judicial do que como associação laboral. O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, longe de defender condições de trabalho, dedica-se a justificar o injustificável, a branquear o abuso, a proteger os seus mesmo quando os seus se desviam da legalidade que juraram defender.

Os portugueses têm medo do Ministério Público. É um medo atávico, aprendido por gerações que cresceram a desconfiar do Estado, mas também a submeter-se a ele. É o medo do que não se entende — e o juridiquês serve exactamente esse propósito: tornar o cidadão pequeno, confuso, submisso. O português comum não sabe o que é um despacho, uma acusação, uma nulidade processual. Não sabe, e o sistema prefere que continue sem saber.

O paralelismo é inevitável: em todos os sectores onde impera o poder sem escrutínio, repete-se a mesma cultura de impunidade e de auto-protecção. No Ministério Público, protege-se o abuso de poder; e tudo o resto é silêncio. Vive-se da falta de escrutínio, sobrevive-se graças à ignorância e ao medo da população. E há aliados poderosos na comunicação social — no caso do MP, os cronistas de toga, jornalistas de ofício, sempre prontos a repetir o que lhes é soprado.

Entre eles destaca-se o inevitável escriba de serviço, o jornaleiro do costume, sempre na primeira fila a defender os seus heróis de toga. É ele quem molda a opinião pública, quem transforma suspeitas em certezas, e acusações em sentenças. Não há presunção de inocência quando o Ministério Público decide que é altura de fazer um exemplo. O julgamento faz-se no telejornal, a execução pública no prime-time. E se depois o tribunal absolver, já é tarde: o cidadão foi triturado, o nome arrastado, a vida destruída.

Portugal tornou-se um país onde o poder judicial é mais temido que o poder político. E isso, num Estado de Direito, é a confissão de um fracasso colectivo. O Ministério Público não devia ser o mandão de Portugal — devia ser o seu servidor. Devia zelar pelo cumprimento da lei, não manipular a lei para cumprir agendas. Devia agir com transparência, não com obscuridade. Devia responder pelos seus actos, e não esconder-se atrás da toga.

Enquanto isso, o cidadão comum continua desarmado. Enfrenta o mesmo muro: a máquina impessoal do Estado, surda ao sofrimento e cega à justiça. O país definha, não por falta de leis, mas por excesso delas. Não por ausência de instituições, mas por excesso de instituições que se protegem mutuamente.

Há décadas que se diz que Portugal precisa de uma reforma da justiça. Mas o que o país precisa, na verdade, é de uma reforma da decência. Precisa de responsabilizar quem abusa do poder, seja ele político ou magistrado. Precisa de devolver ao cidadão o direito de compreender as leis que o governam e o direito de ser tratado como ser humano, não como número de processo.

Enquanto isso não acontecer, continuaremos a ser governados pelo medo e pela indiferença. E o Ministério Público continuará a ser o espelho perfeito do país: arrogante, impune e doente.

Perante isto a reforma da justiça espera sentada.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

domingo, 5 de outubro de 2025

Zaher Birawi

Zaher Birawi, especialista em flotilhas, ideólogo do socialismo europeu e guia espiritual de lésbicas e gays

Zaher, nasceu 1961 na Cisjordânia, é um professor jornalista activista palestiniano radicado na Inglaterra desde a década 90. Foi professor na Universidade Islâmica de Gaza em 1996.

Este camarada está há muito identificado como agente do Hamas na Europa desde pelo menos 2013 e contra ele há repetidas acusações de ligações a grupos extremista.

Ele é presidente do - International Committee for Breaking the Siege of Gaza quem organizou e pagou as despesas da flotilha do amor gay da Mariana. O tipo ja tinha organizado a flotilha Mavi Marmara em 2010, Lifeline do Viva Palestina (incluindo um em 2010 que entrou em Gaza e foi recebido por líderes do Hamas. Organizou e pagou também a Marcha Global para Jerusalém de 2012. Como jornalista apresentou programas na Al-Hiwar TV, um canal de língua árabe em Londres afiliado à Irmandade Muçulmana que promove narrativas do Hamas e colabora com a Al-Aqsa TV. 

Nos últimos anos, Birawi foi membro fundador e coordenador da Freedom Flotilla Coalition, organizando várias tentativas para alcançar Gaza incluindo este ano a flotilha intercetada pelas forças israelitas que incluía activistas como Greta Thunberg uma quantidade de lésbicas do mundo ocidental.

Birawi ocupou cargos de liderança em diversas organizações sediadas no Reino Unido, como dirigente sénior na Muslim Association of Britain (MAB), administrador da Educational Aid for Palestine (EAP) e director do Palestinian Return Center (PRC). 

As afiliações de Birawi com o Hamas e a Irmandade Muçulmana estão bem documentadas por fontes israelitas, e britânicas, embora mantenha uma negação plausível para evitar repercussões legais na Grã-Bretanha. O EAP está ligado à Union of Good, uma organização guarda-chuva acusada de canalizar fundos para o Hamas. O MAB, que Birawi ajuda a liderar, é presidido por Muhammad Sawalha, antigo comandante militar do Hamas.

Em 2023, no parlamento do Reino Unido rotularam-no como - agente sénior do Hamas.

O que mais gostei foi ver o pessoal da flotilha a dormir na Ketziot no deserto de Neguev.

Adorei!


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

A flotilha do amor gay


Mariana, ouve bem: o centro do universo não é o lesbicismo. A pose de embarcar numa flotilha e proclamar altruísmo, encenar martírio nas redes e transformar causas em autobiografia encaixa num padrão gasto, feito de vaidade exibida e de bandeiras usadas como espelho. A flotilha de Mariana — e não só a dela — é reflexo desse padrão: exibição pública, fotografia performativa, vaidade travestida de militância. O contexto, porém, é de uma gravidade que nenhuma pose redentora apaga: o ataque de 7 de Outubro de 2023 deixou marcas na sociedade israelita que não se dissolvem com slogans ou selfies cívicas. Nesse dia, uma série de ataques perpetrados pelo Hamas contra civis israelitas precipitou uma guerra de enormes proporções. Não foi um episódio isolado nem um fait-divers tablóide: foi um ponto de inflexão cujas consequências continuam a definir a política, o quotidiano e a dor do Estado de Israel.

O Hamas de Mortágua organizou um ataque massivo contra civis, matou cerca de mil jovens que estavam num festival, matou velhos, mulheres e crianças, recorreu ao sequestro, violou regras básicas de protecção de inocentes e mostrou desprezo absoluto pela vida humana. Há vítimas, e os crimes cometidos não podem ser traduzidos em metáforas estéreis ou apagados por retórica militante. A narrativa romântica da resistência colide de frente com a realidade das famílias que perderam tudo.

Enquanto isso, Portugal, país que gosta de se orgulhar das suas tradições liberais e de uma Constituição que exalta os direitos humanos, reage com gestos diplomáticos que parecem, demasiadas vezes, performativos. Quando o Governo português toma posição pró-Hamas, está tudo dito. O reconhecimento recente do Estado palestiniano pelo gay mor foi apresentado como passo em favor da solução dos dois Estados. É exactamente como acontece no relacionamento gay: dois homens, um faz de mulher e o outro de homem. É assim, Rangel?

A ONU, lenta como sempre e agora mais do que nunca, e sobretudo incapaz, continua a arrastar-se sem conseguir mitigar o choque entre soberanias, direitos humanos e criminosos.

Há ainda a hipocrisia selectiva onde se situam Rangel e Mariana. Ambos gays. É cómodo tratar a Palestina como santuário e o Hamas como avatar do bem, ignorando décadas de violência e crimes, quer contra os seus, quer contra Israel.

Quanto a Portugal, não peço purismo moral — peço coerência. Reconhecer a Faixa de Gaza como Estado é estupidez encomendada pela África do Sul, olha quem…, A isso chama-se diplomacia de vitrina. Não é legítimo apoiar a solução de dois Estados nestes moldes. É questionável fazê-lo sem enfrentar os crimes do Hamas.

Usar a memória de 7 de Outubro para justificar passeios de barco pelo Mediterrâneo é pura pornografia da política portuguesa.

Para fechar, uma nota de realismo cru: fica a ironia final — o Hamas é filho do socialismo europeu admirado pelos gays de Portugal.

Mariana, em Lisboa pediste que a PSP te encostasse à parede e aí em Israel agora pedes o quê?


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A lucidez do Primeiro Ministro Ulisses

 


Finalmente, um sopro de lucidez atravessou as nuvens pesadas da retórica nacional. O governo de Cabo Verde, talvez num raro momento de clareza mental, decidiu retirar do currículo escolar o manual de crioulo. Sim, o mesmo manual que durante anos foi vendido como símbolo de identidade e resgate cultural, mas que, na prática, mais parecia um brinquedo pedagógico destinado a entreter políticos nostálgicos e intelectuais em crise de originalidade.

Eis que Ulisses Correia e Silva, homem habitualmente prudente, desta vez teve a ousadia de enfrentar a gritaria dos eternos guardiões da alma cabo-verdiana. Fê-lo com uma simplicidade quase desarmante: invocou o descontentamento das elites intelectuais, tanto as que se passeiam pelos corredores da Praia e do Mindelo, quanto as que, do conforto das suas diásporas, escrevem manifestos inflamados sobre a importância do crioulo. Elites estas que, ironicamente, raramente escrevem em crioulo os seus textos académicos, os relatórios de cooperação internacional ou os artigos de opinião — todos, invariavelmente, em português ou em inglês, a língua dos adultos.

Convém dizê-lo com clareza: o crioulo não é língua. É um dialeto mestiço, uma invenção oral nascida da necessidade, útil para a comunicação quotidiana, mas incapaz de suportar a sofisticação de uma gramática sólida, de um corpo literário estruturado ou de uma produção científica minimamente respeitável. Que ninguém se ofenda: não é uma questão de desprezo, mas de realismo. O crioulo nunca atravessou a linha que separa a fala caseira da língua institucional. Não possui um padrão unificado — cada ilha cultiva o seu sotaque e a sua variação como quem guarda o último segredo de família. Como poderia, então, ser transformado em instrumento de ensino? Como ensinar matemática, física ou biologia num idioma que não possui sequer consenso ortográfico entre linguistas?

Mas há ainda um outro ingrediente neste caldo provinciano: a vaidade dos analfabetos. Muitos dos mais ruidosos defensores da língua cabo-verdiana são precisamente aqueles que nunca conseguiram dominar o português escrito e que veem na oficialização do crioulo uma espécie de vingança simbólica contra a gramática, a ortografia e a disciplina do estudo. Para eles, escrever em crioulo seria a consagração da sua própria ignorância: finalmente o erro deixaria de ser erro e o improviso oral passaria a chamar-se literatura. É a vingança doce do analfabeto: não aprender a língua oficial, mas transformar a sua limitação pessoal em bandeira política. Uma pirueta genial — e desastrosa.

Os defensores da oficialização do crioulo comportam-se como missionários de uma religião exótica: carregam consigo uma fé inabalável na sua causa, mesmo que os factos a contradigam dia após dia. Invocam slogans sobre identidade, raízes e autenticidade, como se a elevação do crioulo ao estatuto de língua nacional fosse resolver a crise educativa ou, milagre dos milagres, melhorar a compreensão leitora das nossas crianças. É uma fantasia provinciana, um complexo de inferioridade disfarçado de orgulho cultural. O que está em jogo não é pedagogia, é vaidade. É a tentativa desesperada de certos cabo-verdianos de trazer por casa uma bandeira linguística que os faça sentir diferentes, especiais, originais — como se isso fosse suficiente para escapar ao destino de pequenos arquipélagos periféricos.

O crioulo pode — e deve — viver na oralidade, na música, na poesia popular, no convívio das famílias. É uma fala com ritmo, com sabor, com musicalidade. Mas querer transformá-la em veículo de ensino é uma violência contra o próprio futuro das crianças. O mundo não nos espera. A ciência não se traduz para crioulo. A economia não se discute em crioulo. A diplomacia não se assina em crioulo. Nem sequer os grandes intelectuais da causa escrevem os seus artigos académicos nessa língua que tanto defendem. Porquê? Porque sabem, no íntimo, que não passa de uma bandeira simbólica.

É preciso coragem política para admitir isto. Coragem para suportar o insulto previsível dos arautos da autenticidade, que acusam de traidor qualquer um que ouse questionar o dogma da oficialização. Coragem para não se deixar intimidar pela retórica inflamável dos que confundem identidade com atraso. Ulisses Correia e Silva demonstrou, ao menos por uma vez, essa coragem: resistiu ao coro provinciano e tomou uma decisão sensata.

Alguns dirão que é conservadorismo, outros que é rendição ao colonialismo linguístico. Eu prefiro chamar-lhe progressismo lúcido. Sim, porque há momentos em que o verdadeiro progresso não está em inventar bandeiras, mas em libertar-nos delas. Progresso é compreender que uma criança que domina bem o português tem acesso direto a bibliotecas, universidades, ciência, mercado de trabalho. Que um jovem que aprende inglês abre portas no mundo inteiro. Que um profissional que escreve corretamente em português não precisa de tradutores para ser entendido em Angola, em Portugal, no Brasil, em Moçambique.

Progresso, meus caros, não é insistir numa fantasia linguística que apenas serve para encher discursos de conferências culturais. Progresso é preparar a nova geração para o mundo real, e não para a sala de estar de uma tertúlia identitária.

Hoje, por uma vez, celebro o governo. Celebro o primeiro-ministro que ousou dizer não ao capricho provinciano. Celebro a lucidez rara de um país que, por um breve instante, deixou de lado a ilusão de que a fala de casa podia ser promovida a língua universal.

Se amanhã voltarmos à confusão habitual, não me surpreenderei. Mas hoje, pelo menos hoje, foi um dia de lucidez.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sábado, 20 de setembro de 2025

Estufa Fria

Portugal decidiu reconhecer o chamado Estado da Palestina. A decisão é celebrada por uns como acto de coragem diplomática e por outros como dever moral. Mas a verdade nua e crua, despida de propaganda e sentimentalismo barato, Portugal escolheu legitimar o caos. Reconhecer como Estado aquilo que não passa de um território dominado por facções terroristas, sem eleições livres, sem instituições credíveis e sem qualquer condição mínima para ser considerado soberano é uma cagada em três actos. Mais uma vez é necessário expor as contradições, manipulações e hipocrisias que sustentam esta farsa, confrontando a narrativa oficial com dados concretos, números irrefutáveis e uma análise fria da realidade.

A primeira pergunta é inevitável: qual Estado? A Palestina não possui fronteiras definidas, não tem moeda própria, não controla espaço aéreo, marítimo ou terrestre. O que existe são dois enclaves — Gaza e Cisjordânia — governados por rivais que se odeiam entre si e nos intervalos atiram roquetes para Israel e raptam civis idosos e crianças. Na Cisjordânia, a Autoridade Palestiniana governa sem legitimidade democrática: não há eleições desde 2006. Mahmoud Abbas, no poder há quase vinte anos e já perto dos noventa, transformou-se num ditador sustentado por um aparelho de segurança e pelos milhões desviados da ajuda internacional. Em Gaza manda o Hamas, organização reconhecida como terrorista pela União Europeia e pelos Estados Unidos, cujo estatuto fundador proclama abertamente a destruição de Israel.

Reconhecer esta realidade como Estado é o mesmo que legitimar uma coligação entre máfia, cartéis da droga e jihadistas. Portugal premeia a corrupção, a violência e os raptos. O mínimo teria sido exigir a  de reféns, o desarmamento do Hamas e o reconhecimento do Estado de Israel pelos palestinianos. Até hoje nenhuma dessas condições foi satisfeita. Ainda assim, Lisboa segue a cantiga de Madrid e de Pretória. Quanto à África do Sul, basta procurar no YouTube documentários sobre o que os negros fizeram a Joanesburgo para perceber o paralelo. A ONU transformou a questão palestiniana numa indústria. Cinco agências dedicam-se em exclusivo a esta causa, gerindo campos de refugiados que já duram há mais de setenta anos. É um caso único: os palestinianos são a única população do mundo cujos descendentes continuam oficialmente classificados como refugiados, geração após geração.

Resolver o problema não interessa. A miséria é negócio. Os campos são fonte de financiamento contínuo para a ONU e para organizações associadas. Se o problema fosse resolvido, milhares de burocratas perderiam os seus empregos e contratos milionários evaporar-se-iam. Gaza e Ramallah são palcos de miséria encenada para as câmaras da CNN e da Al Jazeera. Uma miséria mantida de pé porque rende horas de antena para papalvos. Agora repete-se até à exaustão a narrativa da fome. Imagens de crianças magras e filas por pão circulam como armas emocionais. Mas os números são claros: só no último ano entraram em Gaza mais de 100 mil camiões carregados de alimentos, cada um com cerca de vinte toneladas. Mais de dois milhões de toneladas de produtos básicos.

Isto equivale a cerca de 600 quilos de alimentos por cada habitante. Em qualquer parte do mundo seria suficiente para eliminar a escassez. Mas em Gaza cerca de 400 quilos desaparecem logo à chegada. Parte vai para o mercado negro, parte enche armazéns do Hamas, parte perde-se na corrupção. A população não passa fome por falta de recursos, mas porque o sofrimento é moeda política. A fome serve à propaganda, não à barriga do povo. Outra mentira é a conversa do genocídio. O tal genocídio que multiplica a população. Israel é acusado diariamente de genocídio em Gaza. Mas basta abrir as estatísticas para desmontar o mito.

Desde 1970 a população de Gaza não parou de crescer: de 400 mil habitantes para mais de 2,2 milhões. Quadruplicou em meio século. Pergunta simples: em que genocídio da história documentada uma população quadruplica? Em nenhum. Em genocídios verdadeiros, as populações são exterminadas. Em Gaza multiplicam-se. Chamar a isto genocídio é uma falsificação e um insulto às vítimas de genocídios autênticos, do Holocausto aos tutsis do Ruanda. Outro ponto que a propaganda ignora: o exército israelita anuncia previamente os ataques, avisa a população para abandonar as zonas de combate, cumpre regras internacionais de guerra e actua fardado e identificado.

O Hamas, pelo contrário, mistura-se com a população, usa escolas, hospitais e mesquitas para armazenar armas e serve-se de civis como escudos humanos. A diferença é total: um cumpre deveres de um Estado, o outro pratica terrorismo. Todas as facções palestinianas armadas — Hamas, Jihad Islâmica, Brigadas Mártires de al-Aqsa, Frente Popular — convergem num único objectivo: a destruição de Israel. Não se trata de negociar fronteiras ou coexistência, mas de eliminar um Estado soberano. Israel, por seu lado, é o único país do Médio Oriente com eleições livres, imprensa independente, minorias representadas no parlamento e tribunais que condenam políticos de topo por corrupção. Ainda assim, é Israel que Portugal condena e é o Hamas que Portugal legitima ao reconhecer a Palestina como Estado.

Portugal tem uma diplomacia igual à da estufa a que os gays praticam na Estufa Fria. Ao reconhecer a Palestina, não escolhe a justiça, escolhe a propaganda, não escolhe a paz, escolhe a farsa, não escolhe o direito internacional, escolhe alinhar com quem lucra com a miséria. Uma vergonha que ficará na História como um capítulo da política externa portuguesa marcada por incoerência, subserviência e provincianismo da Estufa fria. Portugal podia defender a verdade, confrontar as mentiras, afirmar o direito de Israel à existência em paz. Preferiu a via fácil: o aplauso momentâneo da ONU e dos opinadores da Estufa Fria.

Reconhecer a Palestina é reconhecer o inexistente. É premiar a corrupção, legitimar o terrorismo, alimentar a indústria do vitimismo e perpetuar a miséria.

Portugal, ao fazê-lo, escolheu o lado errado da História. E fá-lo-á sem vergonha, sem pudor, sem dignidade. Uma verdadeira vergonha ao ar livre igual ao que se pratica nas noites frias da Estufa.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com


segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Afinal está tudo entulhado

  

Ele garantiu semanas a fio na CNN que os quatrocentos quilos de urânio enriquecido a sessenta por cento, nas instalações subterrâneas do Irão, estavam perfeitamente a salvo, retirados do local de enriquecimento antes do início da chamada guerra dos “doze dias” entre Israel e Irão.

Também assegurou que Israel nunca atacaria o Irão porque o Irão não era Gaza nem o Líbano. Quis mostrar ao mundo que tinha informações credíveis sobre as centrifugadoras iranianas. Contudo, a história gosta de contrariar os brincalhões.

Agostinho não se limitou a lançar uma hipótese; jurou, de pés juntos, que o material nuclear mais sensível do Médio Oriente estava guardado em local seguro. O detalhe não importava, o que interessava era a pose, a certeza e a pompa com que anunciava a sua convicção. O tom era tão categórico que parecia profecia.

Afinal, ontem pelas treze horas soubemos de outra realidade: os bombardeamentos contínuos sobre as instalações nucleares iranianas transformaram tudo em entulho. Mais irónico ainda: o Irão anunciou também um acordo com a Agência Internacional de Energia Atómica para que técnicos tentem verificar, debaixo da montanha, em que condições o urânio realmente se encontra. Ou seja, enquanto Agostinho garantia a salvação total do material, o próprio país envolvido e a agência de vigilância nuclear admitiam não saber se o urânio está intacto, perdido ou contaminado. A narrativa triunfal do general caía por terra mais uma vez.

Como ficamos, então, Agostinho? De duas, uma: ou as tuas fontes seguras não passam de grupos de WhatsApp com conversa mole, ou alguém anda a soprar-te mentiras ao ouvido. Talvez de Moscovo? Talvez de Teerão? Ou será apenas a vaidade de aparecer na CNN a promover Moscovo?

Não sejamos ingénuos. A história da espionagem está cheia de generais, conselheiros e analistas que, um belo dia, se revelaram mais leais ao inimigo do que à bandeira que ostentavam no uniforme. A dúvida é legítima: será Agostinho apenas mais um falador compulsivo, viciado em microfones e holofotes, ou estaremos perante um caso clássico de infiltração, em que a desinformação serve de arma para descredibilizar a própria NATO?

E assim chegamos ao cúmulo: de um lado, um general que anuncia certezas; do outro, a dura realidade de escombros radioativos, acordos de emergência com a Agência de Energia Atómica e declarações oficiais que o desmentem. Pergunta-se, sem rodeios: Agostinho, o que tens a dizer sobre a notícia de ontem? Não basta desfilar nos estúdios da CNN com ar de estratega. A guerra não se ganha na televisão; a guerra ganha-se com informações verdadeiras — e essa, ao que parece, continua enterrada, junto com os quatrocentos quilos de urânio que juraste estarem a salvo.

Adérito Barbosa, in olhosemlente.blogspot.com

terça-feira, 9 de setembro de 2025

A miséria e o luxo I


Desde que a tromba de água desabou sobre S. Vicente venho acompanhando em silêncio, com angústia e também com revolta. Angústia porque o povo daquela ilha precisava de chuva, sim, mas das chuvas serenas, fecundas, que penetram na terra e alimentam os campos, e não dessas enxurradas assassinas que arrastaram casas, sonhos e vidas. Não precisavam que a lama viesse bater-lhes à porta para lembrar, com brutalidade, a miséria que já era o seu pão de cada dia.

E o que se viu? Barracas inteiras engolidas pelo barro, pedaços de vidas desfeitos na corrente. Não foi apenas a lama que invadiu a cidade: foi a vergonha nacional o retrato cru de um país que há quarenta anos, os  políticos fingem governar mas nunca souberam dar dignidade ao seu povo.

A miséria ficou exposta, transformada em espectáculo para os drones dos novos ricos Sobrevoar barracos de zinco, de lata e de tábuas como se filmar a pobreza fosse o último grito da modernidade. Cineastas de ocasião, orgulhosos, partilhando tragédias em directo, exibindo desgraças como troféus digitais. O YouTube encheu-se dessa vaidade miserável de um povo pequeno, sempre explorado, agora convertido em figurante da sua própria desgraça.

O presidente da república, vazio de ideias, passeava-se por Lisboa, entre centros comerciais e estádios, a ver jogos, proclamando que Cabo Verde é Benfica. Enquanto os mortos eram enterrados na lama, o chefe de Estado coleccionava bilhetes de futebol. Não é apenas falta de vergonha: é falta de cérebro.

O Neves, mestre em sugar protagonismo, apressou-se a agarrar para si a glória da doação da Fundação Benfica, como se tivesse sido ele a salvar S. Vicente. Um verdadeiro chico-esperto, desses que fazem da tragédia um palco para o seu teatro pessoal.

E não ficamos por aqui. O presidente da Câmara de S. Vicente, esse outro iluminado, abriu a boca para afirmar com orgulho que sempre se construiu casas nas ribeiras. Foi o retrato perfeito da irresponsabilidade criminosa de um autarca que empurra famílias inteiras para os braços da lama. Outro sem cérebro, tal como o presidente da república.

A Janira também quis a sua fatia de palco. Publicou no Facebook uma mensagem politiqueira, fingindo solidariedade enquanto ajudava, de facto, a consolidar a miséria. Mais uma a juntar-se ao clube dos sem cérebro.

Enquanto isso, a população, em vez de se erguer em revolta, agarrou nos telemóveis e começou a transmitir directos. As vítimas, no meio da lama, mostravam ao mundo os seus barracos desfeitos, pedindo ajuda entre pedidos de atenção. Nada de denúncia séria contra os políticos que os condenaram a viver ali. Nada de exigência de dignidade. Apenas pedidos e mais pedidos, embrulhados em vídeos caseiros, com legendas coloridas.

É chocante: a tragédia virou espectáculo digital. O país inteiro transformado em conteúdo para consumo imediato da miséria. Os drones voaram, os novos ricos exibiram a mais recente tecnologia de filmagem, e o povo — faminto, humilhado, mas com iPhones no bolso — continuou a alimentar o circo.

Cabo Verde é hoje um país rico. Rico em miséria humana. Rico em pobreza de espírito. Rico em governantes medíocres que trocam dignidade por viagens a Lisboa. Um país onde há sempre dinheiro para o último modelo de ténis de marca, mas nunca para um tecto seguro. Um país de aviões penhorados, mas de vaidades intactas.

E no meio desta encenação, a lama continua. Não apenas a lama física que matou e arrasou casas. A lama moral, que escorre todos os dias pela boca dos governantes e pela passividade cúmplice de um povo que se habituou à miséria como se fosse destino.

O que caiu em S. Vicente não foi apenas uma tromba de água. Foi o retrato cru de um país inteiro atolado em lama — e que, mesmo assim, insiste em dançar sobre ela, de telemóvel na mão, orgulhoso de transformar a própria desgraça em espectáculo.

domingo, 7 de setembro de 2025

Rockin’ 1000 Leiria 2025

À hora marcada o cronómetro regressivo foi descontando segundos em direcção ao zero. Quando finalmente estalou o zero, rebentou o Rockin’1000 no estádio. Fui, com a ajuda da minha filha, ver a malta dos mil roqueiros. E olhem que foi coisa bonita de se ver.

O concerto teve o selo do Turismo Centro de Portugal e, ao que parece, também da edilidade de Leiria. Vieram músicos de todo o mundo, cerca de trinta países representados. Europa, América do Sul, África do Sul, Indonésia. O mais velho tinha setenta e quatro anos, português, baixista. Os dois mais novos também portugueses. Curiosamente, os três de Leiria.

Antes da primeira nota, houve o ritual: juramento solene de que ninguém se atreveria a dedilhar cordas ou a martelar teclas nos intervalos. Disciplina, dizia-se. Mas disciplina rockeira, com mais de mil almas prontas a rebentar colunas de som… é obra.

No ano passado, o alinhamento do relvado foi de duzentos e vinte vocalistas, trezentos e cinquenta guitarristas, cento e oitenta baixistas, duzentos bateristas e cinquenta teclistas. Este ano o equilíbrio foi semelhante, só mudou a energia. Do Brasil chegou o maestro Daniel Plantes, e da casa tivemos Daniel José Neto. Ambos meteram ordem na anarquia, chicote em riste mas com um sorriso de quem manda.

O público vibrava ao fim de cada música, e logo de seguida as trezentas e cinquenta guitarras, carregadas de drives, rasgavam o ar sob o olhar do castelo. Bateria a rebentar pratos, baixo a cavar o chão, teclas a costurar atmosferas, vozes a gritar ao céu. E que vozes. A maioria raparigas, a saltar e a cantar como se a vida lhes dependesse desse momento, numa espiral sonora, sempre a subir, até ao infinito, a cortar-nos o fôlego.

Nas bancadas ninguém ficou quieto. Eu próprio, pregado na cadeira, batia o pé e abanava o capacete, contagiado pelas músicas. Todo o estádio cantava, e tudo tremia de tal forma que por momentos temi pelas juntas do meu esqueleto.

E houve convidados. A Marisa Liz apareceu no palanque central, com a canção “Guerra Nuclear”, acompanhada pelos mil. Foi um momento fora da escala. Depois, surpresa maior: o Tim dos Xutos disparou a canção À minha maneira.

Nem tudo foi música. O organizador, armado em profeta de causas, resolveu puxar a ladainha do costume, o discurso mole dos coitadinhos palestinianos, parlapier escrita pelos de sempre. Gaza e Sudão no cartaz da converseta, silêncio absoluto sobre Israel, que há setenta anos engole foguetes, raptos e insultos de ódios da vizinhança. Foi um momento de incoerência vestido de moralismo barato.

No próximo ano lá estarei, quem sabe como músico participante.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blospot.com

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Os Ratos de Calhoun



Quem não conhece a célebre experiência de John B. Calhoun, baptizada de Universo 25? 

O cientista fechou ratos num condomínio de luxo: comida à descrição, água corrente, abrigo seguro, sem predadores nem lutas pela sobrevivência. Criou-lhes um paraíso perfeito.

O paraíso, porém, durou pouco. Rapidamente os ratos descobriram que, sem esforço, a vida perde sentido.

No início, tudo corria bem: ratos bem nutridos, a multiplicarem-se a ritmo acelerado. A população cresceu em flecha e parecia que a experiência iria triunfar. Mas não. Em poucos meses, o condomínio entrou em decadência: menos reprodução, mais agressividade, hierarquias rígidas — uns tornaram-se reis, outros foram relegados à miséria. As mães começaram a abandonar as crias, os machos afundaram-se em apatia, e a comunidade resvalou para canibalismo, violência e comportamentos estranhos. Depois deixou de nascer qualquer cria e a mortalidade chegou a 100%. Restou apenas um silêncio de cemitério.

Calhoun chamou-lhe Universo 25. Eu chamar-lhe-ia a grande experiência da esquerda radical em laboratório.

Um Estado que oferece tudo de mão beijada, elimina a competição natural, proclama que ninguém deve enfrentar dificuldades e que a luta pela sobrevivência é fascismo. O resultado? Gerações inteiras que confundem direitos com esmolas, mérito com privilégio, trabalho com exploração.

Os ratos de Calhoun não tinham culpa: reagiram como ratos, perderam o rumo e devoraram-se. Os políticos da esquerda radical fazem o mesmo — mas conscientemente. Montam um sistema de abundância artificial, pago com o dinheiro dos contribuintes, e vendem a ilusão de que a teta do Estado é inesgotável.

Só que seca. E quando seca, seca de vez.

Tal como no laboratório, os ratos alfa são os barões do partido, prontos a morder os fracos enquanto discursam sobre igualdade.

As fêmeas que abandonam as crias são as ministras e secretárias de Estado que falam em políticas familiares enquanto empurram os filhos dos outros para a creche subsidiada.

Os miseráveis são a massa de dependentes, eternos eleitores fiéis, convencidos de que são protegidos quando, na realidade, apenas prolongam a experiência como cobaias.

No fim, como no Universo 25, não faltará comida. Faltará sentido. O colapso não vem da escassez, mas da saturação: o apodrecimento lento de uma sociedade que já não encontra propósito porque tudo lhe foi dado sem esforço.

E, inevitavelmente, a elite de ratos culpará o neoliberalismo enquanto a colónia se dissolve em silêncio.

A moral da história é simples: as minorias sem luta, sem mérito e sem esforço são um paraíso, são uma ratoeira. E os políticos da esquerda, são os zeladores desse laboratório gigante a que chamamos de subsídio garantido.

O que me assusta é repetir a experiência quando se sabe de antemão qual será o resultado. Mais subsidiados.

E, se dúvidas restassem, basta olhar para o nosso palco político nacional: o Bloco desapareceu no nevoeiro a caminho de Gaza e espero que não volte nunca mais.  O PCP esse definha à espera que um proletariado angustiado ressuscite e o PS arrasta-se como um rato obeso que comeu demasiado queijo. Todos vítimas do seu próprio Universo 25, todos a apodrecer no mesmo condomínio ideológico onde prometeram dar o que não é deles. No fim, sobrou-lhes apenas o silêncio — o silêncio de cemitério que sempre acompanha os ratos quando a teta seca.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Saudades do mar



Ericeira foi o local do mais recente encontro do nosso ciclo periódico de almoços. Estes encontros, que vamos alternando de casa em casa ao longo do ano, não são apenas ocasiões de partilha gastronómica: são sobretudo momentos de reencontro, de celebração da amizade e de continuidade de um acto que já se tornou parte de nós.

Ontem, mais uma vez, ficou claro que não é apenas a mesa que nos une, mas sim a vontade de estar juntos, de conversar, de rir e de saborear a vida em comum. Há quem diga que o sabor dos pratos é importante; eu arrisco acrescentar que o tempero essencial está no convívio, na forma como cada um se dispõe a dar um pouco de si e a receber do outro.

A Ericeira, com a sua paisagem marítima e a sua luz inconfundível, acrescentou um pano de fundo especial. Há qualquer coisa de simbólico em estarmos ali, junto do oceano, a falar e a pensar no mar, mesmo quando o assunto não agrada a todos por igual. A vastidão azul, que se estende até ao horizonte, oferece a uns uma sensação de paz e a outros um convite à reflexão. A mim, confesso, oferece sobretudo a lembrança de episódios menos entusiasmantes. Por azar, tive algumas namoradas depressivas – tinham em comum essa mania de querer ver o mar. Para elas, ver o mar era uma espécie de ritual terapêutico: um bálsamo contra as angústias, uma promessa de serenidade. Para mim, foi sempre um suplício arrastado, quase uma penitência sem redenção. Fiquei, por isso, queimado com o assunto. Nunca associei o mar a uma necessidade vital; nunca tive saudades de ouvir o quebrar das ondas nem me ocorreu que a ausência desse som fosse motivo de nostalgia.

E contudo, ontem, sentado à mesa, dei por mim a ouvir as várias interpretações sobre o fascínio do mar. Houve quem defendesse que escutar o marulhar das ondas é uma terapia silenciosa, capaz de apaziguar os nervos mais tensos. Outros falaram da experiência de mergulhar no mar e sentir a água gelada a atravessar os ossos como um choque libertador. Houve ainda quem preferisse a contemplação imóvel, sentado num banco das arribas, a observar o oceano como quem procura ali uma resposta para as grandes perguntas da vida. Para todos, de modos diferentes, o mar é uma referência emocional, quase espiritual.

Ora, para mim, que nunca tive essa ligação, o debate foi divertido. Senti-me quase um estrangeiro na conversa, um exilado da devoção marítima para não dizer um E.T., tal um recém nascido de olhos esbugalhados e de cabeça bicuda visto de perfil pela mãe. 

Quando disse que nunca senti saudades do mar, logo surgiu a suspeita: devo ter um problema qualquer. Talvez, pensei eu, mas não é coisa que me preocupe. Se o mar consola uns, a mim basta-me a mesa bem composta, o vinho partilhado e as histórias trocadas entre amigos. Cada um que procure a sua terapia; eu encontro a minha nestes encontros de convívio.

Uma palavra especial, naturalmente, para a Augusta. Bem sabemos que momentos como este não acontecem por acaso. São fruto de trabalho, de organização e de uma dedicação que se nota em cada detalhe. Desde a escolha dos pratos até à forma cuidada como tudo estava disposto, percebeu-se o empenho e o carinho. Organizar não é apenas preparar comida: é pensar no ambiente, garantir que todos se sentem confortáveis, prever as conversas e até permitir que o tema do mar se infiltrasse na sobremesa. Fica aqui o meu reconhecimento sincero por todo esse esforço, que mais uma vez fez do almoço uma ocasião memorável.

Não posso deixar de notar, ainda, a ausência das netinhas do Bernardo – as diabinhas, como carinhosamente lhes chamamos. Fizeram-se sentir pela falta do barulho que só a ausência de crianças se consegue notar. É curioso como a vida, tal como o mar, se movimenta em ondas: umas vezes temos o barulho alegre das gargalhadas, outras vezes apenas a lembrança do que ficou por acontecer. Ainda assim, mesmo sem a agitação das pequenas, o almoço teve a leveza própria dos momentos bem passados.

Num mundo cada vez mais apressado, em que os dias se atropelam e as preocupações se acumulam, parar para partilhar uma refeição é quase um acto de resistência.

Por tudo isto, quero deixar uma vez mais o meu obrigado. Obrigado, Augusta, pelo trabalho, pela dedicação e pelo cuidado em cada gesto. Obrigado, Bernardo, pela generosa hospitalidade e pela forma como abriste as portas da tua casa.

Se o mar, com o seu apelo misterioso, não me comove nem me consola, o mesmo não posso dizer da vossa companhia. Essa, sim, é indispensável. É nela que encontro a serenidade que outros buscam no oceano. Talvez, afinal, o meu mar esteja aqui: nesta amizade que resiste, nesta mesa que se quer repetir sempre.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Verde código Verde


 Havia quem os carregava ao ombro como se fosse mala diplomática. Era o princípio da mobilidade, mas no fundo era apenas a mobilidade de andar com meio quilo de plástico e bateria na mão, a rezar por rede no meio de Lisboa.  Estou a falar dos telemóveis e lembrar-me das idas ao banco, dos balcões em madeira escura, dos livros enormes com caligrafia tipo escrita de papiro que mais pareciam bíblias onde cada depósito registado à mão, levava o carimbo molhado em tinteiro, e aqueles bancários de cara fechada atrás da caixa a fazer-nos sentir que estávamos a pedir um favor aos gajos. E aquelas filas intermináveis, as senhas de papel rasgado, e toda a resignação de quem sabia que ia perder a manhã inteira para levantar cinquenta paus.

Quem não se lembra dos autocarros verdes da Carris? O de dois andares, que fazia as delícias da miudagem, como se fosse um miradouro sobre rodas. E o rasteirinho sem portas atrás, onde a malta subia e descia em andamento, num exercício de ginástica urbana que hoje daria direito a processos no Tribunal de Menores. 

Depois chegaram os articulados laranja - os minhocas, era uma modernidade sobre rodas. Lisboa tinha cor, e não era só das paredes descascadas: eram reclamos luminosos, néon a piscar nas Avenidas, e copos de cerveja que se enchiam nas Picoas até deitar espuma por fora.

Quem não se lembra da chegada da internet, no seu estado primitivo, a chiar e a apitar como se estivéssemos a invocar marcianos? Cinquenta e dois k-bits de paciência, um modem histérico e a gloriosa sensação de ver uma página carregar ao fim de 6 minutos — se ninguém se lembrasse de levantar o auscultador do telefone fixo. 

Era futuro a acontecer devagarinho, pixel a pixel. Depois, os cartões magnéticos junto com o gesto estudado de tapar o código com a mão, como se estivéssemos a introduzir os segredos da NATO, enquanto os da fila olhavam para o tecto, para o lado ou para os sapatos, num fingimento colectivo de desinteresse. A privacidade do multibanco era uma encenação nacional, uma coreografia de cotovelos e olhares enviesados.

A coisa acelerou. Vieram os pagamentos por referência, aquela sequência de vinte dígitos intermináveis que transformava cada compra num exercício de datilografia. Vieram as plataformas online, os pagamentos por telefone, os MBWAYs da vida — convém lembrar, desenvolvidos em Portugal, uma das raras vezes em que não fomos apenas utilizadores de segunda mão. O almoço dividido à mesa já não exige contas de cabeça, apenas um manda-me MBWAY.

Hoje os bancos já não são de madeira, nem têm livros de registo. São aplicações no telemóvel. O balcão físico é uma espécie em extinção, como as cabines telefónicas. Restam alguns, como fósseis urbanos, para dar a ilusão de que ainda há humanidade no processo. Mas a humanidade foi substituída por códigos, passwords, tokens e os irritantes assistentes virtuais que respondem com uma alegria irritante às nossas irritantes perguntas. O gerente, outrora figura temida de gravata e bigode, foi trocado por um chatbot com sorriso desenhado em pixels.

E nem quero falar das novas operadoras do negócio virtual: Revolut, N26, Monzo e outras tantas que pouca gente conhece, mas que já capturam milhões de clientes mundo fora. Não têm balcão, não têm horário, não têm agência. O banco já não é edifício: é notificação push. É cartão de plástico minimalista que chega pelo correio, acompanhado de uma promessa de liberdade financeira. O dinheiro deixou de ser carteira e passou a ser aplicação.

A desmaterialização é inevitável. O dinheiro físico vai acabar. Os talões de papel seguirão para museu. Bancos com portas abertas, balcões, cofres, tudo desaparecerá. O futuro é um número no ecrã, um código que confirma ou nega a minha existência financeira, sem bateria, sem rede, sem internet, simplesmente deixo de existir. Não compramos pão, não carregamos o passe, não pedimos café. Tornamo-nos fantasmas de passos perdidos, condenados a olhar para o telemóvel morto como se fosse uma lápide.


E é neste cenário, em que tudo se resume a código, que ecoa o mantra ridículo: - Verde código Verde. Uma expressão que outrora poderia soar a pagamento, hoje é apenas uma expressão caricata. Um eco da modernidade que nos reduziu a cor, a número e a senha. Verde código Verde é o retrato de um mundo onde já não se levanta dinheiro, nem se levanta o código, onde já não se entra no banco, entra-se na aplicação. Onde a vida deixa de ser papel e passa a ser algoritmo.

Verde código Verde: a expressão analógica de um digital que já ninguém se lembra.

E agora que descobriram a vacina para qualquer tipo de cancro, resolveram o problema do HIV e como já descobriram propagação  5 vezes mais rápida da que a luz, eu já estou de malas feitas.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

MAIS CABOS ANSELMOS NÃO, OBRIGADO


Eu não quero ver cabos Anselmos nos quartéis, nem na GNR, nem na PSP, nem na PJ, nem no ex-SEF, nem muito menos em qualquer esquadrão de segurança nocturna que ande por aí a brincar à política. Portugal não precisa de mais patriotas nem de mais nacionalistas, comprados ao quilo na loja da esquina.

Para quem não se recorda – a amnésia histórica é o pão-nosso de cada dia – o tal cabo Anselmo era, na verdade, um simples fuzileiro naval brasileiro. O título de cabo serviu mais para segurar a lenda do que para realçar a patente. Em plena década de 60, concretamente em 1964, Anselmo subiu a um palanque diante de generais e fez um discurso inflamado sobre a pátria, a honra e a necessidade de resistir ao comunismo. Um discurso que parecia ditado ao telefone de Washington. Resultado? Poucos dias depois, o Brasil mergulhava na ditadura militar – um dos regimes mais brutais da América Latina, cozinhado a lume brando sob encomenda da inteligência norte-americana.

Anselmo, o herói de ocasião, viria mais tarde a ser desmascarado como aquilo que sempre fora: um agente da CIA. Um infiltrado, um político de uniforme, pago e instruído para sabotar qualquer hipótese de soberania política no Brasil. A revolução de 64, que os próprios militares baptizaram de contra-revolução, não caiu do céu em forma de tempestade. Foi planeada, ensaiada e executada com consultoria made in USA.

Chamaram-lhe Operação Brother Sam: uma frota naval norte-americana estava pronta a apoiar os generais brasileiros se fosse preciso esmagar resistências. O golpe teve nomes e apelidos – Castelo Branco, Costa e Silva, Médici – todos alinhados com Washington. Instalou-se uma ditadura de vinte e um anos, sustentada por censura, tortura, desaparecimentos e uma retórica de pátria, Deus e família, retratada no filme recente - Ainda Estou Aqui, com Fernanda Torres no papel de viúva de Rubens Paiva.

Tudo igualzinho ao que fizeram Salazar, Mussolini, Franco, Hitler, Saddam, Estaline, Fidel Castro ou Pol Pot.

E é aqui onde eu quero chegar: porque quando olho para o noticiário português e vejo um agente da PSP acusado de ligações a ditadores de trazer por casa, não consigo deixar de ouvir o eco do mesmo guião. Mudam os sotaques, mudam os slogans, mas a cartilha é a mesma: meter medo com o fantasma do inimigo interno, criar a necessidade de ordem, fabricar discursos de salvação nacional, tudo embrulhado em retóricas patrióticas. Perigoso. Assim como é perigoso apagar o fogo com a mão, como vi há dias.

Eu não compro essa mercadoria. Não quero voltar a organizar uma RGA na Escola Industrial Fonseca de Benevides do meu tempo – esta coisada não se ergue do nada. Tem financiamento, tem inspiração ideológica importada, tem o cheiro a pólvora que vem de fora. O caso do agente da PSP não é episódio isolado: é apenas a ponta do icebergue. E nós, como bons portugueses, preferimos olhar para a ponta e fingir que o resto não existe.

O cabo Anselmo brasileiro serviu para abrir as portas à ditadura e para esmagar uma geração inteira em nome da democracia da porrada. Se começarmos a aceitar Anselmos em Portugal – com farda ou sem ela – não esperemos que a história tenha mais piedade connosco do que teve com os brasileiros de 64.

E se o Brasil de ontem já nos dá lição, o Brasil de hoje deveria ser aviso em letras garrafais. Bolsonaro não apareceu sozinho. Foi fabricado no mesmo molde: medo do comunismo, culto da família, religião misturada com armas e militares a ocupar gabinetes ministeriais como se fossem fiscais de feira. Generais a governar como se o voto popular fosse detalhe dispensável. A certa altura, falava-se em golpe quase à descarada – e não faltavam quartéis onde se aplaudia a ideia.

Não se iludam: sempre que os militares se instalam no poder político, não trazem ordem, trazem autoritarismo. Podem vir de verde-azeitona, de uniforme engomado ou de boina, mas o resultado é sempre o mesmo: censura, vigilância, medo, e uma democracia de fachada onde só manda quem carrega mais estrelas no ombro.

Por isso digo sem hesitar: não quero militares nem paramilitares na política, em Portugal ou em lado nenhum. Podem encher a boca com palavras como pátria, Deus e família, mas o que realmente trazem é a erosão da liberdade. Hoje um cabo Anselmo, amanhã um general qualquer, e no fim um povo inteiro reduzido a espectador da sua própria história.

Não quero cabos Anselmos, nem generais soviéticos da NATO a defender interesses russos na televisão. Não quero polícias que se sonham cruzados, não quero militares que se imaginam messias, não quero seguranças nocturnos que se acham justiceiros urbanos. O país precisa de instituições decentes, não de quintais ideológicos ao serviço de quem se serve de analfabetos e de pseudo-militares para se promover na política.

Digo-o com clareza, sem paninhos quentes: não alinho na retórica dos ditadores promovidos pelos americanos. Que cada um fique com os seus cabos Anselmos. Eu fico com a memória da história, essa que insiste em repetir-se para castigar os distraídos de sempre.


Adérito Barbosa, in olhosemlente.blogspot.com

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