Mudei-me da Ericeira para o Bombarral. Forçado, é certo, mas de olho na paz e na tranquilidade, cedi à expressa vontade da minha mulher: - Bombarral vai ser bom e até vai haver um hospital e tudo. O tal Hospital do Oeste, de que tanto se fala. Dizia-me ela que o hospital estava quase, a caminho, já ali no horizonte. Sonhara com a cerimónia de inauguração e da cortagem da fita. Mal sabia eu que a única fita a ser cortada era a da minha paciência. O Hospital do Oeste é como o Pai Natal da saúde pública: toda a gente fala dele, mas nunca ninguém o viu. Afinal, o hospital prometido há décadas continua exactamente como a minha rua: no papel. E mesmo no papel os políticos aparecem de X em X anos com uma maqueta, umas imagens de PowerPoint e aquele olhar brilhante de quem viu a luz… de um flash. É sempre a mesma lengalenga: - Estamos em fase de estudo, está tudo planeado, é uma prioridade do Governo. Sim, prioridade… daquelas que se guardam na gaveta entre a reforma da justiça e a solução para o SNS.
Ora, a minha rua também está em estudo. Estuda-se há mais de um ano um poste de luz à entrada do meu portão. Uma epopeia digna de Homero. Enviei um e-mail à Câmara, cheio de vírgulas bem posicionadas, a pedir duas coisinhas modestas: um ponto de luz e um bocadinho de asfalto. Ou então, se não fosse pedir demais, que tapassem os buracos — só o suficiente para não tropeçar na escuridão ou afundar num deles quando levo o lixo.
E não é que me responderam? Uma raridade quase arqueológica. Responderam, sim senhor. O e-mail dizia: Tomámos nota do seu pedido, o que muito agradecemos, blá blá blá, e encaminhámos o assunto do poste para o Departamento da Iluminação Pública — que, pelo nome, imagino estar sediado numa nave espacial algures em Saturno. Quanto à estrada, a resposta foi ainda mais poética: Sobre a estrada que serve a sua rua, deverá dirigir-se à junta de freguesia, porque temos um protocolo firmado com a Junta para tapar buracos. Traduzido entendi: essa coisa não é connosco! Encaminharam tudo como se estivéssemos a jogar pingue-pongue com responsabilidades — e eu, no meio, sou a bolinha. Mas, segundo o Presidente da Câmara, homem afável e cheio de convicções, o Bombarral é uma coisa de outro mundo: - Câmara responde sempre, está ao serviço do povo. O problema é que, pelos vistos, eu não sou povo. Estou fora dessa definição. Talvez seja subpovo. Ou um figurante não creditado na novela bombarralense.
Ontem fui ao espelho, pus-me em cima da balança, para tentar perceber o que em mim está a falhar. O que vi meteu medo. O peso foi um deles: umas partes do corpo a crescer, outras a encolher — uma tragédia. O encolhimento… Olhei-me bem, de frente, de lado e de perfil. Lembrei-me do NIF, consultei o cartão de cidadão e, rapidamente, pareceu-me que estava tudo em ordem. Mas não. Não sou povo coisa nenhuma. Porque se fosse, a rua já estava com os buracos tapados e o poste aceso, porque se fosse, a Câmara já me tinha respondido com acção — não com e-mails genéricos.
E é aqui que percebo a semelhança assustadora entre o meu processo e o do Hospital do Oeste. Ambos partem da promessa e estacionam no vazio. Ambos envolvem estudos que nunca acabam, prazos que ninguém cumpre, prioridades que ninguém respeita. Ambos são empurrados ano após ano, governo após governo, com uma habilidade que faria inveja ao maior mentiroso do mundo Sr Abrie Krueger. O hospital e a minha rua são irmãos gémeos separados à nascença por falta de orçamento e pela paixão nacional por adiar. O hospital está quase-quase desde 2009. A minha rua também. E ambos têm algo em comum: são o espelho da gestão pública no seu estado mais puro — onde se diz muito e se faz pouco, onde se planeia tudo e se executa nada. O que me assusta não é a espera. É a mentira disfarçada de esperança. É a pose de serviço público que esconde o desleixo privado. É ver que se gastam milhões em estudos, em projectos, em cerimónias, e no fim… nem hospital, nem poste, nem estrada.Talvez o hospital esteja a ser construído na mesma fábrica onde produzem respostas da Câmara — aquela fábrica de promessas recicladas. Ou então está em alto mar, numa arca flutuante cheia de intenções, à deriva desde que alguém achou boa ideia prometer saúde sem ter capacidade para a entregar.
E há uma beleza trágica nisto tudo. O presidente da Câmara garante que o Bombarral é coisa de outro mundo. E tem razão. Porque neste mundo, quando se promete um hospital, normalmente constrói-se. Neste mundo, quando se pede um poste, instala-se. Quando se escreve uma carta, responde-se com algo que realmente se vá fazer. Mas no Bombarral vive-se num universo paralelo onde o tempo anda ao contrário e os pedidos da população evaporam-se no ar — provavelmente junto ao orçamento participativo. Fico a pensar: será que o hospital vai chegar antes do poste? Será que a minha rua vai ser asfaltada antes de eu precisar do hospital? Ou será que primeiro morro de um entorse nas crateras da minha rua e só aí, por respeito póstumo, me asfaltam o funeral? E, por fim, deixo uma sugestão. Já que o hospital e a Câmara andam no mesmo passo de caracol sonolento, proponho juntar os dois projectos. Que tal fazer o hospital na minha rua? Assim matam dois coelhos de uma vez: aproveitam a terra batida como ala ortopédica e o poste de luz pode servir de sala de espera. Eu até deixo espaço para uma maca no quintal. Afinal, sonhar é grátis. E, ao que parece, no Bombarral, é o que se faz melhor: sonhar…
Nota de rodapé: num jantar da alta sociedade da região Oeste, soube que a minha estrada nunca será asfaltada porque é considerada zona agrícola.
Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com