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terça-feira, 19 de agosto de 2025

Bombarral ilustrado

 




Ando atrás do sonho do Euromilhões há décadas.

Na semana passada fui tentar a minha sorte à papelaria cá do burgo.

Enquanto esperava na fila para ser atendido, encontrei no expositor esta pequena maravilha.

Um livro simples, silencioso e profundo, que procura manter vivo o património cultural do Bombarral através do bilhete-postal ilustrado.

Peguei no livro, folheei-o e trouxe-o comigo.

Reúne uma cuidada selecção de postais antigos, testemunho vivo da evolução da vila de Bombarral ao longo do século XX.

Neste livrinho tão mimoso podemos passear pelas ruas, ver edifícios e espreitar costumes que ajudaram a moldar a identidade da terra.

Muitos parabéns ao autor, que não sei quem é, apenas que dá pelo nome de José Vítor Silva.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blospot.com

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Distantes, intocáveis, indiferentes mas reinantes



Todos os meses, catorze vezes por ano, o IASFA enfia-nos a mão nos bolsos.

Convém explicar o trajecto de um documento enviado para comparticipação de actos médicos, para que todos os militares percebam a engrenagem e compreendam de uma vez por todas onde nós estamos enfiados:

1º passo - Aguarda Processamento: à espera que alguém se digne olhar para o documento.

2° passo - Processado: registaram-se os actos médicos e valores.

3° passo - Verificado: confirmaram que as contas estão certas.

4.o passo - Certificado: a comparticipação está dentro da lei.

5° passo - Autorizado: aguarda liquidação.

6° passo Liquidado: foi enviado para pagamento, mas sem confirmação.

7.º passo - Pago: quando o dinheiro chega efectivamente à conta.

8º passo - Devolvido: irregularidade ou erro.

9° passo - Arquivado: já não conta, fica apenas no histórico.


Pois bem: um documento datado de 27-11-2024, com comparticipação no valor de 240 euros. Hoje, nove meses depois, continua a vaguear na plataforma. Encontra-se na etapa “Classificado”, como se fosse um videojogo mal programado em que o utente nunca passa de nível. Em nove meses apenas atravessou três etapas. Faltam outras tantas, sem prazo, sem horizonte e sem qualquer justificação plausível.

Para tentar perceber o absurdo, fui rever um outro documento mais antigo, no valor de 38 euros. Segundo o sistema, está pago. Fui à Caixa Geral de Depósitos confirmar. Resultado: nada. Nenhum registo. Nenhum depósito. O pagamento existe apenas no sistema, mas nunca na conta.

Daqui só se pode concluir o óbvio: o IASFA arrasta processos durante praticamente um ano para chegar a uma liquidação que não corresponde a qualquer pagamento real. E quando finalmente “paga”, a pergunta é simples: para onde vai o dinheiro? Não entra na conta do beneficiário. Fica retido algures entre a máquina burocrática e as prioridades da corporação que a dirige.

O problema é estrutural. O IASFA tornou-se um mastodonte administrativo, gerido por uma cúpula que parece viver de expedientes, carimbos e opacidade. Alimenta-se todos os meses dos descontos dos utentes — catorze meses por ano, quando o calendário só conhece doze — e devolve em troca lentidão, ineficiência e silêncio.

Um seguro privado demora em média 45 dias a comparticipar actos médicos. O IASFA precisa de nove meses para não pagar. A diferença é clara: no privado a doença é tratada, no IASFA a doença é arquivada.

Este mecanismo não é um apoio. É um teste à paciência de quem desconta. O beneficiário fica sempre na posição do pedinte, à espera de uma esmola que nunca chega. E todos falam, todos se queixam, mas nada muda. O IASFA continua a reinar nos bolsos dos seus utentes, impune e intocável, como se o dinheiro fosse deles e não de quem o entrega religiosamente todos os meses.

Para o IASFA, um ano tem catorze meses. E reinam como o Sol: distantes, intocáveis e indiferentes.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

15 de Agosto

 


Trago esta data colada a mim como uma lapa — daquelas que não despega. Não sei se foi o tempo que escolheu este dia para mim, ou se fui eu que, aos poucos, lhe fui dando importância. Sei que volta todos os anos com ar solene, como quem vem cobrar. E eu, como sempre, finjo não dar por nada. Faço-me desentendido. Às vezes convenço-me outras, nem por isso.

Nunca fui de contar os anos. Não por medo talvez por desinteresse. O que é que isso me diz? Que já dei 66 voltas ao sol? E depois? Sempre fui mais de medir os anos pelo que me deixaram no corpo, e menos pelo que escreveram nos papéis. A barba branca apareceu cedo, aos vinte, e foi ficando — como quem ocupa lugar com tempo. Mas nunca serviu de referência. As rugas, que esperava que viessem em tropa, falharam a convocatória. Ou então andam por dentro, disfarçadas nos joelhos que rangem, nas noites que já não toleram bebidas brancas, e nos músculos que protestam só por me levantar da cadeira. O tempo não me vincou a cara, mas tem andado a esculpir-me por dentro.

Sentado em cima dos 66 — que é onde oficialmente me encontro, apesar de não os sentir — dou comigo a pensar como é que se leva a vida daqui para a frente. Não é drama, nem crise existencial. Só que já deixei de ir prà noite há tanto tempo que nem sei a cor das luzes dos bares. O cheiro a patchuli foi substituído por creme anti-inflamatório. Já não tenho pachorra para os mesmos engates, as mesmas verdades mansas e as mentiras cansadas dos balcões. Já não danço. O whisky e o café perderam-se-me. Ainda provei um gole outro dia, por cortesia — e foi a noite toda a ouvir os joelhos a protestar. 

Agora é isto: adaptar-me à água, à moderação e aos comprimidos. Um para o colesterol, outro para o reumático, mais três para a anemia, outro para a doença autoimune, que ainda ando a decorar o nome. E pronto, com este andamento, qualquer dia o “azul” também começa a parecer inevitável.

Tomo-os todos com alegria, vá. Como quem aceita o ritual. Há coisas piores do que engolir comprimidos.

Sentado em cima dos 66, aprendi a fazer de conta que sou um homem zen. Quando o meu neto de cinco anos cá está, trocam-se os papéis. Em vez de fazer figura de velho macaquinho — daqueles que falam fininho e fazem perguntas parvas — eu visto a pele do miúdo, e é ele quem se vê aflito comigo. Os processadores dele funcionam lindamente, por isso mesmo Inventamos teatros, ficções, absurdas. Às vezes faz grande banzé: não gosta de vestígios de cenoura na sopa, mas antes comera cenoura crua. Ou então porque não quer sair de casa, quer ver os bonecos. Entra no carro a choramingar e diz que tem calor. Nada que um gelado não resolva. Eu rio-me. O mundo dele tem mais lógica do que o meu.

E é esta versão de mim que mais gosto. Um avô novato. sentado em cima dos 66, mas com vontade de levantar voo, com a certeza absoluta de que o corpo pode trair, mas o espírito ainda dá cartas. Sinto-me mais leve do que muito garoto de 40, que já nasceu cansado e com a alma encarquilhada.

Aos que andam por aí com a minha idade e já decidiram armar-se em velhos, deixo o recado: ide catar-vos. Deixai-vos de lamúrias, peninhas e discursos arrastados do antigamente é que era bom. O que já foi, foi. Agora é agora. E eu estou cá Inteirinho da Silva com um corpo que parece ter menos vinte e um espírito que ainda não encontrou idade. E, acima de tudo, com a liberdade de dizer o que penso sem me preocupar se agrado. Porque se há coisa boa nisto de ter 66 e  já não tenho de provar nada a ninguém.

Faltam-me três anos — ouviram bem, só três — para atingir o magnífico número 69. E assim que os fizer, vou ter de arranjar outra coisa qualquer para me manter a mente enxuta. 

Agora que o neto já foi para casa dos pais, tudo voltou ao normal. Retomei a rotina: já cortei as ervas, reguei as árvores de fruto (incluindo o limoeiro, que desde que o Xico esfregou os cornos nele, ficou raquítico), tratei do Boris, desarrumei e arrumei a garagem dez vezes e lavei o pátio pela milésima vez.

Só falta ir meter o nariz no X, ver se me actualizo nas fofoquices.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Alcochete


Portugal é um país maravilhoso, sobretudo quando se olha para a sua vertente tradicional – aquela que resiste ao desgaste dos anos, que sobrevive à pressa da modernidade e que continua a reunir gerações em torno das mesmas emoções que encantaram os avós e hão-de emocionar também os netos. Se há terra onde o testemunho vivo desta força cultural se mantém, essa terra é Alcochete.

Durante grande parte do ano, Alcochete é um lugar sereno, onde o Tejo repousa junto ao casario e às ruas estreitas, desenhadas para acolher passos lentos e conversas demoradas. É uma vila pacata, habitada por gente simples, mas ferrenha, onde o tempo parece correr ao ritmo das marés.

A vida desenrola-se sem pressas: ora cheira a maré-cheia, ora a lodo quando a maré vaza, deixando no ar o odor salgado do rio. Mas basta chegar agosto para que o sossego dê lugar a uma energia vibrante.

As festas de verão transformam a vila num centro de alvoroço e alegria. Ruas e praças enchem-se de luzes e cores, e a música popular ecoa até nas esquinas mais recatadas. O cheiro a sardinha assada mistura-se com o aroma doce das farturas, enquanto o burburinho das barraquinhas acrescenta ainda mais vida ao cenário. É assim que Alcochete se abre ao mundo, recebendo de braços abertos todos os que chegam de perto e de longe.

Parece-me haver famílias inteiras que regressam todos os anos, e amigos – como foi o meu caso – que marcam reencontros apenas nesta altura e acabam por descobrir a vila pela primeira vez. O ambiente é de partilha e convívio, com bailaricos que se prolongam pela madrugada, concertos ao ar livre, procissões solenes e, claro, a festa brava do touro, que é o grande orgulho local, coroada pela charanga – que, por acaso, não fiquei para ver.

A tradição taurina de Alcochete não é apenas um espetáculo: é um ritual com raízes profundas, uma herança que passa de geração em geração e um símbolo de identidade local. As ruas enchem-se para assistir às largadas, momentos em que a coragem e a destreza se misturam com a adrenalina e o entusiasmo da multidão. É uma experiência intensa, onde o respeito pela tradição se sente tanto no silêncio expectante antes da saída do touro como no clamor colectivo que acompanha cada movimento. E quando acontece uma marrada ou algo pior - Alcochete suspende a respiração.

Toda a comunidade participa, de uma forma ou de outra. Uns arriscam-se na arena improvisada das ruas, outros ajudam na organização, e muitos preferem vibrar a uma distância segura.

Em Alcochete, a festa não é apenas um evento no calendário: é um reencontro com as raízes, um brinde à cultura portuguesa na sua forma mais pura e autêntica, um momento em que o passado e o presente se dão as mãos. Quando as luzes se apagam e a vila regressa à tranquilidade habitual, ficam no ar o eco das vozes, o cheiro do rio e a certeza de que, no próximo agosto, tudo recomeçará – porque certas tradições não conhecem fim, apenas novas formas de continuar a existir.


Adérito Barbosa in 

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quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Bombarral a ferver

Está a decorrer, entre os dias 7 e 12 de agosto, no Bombarral, o 40.º Festival do Vinho e o 30.º da Pera Rocha.

O recinto está encantador, tudo muito bem arrumadinho. Há vinho para todos os gostos e tasquinhas de todos os feitios. Basta ter algum dinheiro — não é preciso muito — para se poder provar ou degostar os vinhos de Portugal.

Só o copo custa 3 euros.

Podes jantar ou petiscar por cá. Depois, é só aproveitar os concertos: vão passar pelo palco os Xeques Orquestra, Para Sempre Marco, Miguel Gameiro, Van Zee, Carolina Deslandes e o inevitável Quim Barreiros.

Rapaziada, venham até cá viver esta maravilha do vinho.

Venham no sábado... que eu não estou cá.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

domingo, 3 de agosto de 2025

O Ranhoso de sempre

 


Já cansa esta ladainha da esquerda europeia, com o Sr. Macron à cabeça e o seu bando de galinhas lusitanas, a cacarejar pela solução dos dois Estados - o da Palestina, que nem sequer existe juridicamente, ou o Estado do Hamas — esse sim, real, armado, e reconhecido como organização terrorista pela União Europeia, Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Japão e por alguns países árabes.

A esquerda portuguesa, fiel ao seu papel de activista de café, quer ser  pioneira no reconhecimento de um Estado fantasma, dividido entre dois bandos que se odeiam quase tanto quanto odeiam Israel. Desde 2007 que o Hamas controla a Faixa de Gaza com mão de ferro, após ter deposto violentamente a Autoridade Palestiniana. Desde então, há 17 anos, que não há eleições. Em vez disso, há purgas internas, repressão política, e um regime teocrático que impõe regras medievais à população civil. O outro Estado, a Cisjordânia — vive sob uma administração corrupta, sem legitimidade popular, cuja única função parece ser gerir os fundos internacionais que nunca chegam à população.

O entretenimento preferido de ambos continua a ser o mesmo: lançar foguetes sobre civis israelitas, enviar homens-bomba para cafés, esplanadas e autocarros, raptar mulheres, crianças e idosos, e depois — claro — escudar-se atrás de hospitais e escolas para colher dividendos mediáticos. Desde 7 de Outubro de 2023, com o massacre de mais de 1.200 civis israelitas, incluindo bebés queimados vivos e mulheres violadas em massa, o Hamas consolidou o seu estatuto de organização terrorista internacional. O mundo civilizado ficou chocado. A esquerda ocidental, como sempre, relativizou o assunto.

A propaganda é de tal ordem que, se dermos ouvidos às manchetes, Israel só combateu crianças nos últimos três anos. Ninguém viu um único militantes do Hamas mortos. E, no entanto, estima-se que, desde o início da ofensiva israelita após 7 de Outubro, cerca de 40.000 combatentes tenham morrido.

A indústria palestiniana é, em grande parte, mediática. Produz vídeos para redes sociais, encena vítimas, manipula imagens e converte cada confronto em espectáculo para consumo das elites morais do Ocidente. A ciência praticada em Gaza é a da manipulação emocional. A tecnologia é importada do Irão: foguetes, explosivos, drones. O investimento humanitário que entra — cerca de 1,5 mil milhões de dólares anuais, segundo a ONU — é frequentemente desviado para construir túneis e esconderijos subterrâneos.

E no centro desta farsa está António Guterres, o pior Secretário-Geral da ONU da história recente. Um homem que conseguiu o insólito feito de ser declarado persona non grata por Israel. Sob o seu mandato, a ONU falhou em todos os principais conflitos da década: Ucrânia, Gaza, Síria, Sudão, Haiti. 

E… aquele assunto dos curdos é melhor nem dizer nada.

A sua diplomacia resume-se a declarações de condenação previsíveis, sem efeito prático, sempre carregadas de ambiguidade moral — com o dedo mais facilmente apontado a democracias ocidentais do que a ditaduras teocráticas.

Guterres, como bom esquerdista, confunde Estado com grupo armado. Confunde ciência com ressentimento. Compara um país democrático, com parlamento, imprensa livre e sistema judicial funcional, com uma organização jihadista cujo objectivo declarado é a destruição de Israel. Confunde fábricas de microchips com fábricas de mártires. Confunde um país que exporta tecnologia médica para o mundo inteiro com uma faixa de terreno que exporta vídeos de propaganda com crianças mutiladas — muitas vezes vítimas de explosões provocadas por armamento defeituoso do próprio Hamas.

O conflito israelo-palestiniano não será resolvido com moções simbólicas nos parlamentos europeus, nem com cimeiras diplomáticas onde se trocam sorrisos e frases feitas. Resolver-se-á quando os países árabes deixarem de usar os palestinianos como peões e quando os próprios palestinianos decidirem se querem trabalhar ou continuar a viver da glória do martírio subsidiado.

Portugal, como sempre, ranhoso, já se posicionou na linha da frente para reconhecer aquilo que não existe. Ninguém mandatou o governo para isso.

Na foto um membro do Hamas carrega um boneco disfarçado de cadáver. 


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

domingo, 27 de julho de 2025

A Felicidade da miséria e ignorância da Trabessa


Esta madrugada, depois de assistir a mais um episódio de pancadaria entre um general e um jornaleiro —, fui dar uma volta pelo Facebook. Diga-se, não foi por tédio. Procurava a crónica viva do dia. Esperava ver o General Carlos Branco com gelo no olho, a mascar a vergonha da surra que apanhou do jornaleiro Bello, com aquele ar fingido de missão cumprida que os generais sabem ensaiar. Mas não, tropecei nas desculpas esfarrapadas do guerrilheiro.

Um clique bastou. Uma imagem partilhada algures: um pequeno aglomerado de casas encravadas entre pedras e arbustos secos, nas encostas de Polon di Engenhos, baptizado — vá-se lá saber por quem — de Trabessa. A imagem é crua. Pobreza. Seca. Resistência. Uma espécie de sobrevivência amarrada à pedra.

Mas o que me rebentou com os miolos não foi a imagem em si. Foram os comentários. "Aldeia maravilha", "coisa linda", "pura natureza", "quem me dera viver num sítio assim". Palermices de luxo. Uma galeria de poesia barata escrita por gente que até sabe o que é carregar água à cabeça, cagar no mato ou ver um filho morrer de apendicite por falta de um posto de saúde mas que agora com um telemóvel e 5G, acha que a miséria é paisagem natural.

Alguns caboverdianos estão apaixonados pela sua própria pobreza. Mas não a pobreza real, fedida, sufocante, estão apaixonados pela versão polida, limpa, emoldurada, com legenda inspiradora e tudo: como se o sofrimento fosse um património a proteger. E depois queixam-se que os políticos continuam a viver como condes. Alguém tem de usufruir do conforto, já que o povo se satisfaz com a estética da miséria.

É nesse mundo que o déspota José Maria Neves é presidente — o eterno incapaz, pai da nação endividada, padrasto dos esquecidos. Ele e os seus herdeiros, filhos do compadrio e da propaganda estalinista, vivem mergulhados na opulência e intriga, enquanto o povo se orgulha da sua própria miséria. "Nôs ka sta mal", dizem. Pois claro. O mal é um privilégio dos que ainda se indignam.

Os deputados de Cabo Verde são outra aberração, uns papagaios engravatados que recitam leis inúteis enquanto o povo se alimenta de vento e esperança. Falam montes de baboseiras, palavras ocas, vomitadas de cima, enquanto as aldeias continuam paradas no ano 1920.  Pegaram na palavra portuguesa Travessa, assassinaram-na sem piedade, e ao cadáver chamaram "marca local". Ser burro é triste.

Se a ignorância do povo é pecado, a hipocrisia dos governantes é crime. Eles fodem o povo até ao tutano, exigem vénia, respeito, e o título de excelência. E o povo, domesticado, agradece. Lambe-lhes o rabo com orgulho, chama-lhes doutores e aplaude quando chegam de carros novos pagos com dívida pública. É o síndrome de Estocolmo em versão africana. Chegaram ao cúmulo de prometer aviões a voar pela metade.

Mas a culpa não é só deles. É também de quem acha a miséria bonita, de quem partilha fotos de pobreza com emojis de coração, de quem romantiza a dureza de um povo que não escolheu ser forte — apenas não teve alternativa. De quem confunde resistência com destino.

Trabessa não é coisa linda. É o retrato da negligência. Um postal ilustrado do fracasso do Estado, da ausência de visão, do desprezo institucionalizado por quem vive longe do poder. E enquanto continuarmos a tratar a pobreza como arte, os artistas continuarão os mesmos: políticos ricos, povo ignorante — e um país inteiro a bater palmas ao seu próprio funeral.

E José Maria Neves ainda tem a desfaçatez de dizer que a namorada faz de primeira dama e por isso recebe 310 contos mensais — mais de sete vezes o ordenado médio no país. Talvez receba esse dinheiro por outros serviços. Uma namorada fazer de primeira dama é preciso ter uma lata do tamanho da ilha. E é aqui que se entende a imagem. Não é uma aldeia. É uma metáfora. Uma ferida exposta. Uma miséria transformada em 

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sábado, 19 de julho de 2025

Boris


Finalmente temos cão. Disciplinado, obediente grandalhão, goloso e gordo.

Continua amigo do carteiro, amigo do João Bernardo, amigo do bode e meio amigo da gata.

Já apanhou um coelho mas, não sei como.  Comeu-o com pele e tudo. 

Já tem 22 meses. 

Só falta saber o que ele é capaz de fazer com um intruso.

No joelho, ainda a marca recente da última queda de moto.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Eles perderam a guerra no estúdio

 



Montaram uma banca de peixeiradas na praça da lixeira CNNPortugal. A única diferença é que aparecem de farda invisível e patente no ego, disparam argumentos como quem dá ordens para marchar. E quando o contraditório lhes bate à porta, respondem como se estivessem a lidar com recrutas ou com inferiores hierárquicos aos gritos, com ataques pessoais e, nalguns casos, com bocas foleiras à mistura.

É neste lamaçal estratégico que alguns dos nossos generais de microfone na lapela continuam a sarnar a molécula ao totó português com a história de que Putin está a um passo da consagração, como se Moscovo já estivesse a ensaiar o desfile da vitória.

Neste contexto, têm-se multiplicado os atritos no lixo canal. Carlos Branco, ex-oficial de alta patente da NATO — possivelmente um agente da FSB infiltrado — tem vindo a adoptar uma leitura tão simpática da estratégia russa que quase parece funcionário do Ministério da Defesa em Moscovo. Por outro lado o meu velho conhecido Agostinho, com o seu estilo educacional forçado, doce como mel, mas menos descarado, não esconde as dificuldades em aceitar visões diferentes, especialmente quando vêm de jornalistas ou comentadeiras. Estas últimas, por serem mulheres — e nós, os casados, já sabemos: quando elas se passam connosco, atiram pratos ao ar, copos e choram desalmadamente de tanta infelicidade por estarem casadas com um homem bom — tornam o estúdio num local muito perigoso para se estar.


Aqui no monte, ouço-os tranquilamente e sinto um odor a bafo de álcool da caserna.

Habituados a mandar sem serem questionados, os generais transportam para os estúdios de televisão a lógica do quartel. Só que no mundo civil a autoridade não está nas estrelas nem nos galões — está nos argumentos. E, de preferência, servidos em esplanadas com elevação. Mas eles não vão para discutir, vão para comandar. E quando alguém ousa questionar o comandante, está tudo fodido. Começam os ataques pessoais num suspiro teatral.

Carlos Branco, por exemplo, já protagonizou diversos episódios tensos com o jornaleiro Pedro Bello, chegando ao ponto de virar um copo de água num acesso de fúria contida. O meu amigo Agostinho não ficou atrás, envolvido em discussões onde o tom roçou o insulto directo, sobretudo com comentadeiras que não lhe prestaram continência analítica. Estes gestos de impaciência, que no quartel podiam ser tolerados como temperamento do comandante, na praça pública soam a birra de velho autoritário que nunca aprendeu a discutir ideias.

É a ilusão do monopólio do saber.

Convém sublinhar que os três generais (uns mais do que outros) representam uma elite militar que nunca se habituou à crítica. Cresceram num meio onde se repetem ordens e onde o debate é substituído pela execução. Passar da caserna para o estúdio, sem um processo de adaptação crítica, leva a uma espécie de choque civilizacional. Acreditam ter o monopólio da análise militar e estratégica, como se os civis — mesmo bem informados — não tivessem legitimidade para opinar sobre política internacional. E essa falsa ilusão de superioridade intelectual colide de frente com a realidade democrática do contraditório.


Ao serem confrontados com dados, interpretações alternativas ou simplesmente com perguntas incómodas, os generais perdem o norte. Não conseguem defender a sua posição com serenidade nem aceitar que o mundo não é uma ordem de batalha. É aí que entram os insultos, os olhares de desdém e os célebres: “não me interrompa, e mais, digo-lhe mais, não lhe admito, eu estive na guerra, vá estudar e depois venha para aqui falar”.

Com esta postura, os generais perderam a guerra no estúdio claramente.

Ironia das ironias: homens que dedicaram a vida a estudar guerra não conseguem conviver com o conflito mais básico da democracia — o debate. Perderam a compostura, perderam a razão e, pior ainda, perderam o respeito do público, que esperava deles elevação, não berraria. Por isso mesmo eu próprio não os reconheço!

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Filhos da Sombra



Nas vielas da ilha, ao cair da tarde

Marchavam em silêncio os senhores da fraude

Com alianças brilhantes e promessas vazias

Desciam sobre moças em noites sombrias

faziam juras a raparigas de tranças,

com olhos grandes demais para a idade.


— És linda. Mereces mais do que ser donzela —

diziam, com a mesma voz que usavam na missa.

Ofereciam futuro,

ofereciam nome,

e ao cair da noite, tomavam o corpo.

Comiam com pressa,

e deixavam a alma a arder nos lençóis.


Tinham três, quatro, cinco mulheres ao mesmo tempo.

E quase todas sabiam de todas.

Dividiam-nas como quem reparte sal,

mas em casa, a legítima dormia

de rosário na mão e vergonha nos olhos.


Os outros filhos — os da sombra —

nascidos no silêncio,

em casas emprestadas,

com nome de mãe e rasto de pai ausente.

Uns com apelido inventado,

outros sem apelido nenhum.


E quando cresceram,

viram os irmãos do casamento

a subir degraus com sapatos limpos,

com diploma na parede

e arrogância na língua.


Eu sou irmão de polícia barrigudo,

de autodidata analfabeto,

de professor que ensina mas nunca leu,

de músico de batuque que desafina na vaidade.

Sou irmão de advogado por correspondência,

de engenheiro de obra de pala,

de doutor da mula e mestre do discurso da treta converseta


Eu sou o erro.

Sou o pedaço esquecido da história,

o parente de gaveta,

a nódoa no linho da família.


Quando falo, fazem-se surdos.

Quando apareço, disfarçam.

Quando passo, mudam de passeio.

E quando escrevo fingem

Quem não me lêem.


Cresci a ver tudo.

Vi-o a atravessar a rua

sem coragem de cruzar o meu olhar.

Vi os do casamento, os filhos 

vestirem o sangue com vaidade,

sem saberem que o sangue é sujo

quando a verdade é limpa.


Eles falam alto nos jantares.

Recitam leis, defendem moral,

batem no peito com títulos e cargos.

Mas tremem com um teste de ADN.

Fazem discursos sobre família

mas têm armários cheios de fantasmas.


E eu?

Eu sou o fantasma com rosto

Da minha mãe que foi vítima 


Não quero herança.

Não quero lugar à mesa.

Não quero o nome,

quero história,

quero que alguém diga:

— Ele também é nosso

das vergonhas da ilha.


Porque o pai que me gerou

espalhou filhos como semente ao vento,

e agora colhe silêncio nos funerais.

O caixão desce,

mas os segredos não.

O segredo ficou.


E há-de chegar o tempo —

o tempo em que os filhos da sombra

hão-de sair da margem,

não para pedir,

mas para dizer:


Estamos cá.

Fomos feitos como vós,

mas crescemos no escuro.


E há-de doer.

Doer nos retratos,

nas árvores genealógicas,

nas biografias mentirosas.

Porque a verdade,

quando vem,

não pede licença.

Entra.


E ninguém quer entender

A negra história da ilha

negra história da ilha…

A negra história.

negra a história…

da ilha.

da Ilhaaaaaaaaaa!


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Eu sou um bom idiota

Sou, hoje, um dos grandes sábios do meu tempo. Sei tudo, comento tudo, opino sobre o que conheço e, sobretudo, sobre o que não faço a menor ideia. Acordo e, mal abro os olhos, já estou pronto a deixar a minha marca na Humanidade — com um scroll e dois comentários sobre temas que mal sei pronunciar. 

Tenho um telemóvel e uma ligação miserável à internet: é quanto basta para me sentir preparado para discutir desde geopolítica a misticismo quântico, passando por vacinas, inflação, meteorologia, ortografia comparada e, claro, corrupção portuguesa — e ainda tenho tempo para me armar em perito do acidente do Lamborghini em Espanha.

Vou a um exemplo: eu digo alto e bom som que Sócrates é corrupto, mas não sei explicar bem porquê. O Ministério Público também não sabe explicar, por isso há dez anos que os gajos andam às turras — mas eu sei, vi algures no Facebook e não preciso de mais. Se há coisa que aprendi com a internet foi a dispensar provas evidentes — basta-me ligar a CMTV ou  CNNPortugal.

Também sei que os políticos são todos ladrões. Não sei bem o que roubam — eu acho que há uns cinco ou seis, ou vinte escalões de IRS — e se me pedissem para fazer uma simulação de imposto, borrava a folha toda. Mas que eles nos estão a roubar para dar aos ricos, estão. É evidente, está tudo feito. Vi num vídeo com um tipo aos gritos numa manifestação, com uma tabela do IRS às costas e um cartaz no fundo a dizer "ladrões".

Nunca na vida li um tratado sobre economia, mas dou conselhos fiscais no Facebook como se tivesse saído ontem do ISEG. Não percebo a diferença entre RNA e ADN, mas já escrevi vários textos sobre os perigos da vacinação. Mal sei escrever português decente, mas dou lições de gramática a quem me aparece pela frente. A minha fonte de informação? Um vídeo com música de fundo e legendas mal escritas. Se tem muitos gostos, é porque é verdade — certo?

E se há coisa em que me especializei foi em fingir que não sou ignorante. Porque o meu telemóvel, esse pequeno altar da minha vaidade, faz de mim um génio por breves minutos. Dou por mim a citar Aristóteles sem saber quem foi, a falar de inflação sem saber fazer uma regra de três simples. Clico, partilho, indigno-me, escrevo frases carregadas de certezas sobre assuntos que nem sei pronunciar. E o mais bonito? Faço tudo isto com a confiança inabalável de um catedrático com pós-graduação em coisa nenhuma.

Mas não estou sozinho. Faço parte de um exército cada vez maior: os pobres, os menos instruídos, os analfabetos funcionais — como eu. Gente como eu, que nunca teve acesso a muita coisa, mas que agora, com um telefone na mão, se sente finalmente no topo da pirâmide. Igual ao doutor. Ou melhor. Porque o doutor estudou, mas eu vi dois vídeos de cinco minutos no TikTok, com gráficos e tudo. E, ao contrário dele, eu não me deixo enganar pela ciência. Eu pesquiso. No Facebook. De madrugada. Mesmo com sono.


Claro que isso tem o seu preço. A desinformação começa a fazer ricochete. Aponta-se para fora, mas acerta sempre nos mesmos: nós próprios. Somos os primeiros a acreditar em teorias absurdas, os primeiros a partilhar notícias falsas, os primeiros a cair nas armadilhas de quem sabe mais — e usa esse saber para nos manipular. Mas seguimos, firmes e confiantes, como se fôssemos iluminados por um saber que não temos. E quanto menos sabemos, mais opinamos.

A certa altura, deixei de perguntar. Passei a afirmar. Já não me interessa saber como funciona uma coisa — interessa-me dizer aos outros que está mal. Não interessa compreender uma ideia — interessa-me indignar-me com ela. A dúvida morreu, e com ela a possibilidade de aprender. Agora é tudo certeza. Li algures. Alguém me disse. Está num vídeo com muitos comentários. É factual, portanto.

A língua portuguesa que me perdoe. Se Camões visse os meus textos no blog olhosemlente.blogspot.com, atirava o livro à água, atirava-se ao Tejo outra vez só para salvar o livro e corrigir frases sem pés nem cabeça, erros de palmatória, palavras inventadas, anglicismos a mais e sentido a menos. Mas, mesmo assim, continuo, porque agora tenho inteligência artificial que corrige o que escrevo. Ou, pelo menos, tenta. A pontuação pode ficar mais direitinha, mas o disparate continua lá todinho.

E claro, como bom ignorante que sou, tenho palco. Posso ser ministro, juiz, professor, epidemiologista, historiador, polícia, polícia outra vez ou mesmo ladrão — tudo no mesmo dia, bastando para isso ligar o telefone e abrir a boca. Digo as maiores barbaridades com orgulho, como se estivesse a prestar um serviço público. Sou um emissor de ignorância em alta definição. E como ninguém me contradiz — ou, se o fazem, eu bloqueio — sinto-me cada vez mais sábio.

O mais assustador? É que esta ignorância que cultivo virou estatuto. Identidade. Eu não sou burro: sou livre-pensador. Eu não sou mal informado: sou contra a manipulação dos media. Eu não erro: tenho uma visão diferente. E quanto mais me engano, mais teimo. Porque, no mundo digital, mudar de opinião é sinal de fraqueza. E eu, como todo o bom idiota digital, sou forte. Mesmo quando estou errado. Sobretudo quando estou errado.

As tecnologias não são más. O problema sou eu. Eu e os outros como eu, que fizemos do telefone uma extensão do nosso ego desinformado. Um livro podia ser usado para aprender, mas eu prefiro ver vídeos de três minutos que confirmem o que já penso. O silêncio podia ser usado para pensar, mas eu preciso de dizer tudo o que me passa pela cabeça. E o resultado é este: uma cacofonia de opiniões, onde todos falam, ninguém escuta, e ainda menos gente sabe do que está a falar.

Talvez o futuro precise de menos ignorantes como eu a mandar bitaites, e de mais gente que sabe estar calada. Mas, enfim, isto sou eu a filosofar. Entre dois vídeos de teorias da conspiração e um post indignado sobre a gramática do ministro da Educação. Vou ali insultar alguém no X e já volto.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 7 de julho de 2025

RUN FOR YOUR LIVES – Crónica de uma noite com Iron Maiden

 


Marquei com o Joaquim às 19h15. Ele marchou de Estoril, eu do Bombarral. Destino comum: MEO Arena. Uma amiga nossa, muito querida,  tinha desencantado dois bilhetes para os Iron Maiden, em plena digressão mundial Run For Your Lives. Claro que não era coisa para se desperdiçar.

Agora, ventos favoráveis é que não estavam. Desde o dia anterior que o meu ouvido direito andava com ideias próprias — dor aguda, daquelas que só querem estragar planos. Mas nada que o arsenal tradicional português não resolva: antibiótico no ouvido, Ben-u-ron no estômago, e um pastel com ar de chamuça no bucho. Pronto, estava preparado para o embate.

Chegados ao recinto, o ambiente não desiludiu. No ar, um perfume pesado a ganzas, daqueles que fazem mossa na alma — e, já agora, no tímpano também. A banda de abertura, os suecos Avatar, já ia a meio da função. Não conhecia, confesso. Mas os tipos safam-se bem: bons de palco, cheios de energia, sabem entreter a malta. Aqueceram o motor como manda a lei do rock.

Três minutos antes das 21h00 — pontualidade britânica, claro — apagam-se as luzes. Entram os Iron Maiden. O cenário abre com ruas de Londres, mas logo na primeira música já estamos sob um céu parisiense. Cenários a mudar a cada tema, luzes a estalar, produção de luxo. Dá gosto ver bandas que ainda tratam isto como arte e missão.

Estava com receio que o meu ouvido não aguentasse o embate. Mas, curiosamente, ao fim de três músicas, ou a dor desapareceu, ou fui eu que deixei de a sentir. Conclusão provisória, mas convicta: em vez de ir ao médico, vá-se antes a um concerto de rock no MEO Arena. A combinação de decibéis com a fumarola das passas de erva forma uma espécie de vapor terapêutico. Cura. Cura mesmo.

O concerto foi qualquer coisa. Os Iron Maiden regressaram a Portugal com um espectáculo de peso e memória. Estão a celebrar cinquenta anos de estrada, e esta é a vigésima sexta digressão mundial da banda. O alinhamento foi certeiro: só temas dos primeiros nove álbuns — de Iron Maiden (1980) até Fear of the Dark (1992). Ou seja, só clássicos.

Aces High, The Trooper, Revelations, Fear of the Dark, The Number of the Beast, Run to the Hills, Seventh Son of a Seventh Son, Hallowed Be Thy Name, Wasted Years.

Bruce Dickinson, com sessenta e seis anos bem aviados no lombo, continua a ser um senhor do palco. Fatos militares, bandeiras, uma máscara comprada numa sex shop (segundo ele) — não faltou nada. Em The Trooper, aparece vestido como se viesse mesmo da Guerra da Crimeia. Em Powerslave, está mascarado e possuído. Energia para dar e vender.

E, claro, Eddie, o eterno mascote, surge em múltiplas encarnações: digitalizado, fardado, esquelético, a mandar no palco como sempre mandou.

O Hallowed Be Thy Name, com Bruce dentro de uma jaula, é daquelas cenas que ficam para sempre. E o final com Wasted Years foi de levantar o MEO. Estivemos lá, eu e o Joaquim. Sentimos tudo. E o que se vive ali, sinceramente, não se consegue explicar a ninguém que não tenha estado.

Foi uma noite inesquecível. E saí de lá com uma certeza científica, quase espiritual: aquela nuvem densa sobre a plateia — aquele cheiro estranho, medicinal, místico — resolveu a minha otite. Não sei explicar. Mas que cura, cura. Imaginem o que aquilo não faz a quem fuma... Devem sair de lá virados do avesso. Eu só inspirei... e saí novo.

Cheguei a casa, enfiei-me no vale dos lençóis e voltei à condição inicial: conviver com a dor no ouvido. Antibiótico despejado lá para dentro — e agora, é rezar para que eu consiga dormir.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Pobre pátria




Parece que anda por aí uma catrefada de julgamentos a decorrer — um deles talvez já tenha acontecido, ou ainda esteja a decorrer, não sei bem. O que me interessa é que há militares da Força Aérea a ser julgados por causa de umas praxes. Sim, leram bem — praxes.

E estão a ser julgados não por um superior hierárquico, não por um tribunal militar, não no recato austero de uma caserna. Estão a ser julgados num tribunal civil, desses onde a gravata pesa mais do que a verdade e a toga vale mais do que a farda.

Ora vamos por partes, talvez consiga destrinçar a palha do grão.

Os quartéis sempre foram lugares de força, suor e autoridade. As praxes sempre fizeram parte — rituais de iniciação, hierarquias informais — estiveram sempre lá. Nem tudo o que é tradição é bom, é certo. Mas há coisas que fazem parte do ADN das instituições militares. Desde que não se cruze a linha do sadismo gratuito, há ali um propósito: moldar, formar, dobrar sem partir. Ensinar, incutir o espírito de corpo, e fazer entender ao militar que a missão que tem pela frente é maior do que o seu ego.

Mas no Portugal do século XXI, um país onde se desfila mais com bandeiras do que com metralhadoras, eis que os tribunais civis passaram a meter o bedelho dentro das muralhas dos quartéis.

Foi aí que o meu último neurónio — esse que sobreviveu ao IVA e às promessas eleitorais — acendeu como uma lâmpada.

Como é que se justifica que uma instituição com códigos próprios — os militares — tenha de responder perante magistrados civis? Gente que nunca calçou umas botas, que nunca comeu rancho, que nunca passou uma noite a vigiar um posto no meio do nada, que nunca sentiu o peso de uma ordem superior em situação de risco real?

Não é que os militares estejam acima da lei. Ninguém está.

Mas os militares têm leis próprias, têm tribunais próprios, têm estruturas disciplinares próprias. Justamente porque vivem realidades diferentes. Porque a lógica da caserna não é — nem pode ser — a lógica do tribunal civil.

É por isso que existem tribunais militares. Ou existiam, vá. Porque em Portugal há esta mania de civilizar tudo até à morte, como se uniformes e hierarquia fossem relíquias do passado colonial.

Vivemos num país onde se confunde justiça com espectáculo. Basta ver as barracas TVs à porta dos tribunais.

E no meio disto tudo, quem perde são sempre os mesmos: os que se voluntariam para servir, os que marcham, os que voam, os que disparam se for preciso, e os que tombam.

Os outros — os que nunca fizeram uma flexão de braços na vida, os que confundem disciplina com autoritarismo — esses sentam-se em bancos de madeira envernizada a ditar o que é certo e o que é errado na vida de quartel.

Esta inversão de valores não é inocente. É parte de uma lógica maior: desmilitarizar por dentro, tirar autoridade a quem veste a farda, transformar soldados em funcionários públicos com bata e cartão de ponto.

Em Portugal, há cada vez menos Forças Armadas, menos disciplina, menos autoridade.

O país parece um campo de papoilas saltitantes, onde tudo o que mexe é julgado, e tudo o que não está alinhado com a política do Ministério Público é arrastado — não sem antes ser assado em lume brando durante anos a fio.

E claro, como sempre, há espaço para a paneleiragem institucional — não a da vida pessoal de cada um, que pouco me interessa — mas a da frouxidão instalada.

Enquanto isso, os que ainda acreditam na missão, no sacrifício, na camaradagem de combate, esses assistem em silêncio, vendo o país que juraram servir a desmoronar-se por dentro.

E nem uma praxe podem fazer sem correr o risco de acabar sentados no banco dos réus, julgados por quem nunca fez uma marcha de vinte quilómetros, carregado que nem mulas. Pobre pátria. Ainda bem que os nossos inimigos lá fora sabem pouco sobre nós e  muito menos sabem como estamos por dentro. 

Se um dia a guerra chegar a Portugal, é fácil: avança para o terreno a magistratura portuguesa e os políticos. Eu já dei para esse peditório.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Branquear o meu capital

 


Como é que os outros gajos conseguem branquear milhões e eu ando à nora para branquear 3100 euros.

Hoje ouvi na televisão uma informação que me surpreendeu, embora talvez já devesse tê-la como adquirida: a partir de agora, qualquer pessoa que pretenda comprar uma casa com dinheiro vivo — qualquer montante acima dos três mil euros — incorre, à luz da lei, num crime. Mais especificamente, um crime de branqueamento de capitais. A justificação, presume-se, é a necessidade de impedir que dinheiro de proveniência duvidosa entre no circuito económico formal sem rastreabilidade. Em teoria, faz sentido. Na prática, é absurdo. Em primeiro lugar, porque já não há casas — mesmo as mais degradadas — a preços tão baixos que permitam uma aquisição em notas abaixo desse limite. Em segundo, porque a própria noção de que pagar com o seu próprio dinheiro, ganho de forma lícita, pode constituir crime, é um sinal preocupante da inversão de presunção que se está a instalar: o cidadão comum, a partir de agora, é presumido culpado até provar a origem de cada euro que tem na carteira.

Mas há excepções. Diz-se que, por exemplo, posso comprar uma casa usando bitcoins. Desde que alegue - troca de produto, ou que esteja incluído no contexto de uma transação digital legítima, posso dar uma casa e receber em troca criptoativos. A ironia é total: um instrumento financeiro que nasceu da informalidade, da descentralização e da não rastreabilidade pode, segundo a norma europeia, ser mais aceitável do que dinheiro vivo, aquele que posso mostrar, contar e guardar fisicamente. A regulamentação europeia, com as suas diretivas sucessivas sobre prevenção ao branqueamento de capitais (AML), tem vindo a apertar o cerco ao uso do numerário. Entendo a lógica: evitar lavagem de dinheiro, evitar financiamento ao terrorismo, combater a economia paralela. Mas a consequência direta para o cidadão comum é outra: quem quer pagar por fora é criminoso; quem quer pagar por dentro tem de pedir autorização ao banco, justificar origens, explicar intenções e cruzar os dedos para não ver o processo bloqueado por um alerta de compliance. Ora, pergunto: e quem apenas quer resolver um problema simples? É o meu caso. Preciso de construir um passeio de cimento à volta da casota do meu cão, o Boris, Nada extravagante. Dois metros quadrados de calçada, talvez três, no máximo quatro. Uma solução que impeça que o barro entre na casota e que permita ao cão circular com dignidade. Isto era o tipo de coisa que se resolvia, noutros tempos, com um telefonema para um pedreiro qualquer, um orçamento directo e pagamento em dinheiro no final do trabalho.Mas não vivemos mais nesses tempos. Depois de semanas a procurar alguém que fizesse o maravilhoso passeio — e de ouvir orçamentos absurdos, recusa de pequenos trabalhos, ou simplesmente silêncio — encontrei um pedreiro reformado e resmungão. Tem má disposição crónica, alguma competência e nenhuma paciência. Fez-me uma proposta direta: 3100 euros, dinheiro à vista, sem factura e sem complicações. “Se quer, quer. Se não quer, procure outro.” E aqui comecei a entrar em terreno legal pantanoso. Se eu aceitar pagar os 3100 euros em dinheiro, posso incorrer num crime de branqueamento de capitais, por ultrapassar o limite legal sem justificação nem intermediação bancária.

Se eu não pagar, mas o trabalho for feito, cometo um crime de burla. Se o pedreiro aceitar o dinheiro e não declarar o rendimento, incorre num crime fiscal — pelo menos evasão, senão mais. Se ele nem sequer estiver habilitado a exercer, estando reformado, pode incorrer num exercício ilegal de atividade. Se ambos avançarmos com o negócio nestes termos, pode considerar-se que existe uma associação informal para a prática de infrações fiscais ou económicas. Tudo isto... para fazer um passeio de cimento à volta de uma casota de cão. Tentámos uma solução alternativa: pagamento fracionado, à hora, em pequenas parcelas. O trabalho seria executado por fases, com compensação proporcional. Legalmente, continua a ser arriscado. O dinheiro, ainda assim, não passaria pelo circuito formal. Ainda seria numerário. Ainda estaria sujeito a escrutínio. Nenhum de nós tem recibos, empresa ou estrutura para emitir faturas. Nenhum de nós quer envolver-se com a máquina fiscal para resolver um problema de cinquenta centímetros de alpendre.

A certa altura, o pedreiro olhou para mim e perguntou:

— O seu dinheiro está no banco?

— Está, sim — respondi.

— Então como é que vocemecê explica isso?

Não consegui responder. Porque não sei. Não sei como explicar que dinheiro que é meu, guardado por mim, resultante do meu trabalho, não pode ser usado para resolver um problema banal do meu quotidiano, sem que eu corra o risco de me tornar alvo de suspeita criminal. Vivemos num sistema em que a criminalização da normalidade é feita em nome do controlo. Onde o pequeno arranjo é mais arriscado do que a grande fraude, se não tiver a documentação certa. Onde o gesto comum, ancestral, de pagar alguém diretamente por um serviço pontual se tornou um entrave burocrático — ou pior, uma infração penal. No final, o passeio ainda não foi feito. Boris continua a sujar as patas, e eu continuo a tentar perceber como é que o meu próprio dinheiro se tornou um objeto suspeito.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Rapsódia da cor e da palavra

 Na língua portuguesa, a palavra em si já dita a sentença — o negro é réu antes do crime.

Queres ver?

— Se tens um marginal na família, o tipo é a ovelha negra da família.

— Se o teu registo criminal tem menções, então estás na lista negra.

— Se faltou luz no país, o país entrou em black-out.

— Se se tem muita fome, a fome é negra.

— Morreu alguém? Há luto. Qual é a cor? Preta.

— Se a vida não está a correr bem, a coisa está a ficar preta.

— Se tudo está certo, está tudo claro.

— Se há algum pormenor oculto, está obscuro.

— Se a memória falha, deu-me uma branca.

— Se se fala mal de alguém, está-se a denegrir.

— Se foges ao fisco, estás a sonegar ao Estado.

E ainda:

— A pior peste da História é a peste negra.

— A cor do amor é vermelha, a do dinheiro é amarela.

— Quando é difícil  fazer algo a pessoa vê-se negra para conseguir

— Quando não há Papa, sai fumo negro.

E se és problema no seio de um grupo - não passas de preto feio.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 27 de junho de 2025

A FOME DO LUME




Já me tens nas trevas,

a escorrer sangue das veias,

feito lume escondido,

nos olhos do demónio,

a cuspir silêncio.


Sou música das maldições

de Iron Maiden,

Sou o riso dos acrobatas

do inferno,

Sou quem dança enquanto ardo.


No fundo do grito

há uma ausência que canta.

É aí que te encontro,

É aí que me chamas,

sem saberes o meu nome.

Sinto a fome do desejo,

vermelha, crua,

rasgada nas entranhas.


Cor de sangue —

gota que lambe o corpo -‐

gota que não seca.

Lágrimas de orvalho,

lamber chão,

num suspiro

que não se encontra,

que morre antes de nascer.

Ver sem forma,

gritar sem boca

até deixar de caber...

em mim.


Não entendo, mas luto.

Luto de mãos fechadas

contra o vento que me veste.

Na ópera do Drácula em 

"Forgetting Sarah Marshall",

dançando de sentidos partidos,

verdades do "Hallowed be thy name"

que se engasgam na língua.


E então, 

as palavras são só cascas.

Os sons são só ecos.

Tudo ecoa

e eu sou o Drácula. 

E alguém me chama,

e eu não sei.

O mundo afunda-se no ruído

e eu, de pé, ainda ardo.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

terça-feira, 24 de junho de 2025

I am a descendant of Mr. Ambrósio Silva






O mais recente desastre aéreo na Índia revelou a alma putrefacta da república portuguesa. Entre os 298 desgraçados que subiram ao céu, estavam sete portugueses que nunca ouviram sequer um fado, e talvez nem sabiam onde ficava  portugal. Obtinham passaportes com uma facilidade tremenda, mais rápido que uma trincadela num pastel de bacalhau. Tudo graças ao labirinto legislativo do Governo da geringonça, que transformou a Constituição num menu de bufê, onde cada um serve-se a gosto e ninguém lava os pratos.

Segundo o jornal O Diabo (que, como todos sabemos, é o único periódico com coragem de chamar nomes às coisas), milhares de indianos — pasme-se, quase cem mil por ano! — usam Portugal como escadote para a Europa. Naturalizam-se mais depressa do que o meu neto de cinco anos muda de clube. Tudo com a ajuda de redes mafiosas que anunciam passaportes portugueses genuínos como se fossem tupperwares em promoção na feira de Nova Deli.

Cheguei mesmo a visitar um desses sites. Entre conselhos sobre como parecer devoto do Mr. Silva (uma divindade civil fictícia que substitui o nosso falecido Estado-nação), ensinavam como inventar aldeias transmontanas onde ninguém fala português, mas toda a gente sabe tirar fotocópias. Por diversão mórbida, fui procurar os nomes indianos mais comuns. Depois juntei “Silva”, claro. O resultado? Uma nova geração de lusos.

Rav Silva – Deus do Sol e da bica tirada curta.

Aditya Silva – Filho de Aditi e sobrinho do António Costa.

Dev Silva – Divino e isento de IRS.

Indra Silva – Deus da chuva, causa directa das infiltrações no IC19.

Hari Silva – Leão com passe da TAP.

Raj Silva – Príncipe do SEF.

Surya Silva – deus dos vistos gold.

Mohan Silva – deus da isenção de prova de residência.

Kabir Silva – Deus das filas do consulado.

Aarav Silva – Deus passaportes português 

Harvinder Silva – Deus do vinho, senhor do tinto do LIDL.

Nota de rodapé: Foi preciso cair um avião para se descobrir a marosca dos passaportes dos Silvas. Não havia necessidade.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

domingo, 22 de junho de 2025

Sissoco Embaló, o mediador dos confusão

 


Sissoco Embaló, esse prodígio da diplomacia do absurdo. O tipo que olha para uma guerra e pensa: "aqui está uma oportunidade para eu montar os confusão." Quando rebentou a guerra na Ucrânia, apareceu ele, peito cheio e raciocínio vazio, a oferecer-se como mediador do conflito. Disse, com a segurança de um iluminado num manicómio:

- Nós estamos habituados a viver nos confusão. Pudemos resolver os confusão na Ucrânia.

Genial, absolutamente genial. Porque, claro, quem melhor para resolver uma guerra entre potências militares do que alguém que vive num país onde as eleições são tão previsíveis como a lotaria, onde presidentes caem como tordos em época de caça. A Guiné-Bissau, segundo Sissoco, é basicamente Harvard dos confusão. E ele, com toda a humildade de um semideus africano, é doutorado em caos aplicado — para não dizer burrice pura e dura. E agora, como se o planeta já não estivesse suficientemente virado do avesso, Sissoco reaparece. Desta vez, quer resolver o conflito no Médio Oriente. A sério. Como quem diz: - já que pus ordem em Bissau, agora vou dar um saltinho ao Irão e a Israel para resolver mais uns confusãozinhos.” Talvez leve um saco de mancarra como oferenda de paz, ou talvez vá só com a sua retórica desengonçada e aquele ego que encheria o Estádio da Luz.Este fulano, que confunde diplomacia com conversa de tabanca, que acha que liderar é fazer discursos em crioulo como se fosse Esperanto para a paz mundial, continua a dar entrevistas como se estivesse a mudar o mundo — quando, na verdade, só está a mudar os canais de quem tem o azar de o ouvir na televisão, neste caso concreto O Observador, esse conhecidíssimo braço armado do Ministério Público português.

Mas voltando ao que interessa, façamos justiça à sua carreira gloriosa. Há cinquenta anos que vive metido nos confusão — e com gosto. Não bastava ser presidente de um dos países mais instáveis do mundo, não. Sissoco tem ambições históricas. Lembremo-nos do legado espiritual que herdou do seu patrono ideológico, Amílcar Cabral, o líder exportado para Cabo Verde como se fosse um presente de casamento que ninguém pediu. Um carniceiro que mandou matar milhares de guineenses, e que fez mais para dividir do que unir. Hoje é herói em Cabo Verde. Haja paciência.E depois há esta mania parva de que a Guiné e Cabo Verde são siameses separados à força por uma cesariana portuguesa. Sissoco fala de unidade — já anexou Cabo Verde, impôs-lhes, por longos anos um macabro governo comunista, impôs o dialecto crioulo como língua suprema, fazendo meia dúzia de palermas acharem que o português é só uma marquinha colonial que atrapalha a verdadeira essência da palhota. É com essa lógica que o burro do Neves propôs que o crioulo passasse a ser língua oficial de Cabo Verde.Sissoco Embaló é o tipo de anormal- daqueles em que ninguém sabe se está a brincar ou a falar a sério. Mas neste mundo de pernas para o ar, o homem está em cimeiras, aperta a mão a Putin, manda e-mails para Netanyahu e dá entrevistas a falar da sua “missão de paz universal”, como se fosse uma mistura de Gandhi com o Zé Povinho.

E o mais incrível? Há sempre alguém que o ouve. Há sempre um microfone apontado, uma câmara ligada, um assessor a dizer: - excelência, ficou muito bem! O mundo precisa de paz, sim. Mas também precisa de menos Sissocos a complicar ainda mais os confusão.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Quando a Ideologia fala mais alto que os factos

A recente confirmação da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) de que as centrífugadoras nucleares iranianas localizadas em Karaj e Natanz foram severamente atingidas e ficaram fora de serviço deveria, à luz dos factos, encerrar qualquer debate sobre o alcance e eficácia da operação militar israelita. Contudo, perante este cenário cristalino, o General Agostinho Costa continua, nos estúdios da CNN Portugal, numa campanha obstinada de negação da realidade, defendendo com convicção inabalável que Israel “não atingiu nada”, que “não há domínio aéreo em Teerão” e que as forças armadas iranianas “são as maiores do mundo”. É impossível assistir a este tipo de comentário sem sentir um profundo desconforto — não só pelo conteúdo ideologicamente enviesado, mas pelo estatuto de autoridade militar que o general representa. A sua postura não é apenas desinformada; é perigosamente cúmplice de uma narrativa que visa descredibilizar os interesses estratégicos do Ocidente em benefício de regimes autoritários e teocráticos. A insistência cega de Agostinho Costa em relativizar ou negar factos atestados por fontes independentes e credíveis revela mais do que uma simples cegueira ou erro de análise. Trata-se de uma linha de discurso cuidadosamente alinhada com uma corrente ideológica que há muito se enraizou em certos setores da opinião pública: uma mistura de antiamericanismo primário, romantismo antiocidental e simpatia ativa por regimes autocráticos sob o disfarce de resistência ao “imperialismo”. Neste caso, é o Irão que merece a defesa cega do general — mas podia ser a Rússia ou a Síria, como já o vimos fazer no passado recente. A verdade é que o General Agostinho Costa, general (NATO) com visível costela soviética, parece mais empenhado em manter viva a chama da Guerra Fria do que em contribuir com análises militares honestas e informadas. A sua leitura da atualidade internacional está contaminada por uma nostalgia ideológica, uma espécie de síndrome de Moscovo, que distorce permanentemente o seu julgamento. É curioso como, independentemente do tema, Agostinho Costa parece sempre encontrar uma forma de colocar a Rússia, o Irão ou grupos armados como o Hamas ou Hezbollah na posição de vítimas injustiçadas — enquanto Israel, os Estados Unidos ou a NATO são invariavelmente retratados como agressores imperialistas. Esta parcialidade é ainda mais grave por ser apresentada sob a capa de "análise militar especializada". O público, ao ouvir um general português a comentar assuntos internacionais, espera ponderação, conhecimento técnico e, sobretudo, independência. Mas o que recebe de Agostinho Costa é uma ladainha panfletária, repetida ad nauseam, com os mesmos chavões: “resistência armada”, “ingerência ocidental”, “soberania dos povos” — tudo, evidentemente, desde que esses  “povos” estejam alinhados com Moscovo ou Teerão. A questão ganha contornos ainda mais preocupantes com os relatos crescentes de que existe uma rede bem estruturada de comentadores pro-Rússia e pro-Irão nos media europeus, muitos deles direta ou indiretamente financiados para propalarem uma narrativa de sucesso militar das forças aliadas a Moscovo, Líbano, Gaza ou Teerão. Esta propaganda, disfarçada de análise, tem como objetivo enfraquecer o consenso ocidental, gerar confusão entre a opinião pública e legitimar as ações de regimes que desprezam sistematicamente os direitos humanos e o direito internacional. E, quer se queira admitir ou não, o General Agostinho Costa está a desempenhar um papel ativo — consciente ou inconsciente — nesse esforço de desinformação.

A guerra da informação é hoje tão importante quanto a guerra no terreno. E quando figuras públicas com passado militar e acesso privilegiado aos media se tornam peças dessa máquina de propaganda, estamos perante um problema de segurança e credibilidade nacional. O espaço público democrático deve ser plural e aberto ao debate — mas também deve exigir responsabilidade. A liberdade de expressão não pode ser escudo para quem, sob o pretexto de "opinião", promove sistematicamente interesses antidemocráticos e revisionistas. Os factos são claros: Israel lançou uma operação cirúrgica que conseguiu danificar instalações nucleares iranianas de alta relevância, segundo confirma a própria AIEA. Esta ação demonstra, independentemente da opinião que se possa ter sobre os méritos morais da mesma, uma superioridade tecnológica e estratégica assinalável. Negar isto é negar a realidade. E quando essa negação vem de um oficial-general reformado, que deveria estar ao serviço da verdade e da soberania da informação, isso deixa de ser apenas patético — passa a ser profundamente irresponsável. A televisão não pode continuar a servir de tribuna a este tipo de propaganda encapotada. É preciso fazer perguntas sérias: a quem serve o General Costa? Com quem se alinha ideologicamente? E por que continua a gozar de tanto tempo de antena para espalhar posições que coincidem, de forma quase milimétrica, com a retórica oficial de regimes hostis ao Ocidente? Está na hora de fazer um escrutínio sério sobre a qualidade e independência dos comentadores que povoam os nossos media. Não podemos continuar a aceitar, em nome do pluralismo, que se ofereça palco a quem trocou o rigor pela ideologia e a análise pela propaganda. O caso do General Agostinho Costa é apenas o mais evidente — mas não é único. É urgente defender a informação da intoxicação programada que visa corroer os alicerces do debate democrático.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 16 de junho de 2025

A Europa apaixonou-se por si própria e fodeu-se


Enquanto o Médio Oriente arde a sério, com explosões, corpos mutilados, drones a caçar gente como moscas e blocos de betão a esmagarem famílias inteiras, a Europa continua de volta dos seus salões envidraçados. Cimeira atrás de cimeira, entre bandeiras içadas e selfies, António Costa e companhia desfilam como se estivessem a gerir um clube de golfe da Consolação, entre beijinhos de circunstância, discursos vazios e a eterna encenação do “nós, europeus, somos a consciência moral do mundo”. 

A verdade, nua e crua, é que a Europa está fora das grandes decisões. Não por falta de história, de peso económico ou de cultura estratégica — mas porque preferiu sonhar durante décadas no sentido mais infantil da palavra: progressista, pacífica, multicultural, eticamente superior, oásis da civilização entre selvagens. Tanto parlapier gasto a sonhar, a pregar, a organizar cimeiras, discursos do clima, do amor fraterno, e da transição ecológica, o gás russo fluía para as casas da malta serenamente. Acreditaram que a guerra era coisa do passado, que a defesa era um luxo reacionário e que o mundo, tal como uma criança bem-educada, ia aprender pelos bons exemplos.

E então vieram os refugiados às catadupas. Primeiro uns milhares, depois dezenas, centenas de milhares. Subsarianos, afegãos, sírios, líbios africanos. E lá estavam elas — as meninas das organizações humanitárias da esquerda europeia, vestidas de branco, corações de peluche ao peito, prontas para acolher, beijar, embalar, dar serviços de apoio e mais tarde soube-se do serviço sexual que algumas alemãs também prestaram - Era a nova religião europeia: acolher o outro. Dar a outra face, oferecer abrigo, cidadania e Estado Social a quem, muitas vezes, nem sequer partilha os fundamentos civilizacionais do país que o acolhe. Mas isso não se podia dizer. Era racismo, era fascismo, era intolerância.

A utopia exigiu silêncio total. 

Os burocratas de Bruxelas, os governos bem-pensantes do Norte, os parlamentares do Sul, todos entoaram o cântico das boas intenções. E à medida que o mundo se militarizava, que a Rússia se rearmava, que a China montava a sua rede de influência global, que os Estados Unidos escolhiam o isolacionismo intermitente, a Europa ia discutindo a treta das quotas de carbono.

O Reino Unido percebeu cedo que estava a bordo de um cruzeiro que seguia em direção ao iceberg. Saltou fora. Chamaram-lhes de tudo: retrógrados, nacionalistas, populistas. Mas o tempo acabou por lhes dar razão. Porque enquanto os europeus dormem embalados no seu delírio pós-nacional, a realidade morde. A realidade não ouve discursos nem respeita cimeiras. A realidade chega com tanques, hackers, sabotagem industrial e alianças oportunistas entre ditadores. E o que tem a Europa para responder? Uma força armada conjunta? Uma indústria de armamento robusta? Uma diplomacia eficaz? Nada disso. Tem comités, regulamentos e resoluções.

As Forças Armadas europeias, onde existem, estão subnutridas, envelhecidas e dependentes do que os EUA quiserem fornecer. Os arsenais estão desatualizados, a prontidão militar é ridícula. E, no entanto, continuam a falar em “autonomia estratégica europeia”. Como se fosse possível construir estratégia sem vontade, sem músculo, sem convicção — apenas com papelada.

Não é de agora. A decadência é longa. Foram décadas de culto do desarmamento, de redução orçamental na Defesa, de desprezo pelo poder duro. A Europa entregou-se ao ideal kantiano da paz perpétua, sem perceber que o mundo funciona ainda no registo hobbesiano — onde quem não tem força, não tem lugar à mesa. Só resta-lhe o papel de espectadora. Uma espectadora moralista, que protesta, assina petições e organiza fóruns. Uma espectadora que aplaude os seus próprios gestos simbólicos, mesmo quando a casa está a arder.

O problema é este: a Europa apaixonou-se pela sua própria imagem no espelho. Uma imagem serena, acolhedora, civilizada. Mas esqueceu-se que o espelho não é o mundo. O mundo não se compadece com vaidades nem com princípios se não forem defendidos com coragem. E coragem não é um valor europeu neste momento. O que há são ministros do Ambiente, secretários de Estado do Bem-Estar Emocional e cimeiras sobre o futuro do planeta num planeta onde a guerra, o petróleo, os mísseis hipersónicos e a escassez de alimentos estão a escrever a próxima era.

A União Europeia, de Costa e companhia, continua a dançar o seu bailado cerimonial em Bruxelas, entre bandeiras, sorrisos, beijinhos e PowerPoints. Ignorando que lá fora, o mundo é feio, sujo e perigoso. 

E a Europa já não está à altura dele.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Cavalo de Tróia flutuante




E lá foram eles  outra vez. A mais recente tentativa de "salvar Gaza" foram em forma de flotilha: uma espécie de barco do amor, só que com menos romance e mais pretensões geopolíticas. Liderada por um elenco digno de reality show — Greta Thunberg, a eurodeputada recém-coroada Rima Hassan e o ator Liam Cunningham (sim, o de Game of Thrones) —, a embarcação foi amorosamente interceptada pela Marinha israelita antes de conseguir transformar o Mediterrâneo num palco de redenção ativista.

O objetivo da operação? "Levar ajuda humanitária a Gaza", disseram. E que ajuda! Cerca de 20 quilos de comida. Vinte e dois sacos de arroz, três de massa, uma ou duas latas de atum para dar aquele toque gourmet. Um gesto nobre, claro, se estivéssemos a falar de um piquenique. Mas para aliviar uma crise humanitária? Só se fosse para alimentar a gata cá de casa, a INDY. A bordo, para além da ração simbólica, levavam também discursos prontos, câmaras bem posicionadas no tecto da embarcação e uma certeza absoluta: que estavam do lado certo da história, mesmo quando nem sequer  sabem onde fica Gaza no mapa. Foram detidos e serão deportados sem os seus telemóveis atirados borda fora - do plano fazia parte a deportação para dar aquela toque de mártir internacional — rende bem no Instagram.

Israel, por sua vez, não se limitou a deter esses brincalhões. Identificou logo o cérebro por trás da operação: Zaher Birawi, um velho conhecido das autoridades, com ligações ao Hamas desde 2013. Não é exatamente o tipo de padrinho que se quer numa missão humanitária, mas isso parece ser apenas um detalhe técnico para os nossos viajantes. Afinal, que mal pode haver em embarcar numa iniciativa organizada por alguém com currículo terrorista? Se calhar nem viram o rodapé.

Greta, coitada, foi levada a Israel e colocada a assistir a imagens dos massacres cometidos pelo Hamas contra civis israelitas. Um gesto simbólico — mas desta vez por parte de quem leva a segurança a sério. A ideia era simples: mostrar-lhe que o mundo não é feito de binários bonzinhos e malvados, mas sim de complexidades que não cabem num cartaz com letras pretas em fundo branco.

Não se sabe se Greta ficou convencida. Talvez tenha pensado que aquilo era uma montagem. Ou talvez estivesse a fazer contas mentais a quantos painéis solares seriam necessários para iluminar as zonas bombardeadas. A sua presença, no entanto, levanta uma questão pertinente: em que momento é que a luta pelo ambiente passou a incluir sessões fotográficas em zonas de conflito, em colaboração com agentes de movimentos islâmicos radicais? Devemos esperar que o próximo passo seja uma manifestação climática em Pyongyang?

A eurodeputada Rima Hassan também marcou presença. De origem sírio-palestiniana, foi recentemente eleita sob a bandeira da luta pelos direitos humanos — desde que não se aplique a todos os humanos, claro. Tem mostrado grande entusiasmo em denunciar Israel, mas uma curiosa relutância em condenar o Hamas, mesmo depois do massacre de civis israelitas. Talvez não queira perder pontos junto do eleitorado que acha que o terrorismo é só uma questão de perspectiva.

Liam Cunningham, por seu lado, parecia ainda a meio de um ensaio de personagem. Talvez tenha pensado que ainda estava nas filmagens de Game of Thrones, onde se distingue claramente quem são os vilões e os heróis. No Médio Oriente, infelizmente, não há argumento da HBO que salve. E muito menos um bote com meia dúzia de celebridades e um saco de lentilhas.

Não se trata de minimizar o sofrimento da população palestiniana. Trata-se de chamar as coisas pelos nomes. A tal "ajuda humanitária" era um cavalo de Troia flutuante. O verdadeiro objetivo não era alimentar ninguém, mas sim furar o bloqueio naval israelita — um bloqueio que, goste-se ou não, existe porque o Hamas tem a mania de usar cimento para fazer túneis em vez de escolas, e foguetes em vez de hospitais. Esta flotilha, como tantas outras, não pretendia aliviar nada. Pretendia provocar, filmar, publicar e acumular capital simbólico. Porque o que realmente alimenta estes ativistas de elite não são os grãos de arroz — são os likes, as entrevistas, os convites para conferências e os abraços públicos da moralidade fácil.

No final, todos voltam para casa: bem penteados, com as selfies já editadas, e prontos para a próxima indignação de boutique. Gaza continua em ruínas. Israel continua sob ameaça. E nós, espectadores deste teatro flutuante, somos convidados a aplaudir mais uma peça de um guião escrito por gente que confunde o Mediterrâneo com o palco de um festival de verão com a Greta faltando às aulas sem que os pais dela sejam responsabilizados.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Fraude com perfume de cultura zero. Uma traição silenciosa aos filhos dos pobres



É difícil compreender os políticos de Cabo Verde. Tiveram, em determinado momento da história, a oportunidade de escolher um caminho racional e benéfico para o país: a autonomia dentro da República Portuguesa, à semelhança da Madeira e dos Açores. Com isso, teriam mantido os benefícios de uma ligação histórica e cultural profunda com Portugal, assegurado desenvolvimento sustentado e preservado a centralidade da língua portuguesa na educação e na vida pública. Mas não. Em vez disso, escolheram o populismo ideológico e optaram por uma ligação artificial com a Guiné, em nome de uma africanidade de palanque que, até hoje, não gerou outra coisa senão atraso. Livraram-se de Portugal formalmente, mas continuam a depender dele em praticamente tudo: educação, saúde, comércio, migrações, telecomunicações, segurança. E isso não é autonomia — é apenas pobreza orgulhosa.

É como aquele pobre que recusa o prato de batata e repolho, dizendo que só come lagosta. Fica com fome, mas mantém o ar de superioridade. E, assim, o país que poderia estar ombro a ombro com regiões ultraperiféricas da Europa, vive hoje num limbo identitário e linguístico — fingindo ser o que não é, enquanto despreza aquilo que verdadeiramente é.

No meio desse delírio nacionalista deslocado, aparece mais uma peça do teatro da decadência: a introdução do crioulo nas escolas, sob o disfarce de resgate cultural. José Maria Neves, no papel de intelectual iluminado, tem liderado essa ofensiva. Aos poucos, sorrateiramente, começa a infiltrar o crioulo no sistema educativo, alinhado com os notáveis de Santa Catarina e com uma certa elite académica de poleiro.

E o que faz o MpD? Em vez de resistir, adere. O governo de Ulisses Correia e Silva, que tanto falou em reformas, mérito e modernização, acabou por aprovar a introdução experimental do crioulo nas escolas. A mesma cartilha, o mesmo populismo linguístico disfarçado de justiça social. É o nivelamento por baixo institucionalizado. José Maria Neves, Ulisses, deputados — são todos iguais. Com discursos diferentes, mas resultados idênticos: o abandono da excelência em nome da mediocridade generalizada.

Para aumentar Hipocrisia presidencial e intelectuais de papelão o ruído, agora veio do ex-presidente Jorge Carlos Fonseca a aparecer na imprensa (entrevista recentemente publicada), dizendo que os cabo-verdianos “maltratam a língua portuguesa”. Inacreditável. O mesmo Jorge Carlos Fonseca que passou anos no poder, calado, omisso, sem uma única iniciativa relevante para proteger ou promover a língua portuguesa em Cabo Verde. Agora, que está fora do cargo, resolve fazer discursos moralistas — como se não tivesse responsabilidade nenhuma no estado atual das coisas. Mais surpreendente ainda foi ouvir Germano Almeida — respeitado autor, vencedor do Prémio Camões — dizer que os cabo-verdianos precisam aprender português ”melhor que os portugueses”. A frase, de início, parece sensata. Afinal, é verdade: dominar o português com profundidade é crucial. Mas quando empacotada com ares de superioridade, acaba por soar arrogante e deslocada. Como se a nossa missão fosse uma espécie de revanche cultural. Germano, com todo o respeito: não há competição aqui. Há sobrevivência. Há pragmatismo. E há necessidade. Julgo que concordas comigo. 

A petralhada linguística que o Neves sustenta, representa o que há de mais perigoso para o futuro de Cabo Verde: um nacionalismo barato, baseado em ressentimento, que recusa tudo o que vem de fora — mesmo quando nos é útil. Essa esquerda deslumbrada, carregada de chavões pós-coloniais, quer construir uma identidade nacional sobre ruínas e mitos. E para isso, despreza a língua portuguesa — o único elo real com o mundo académico, diplomático, económico e cultural.

Querem impor o crioulo como língua de ensino, mas não têm gramática consensual, ortografia funcional, nem sequer professores capacitados para isso. É um projeto de vaidade. Um luxo caro que só servirá para criar uma geração ainda mais isolada, ainda mais limitada, burra e mais presa ao gueto linguístico. É uma agenda ideológica, e não pedagógica. É uma fraude com perfume de cultura zero.

Promover o crioulo como língua de ensino é, além de tudo, uma mentira com roupa de inclusão. Os defensores desta medida gostam de dizer que “ensinar em crioulo facilita o aprendizado”, “resgata a identidade” e “aproxima a escola da realidade do aluno”. Tudo conversa fiada. A realidade é que nenhum país do mundo se desenvolveu com base numa língua que não tenha expressão científica, diplomática ou económica global. Nenhum. E não será Cabo Verde a exceção.


O crioulo é, sim, uma parte fundamental da identidade cabo-verdiana. É língua materna, é cultura, é música, é oralidade rica e viva. Não é uma língua preparada para ser veículo de ensino científico em larga escala. E pior: a tentativa de padronizar o crioulo acaba por criar uma artificialidade forçada, afastando-o da realidade local. O crioulo de Santiago não é o de São Vicente, que não é o de Santo Antão. E, ainda assim, querem enfiar um crioulo "unificado" nas escolas como se fosse natural, como se fosse espontâneo.

É isso que chamam de progresso? Isso é engenharia social mal disfarçada. É ideologia linguística em estado bruto. É o tipo de disparate que destrói um sistema educativo em nome de bandeiras políticas. 

A defesa da língua portuguesa em Cabo Verde não é uma defesa colonial, nem uma traição identitária — é uma escolha pragmática, racional e urgente. O português é a língua oficial do país, é a língua das leis, dos tribunais, da diplomacia, da ciência, da literatura, do ensino universitário. É também uma das línguas mais faladas do mundo, com mais de 260 milhões de falantes. É língua oficial em organizações internacionais como a ONU, a CPLP, a União Africana, e outras instituições de impacto global.


Negar o português é negar o acesso do jovem cabo-verdiano ao mundo. É condená-lo ao isolamento, à limitação, ao mercado interno estreito e sem poder de competição. Um jovem que fala e escreve português com excelência pode trabalhar em Lisboa, Luanda, Maputo, Brasília, e até mesmo em empresas internacionais em África, na Europa ou na América Latina. Um jovem que sabe apenas o crioulo — ainda que o fale com perfeição — está preso à ilha, ao bairro, à parede da escola que o enganou.


Portanto, ensinar português com rigor, exigência e profundidade é uma questão de soberania educativa. É a única forma de garantir que os filhos dos pobres tenham as mesmas oportunidades que os filhos da elite que estuda no estrangeiro. Essa conversa mole de “valorizar o crioulo” é usada por muitos políticos que metem os próprios filhos em escolas internacionais. Hipocrisia pura. Querem que o povo fique no crioulo, enquanto os deles aprendem inglês, francês e português com gramática britânica. Tenham vergonha.

O que está em jogo nesta discussão não é apenas uma escolha linguística — é o futuro de uma nação. É a direção que Cabo Verde quer tomar: ou abraça a excelência, a exigência e o rigor, ou afunda no populismo linguístico que cultiva a mediocridade como se fosse um valor.

Se se quiser um país competitivo, com uma juventude capaz de disputar espaço em universidades, empresas e organismos internacionais, temos de garantir uma educação centrada numa língua forte, estruturada e global. Isso não significa negar o crioulo — significa saber colocá-lo no lugar que ele deve ocupar: como língua complementar, cultural, afetiva. Não como língua principal de ensino.

Ao empurrar o crioulo para o centro do sistema educativo, estamos a condenar as novas gerações a uma escolarização deficiente, incapaz de dialogar com os grandes debates do mundo. E isso é imperdoável.

O mais grave é que tudo isso está a ser feito com a conivência de todos os partidos, todos os presidentes, todos os intelectuais. Poucos têm coragem de ir contra a maré, de dizer o óbvio: a introdução do crioulo nas escolas como língua de ensino é um erro monumental. Uma irresponsabilidade histórica. Uma traição silenciosa aos filhos dos pobres.

É tempo de levantar a voz contra essa trapaça. É tempo de exigir uma política linguística séria, consequente, realista. Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de brincar com o idioma. O país é pequeno, os recursos são poucos, e as oportunidades são limitadas. O português é a nossa maior ferramenta de emancipação — intelectual, económica e política.

Quem despreza isso em nome de modismos ideológicos está, na verdade, a empurrar o povo para a escuridão. E contra isso, não basta indignar-se. É preciso lutar.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com


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