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sexta-feira, 4 de julho de 2025

Pobre pátria




Parece que anda por aí uma catrefada de julgamentos a decorrer — um deles talvez já tenha acontecido, ou ainda esteja a decorrer, não sei bem. O que me interessa é que há militares da Força Aérea a ser julgados por causa de umas praxes. Sim, leram bem — praxes.

E estão a ser julgados não por um superior hierárquico, não por um tribunal militar, não no recato austero de uma caserna. Estão a ser julgados num tribunal civil, desses onde a gravata pesa mais do que a verdade e a toga vale mais do que a farda.

Ora vamos por partes, talvez consiga destrinçar a palha do grão.

Os quartéis sempre foram lugares de força, suor e autoridade. As praxes sempre fizeram parte — rituais de iniciação, hierarquias informais — estiveram sempre lá. Nem tudo o que é tradição é bom, é certo. Mas há coisas que fazem parte do ADN das instituições militares. Desde que não se cruze a linha do sadismo gratuito, há ali um propósito: moldar, formar, dobrar sem partir. Ensinar, incutir o espírito de corpo, e fazer entender ao militar que a missão que tem pela frente é maior do que o seu ego.

Mas no Portugal do século XXI, um país onde se desfila mais com bandeiras do que com metralhadoras, eis que os tribunais civis passaram a meter o bedelho dentro das muralhas dos quartéis.

Foi aí que o meu último neurónio — esse que sobreviveu ao IVA e às promessas eleitorais — acendeu como uma lâmpada.

Como é que se justifica que uma instituição com códigos próprios — os militares — tenha de responder perante magistrados civis? Gente que nunca calçou umas botas, que nunca comeu rancho, que nunca passou uma noite a vigiar um posto no meio do nada, que nunca sentiu o peso de uma ordem superior em situação de risco real?

Não é que os militares estejam acima da lei. Ninguém está.

Mas os militares têm leis próprias, têm tribunais próprios, têm estruturas disciplinares próprias. Justamente porque vivem realidades diferentes. Porque a lógica da caserna não é — nem pode ser — a lógica do tribunal civil.

É por isso que existem tribunais militares. Ou existiam, vá. Porque em Portugal há esta mania de civilizar tudo até à morte, como se uniformes e hierarquia fossem relíquias do passado colonial.

Vivemos num país onde se confunde justiça com espectáculo. Basta ver as barracas TVs à porta dos tribunais.

E no meio disto tudo, quem perde são sempre os mesmos: os que se voluntariam para servir, os que marcham, os que voam, os que disparam se for preciso, e os que tombam.

Os outros — os que nunca fizeram uma flexão de braços na vida, os que confundem disciplina com autoritarismo — esses sentam-se em bancos de madeira envernizada a ditar o que é certo e o que é errado na vida de quartel.

Esta inversão de valores não é inocente. É parte de uma lógica maior: desmilitarizar por dentro, tirar autoridade a quem veste a farda, transformar soldados em funcionários públicos com bata e cartão de ponto.

Em Portugal, há cada vez menos Forças Armadas, menos disciplina, menos autoridade.

O país parece um campo de papoilas saltitantes, onde tudo o que mexe é julgado, e tudo o que não está alinhado com a política do Ministério Público é arrastado — não sem antes ser assado em lume brando durante anos a fio.

E claro, como sempre, há espaço para a paneleiragem institucional — não a da vida pessoal de cada um, que pouco me interessa — mas a da frouxidão instalada.

Enquanto isso, os que ainda acreditam na missão, no sacrifício, na camaradagem de combate, esses assistem em silêncio, vendo o país que juraram servir a desmoronar-se por dentro.

E nem uma praxe podem fazer sem correr o risco de acabar sentados no banco dos réus, julgados por quem nunca fez uma marcha de vinte quilómetros, carregado que nem mulas. Pobre pátria. Ainda bem que os nossos inimigos lá fora sabem pouco sobre nós e  muito menos sabem como estamos por dentro. 

Se um dia a guerra chegar a Portugal, é fácil: avança para o terreno a magistratura portuguesa e os políticos. Eu já dei para esse peditório.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Branquear o meu capital

 


Como é que os outros gajos conseguem branquear milhões e eu ando à nora para branquear 3100 euros.

Hoje ouvi na televisão uma informação que me surpreendeu, embora talvez já devesse tê-la como adquirida: a partir de agora, qualquer pessoa que pretenda comprar uma casa com dinheiro vivo — qualquer montante acima dos três mil euros — incorre, à luz da lei, num crime. Mais especificamente, um crime de branqueamento de capitais. A justificação, presume-se, é a necessidade de impedir que dinheiro de proveniência duvidosa entre no circuito económico formal sem rastreabilidade. Em teoria, faz sentido. Na prática, é absurdo. Em primeiro lugar, porque já não há casas — mesmo as mais degradadas — a preços tão baixos que permitam uma aquisição em notas abaixo desse limite. Em segundo, porque a própria noção de que pagar com o seu próprio dinheiro, ganho de forma lícita, pode constituir crime, é um sinal preocupante da inversão de presunção que se está a instalar: o cidadão comum, a partir de agora, é presumido culpado até provar a origem de cada euro que tem na carteira.

Mas há excepções. Diz-se que, por exemplo, posso comprar uma casa usando bitcoins. Desde que alegue - troca de produto, ou que esteja incluído no contexto de uma transação digital legítima, posso dar uma casa e receber em troca criptoativos. A ironia é total: um instrumento financeiro que nasceu da informalidade, da descentralização e da não rastreabilidade pode, segundo a norma europeia, ser mais aceitável do que dinheiro vivo, aquele que posso mostrar, contar e guardar fisicamente. A regulamentação europeia, com as suas diretivas sucessivas sobre prevenção ao branqueamento de capitais (AML), tem vindo a apertar o cerco ao uso do numerário. Entendo a lógica: evitar lavagem de dinheiro, evitar financiamento ao terrorismo, combater a economia paralela. Mas a consequência direta para o cidadão comum é outra: quem quer pagar por fora é criminoso; quem quer pagar por dentro tem de pedir autorização ao banco, justificar origens, explicar intenções e cruzar os dedos para não ver o processo bloqueado por um alerta de compliance. Ora, pergunto: e quem apenas quer resolver um problema simples? É o meu caso. Preciso de construir um passeio de cimento à volta da casota do meu cão, o Boris, Nada extravagante. Dois metros quadrados de calçada, talvez três, no máximo quatro. Uma solução que impeça que o barro entre na casota e que permita ao cão circular com dignidade. Isto era o tipo de coisa que se resolvia, noutros tempos, com um telefonema para um pedreiro qualquer, um orçamento directo e pagamento em dinheiro no final do trabalho.Mas não vivemos mais nesses tempos. Depois de semanas a procurar alguém que fizesse o maravilhoso passeio — e de ouvir orçamentos absurdos, recusa de pequenos trabalhos, ou simplesmente silêncio — encontrei um pedreiro reformado e resmungão. Tem má disposição crónica, alguma competência e nenhuma paciência. Fez-me uma proposta direta: 3100 euros, dinheiro à vista, sem factura e sem complicações. “Se quer, quer. Se não quer, procure outro.” E aqui comecei a entrar em terreno legal pantanoso. Se eu aceitar pagar os 3100 euros em dinheiro, posso incorrer num crime de branqueamento de capitais, por ultrapassar o limite legal sem justificação nem intermediação bancária.

Se eu não pagar, mas o trabalho for feito, cometo um crime de burla. Se o pedreiro aceitar o dinheiro e não declarar o rendimento, incorre num crime fiscal — pelo menos evasão, senão mais. Se ele nem sequer estiver habilitado a exercer, estando reformado, pode incorrer num exercício ilegal de atividade. Se ambos avançarmos com o negócio nestes termos, pode considerar-se que existe uma associação informal para a prática de infrações fiscais ou económicas. Tudo isto... para fazer um passeio de cimento à volta de uma casota de cão. Tentámos uma solução alternativa: pagamento fracionado, à hora, em pequenas parcelas. O trabalho seria executado por fases, com compensação proporcional. Legalmente, continua a ser arriscado. O dinheiro, ainda assim, não passaria pelo circuito formal. Ainda seria numerário. Ainda estaria sujeito a escrutínio. Nenhum de nós tem recibos, empresa ou estrutura para emitir faturas. Nenhum de nós quer envolver-se com a máquina fiscal para resolver um problema de cinquenta centímetros de alpendre.

A certa altura, o pedreiro olhou para mim e perguntou:

— O seu dinheiro está no banco?

— Está, sim — respondi.

— Então como é que vocemecê explica isso?

Não consegui responder. Porque não sei. Não sei como explicar que dinheiro que é meu, guardado por mim, resultante do meu trabalho, não pode ser usado para resolver um problema banal do meu quotidiano, sem que eu corra o risco de me tornar alvo de suspeita criminal. Vivemos num sistema em que a criminalização da normalidade é feita em nome do controlo. Onde o pequeno arranjo é mais arriscado do que a grande fraude, se não tiver a documentação certa. Onde o gesto comum, ancestral, de pagar alguém diretamente por um serviço pontual se tornou um entrave burocrático — ou pior, uma infração penal. No final, o passeio ainda não foi feito. Boris continua a sujar as patas, e eu continuo a tentar perceber como é que o meu próprio dinheiro se tornou um objeto suspeito.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Rapsódia da cor e da palavra

 Na língua portuguesa, a palavra em si já dita a sentença — o negro é réu antes do crime.

Queres ver?

— Se tens um marginal na família, o tipo é a ovelha negra da família.

— Se o teu registo criminal tem menções, então estás na lista negra.

— Se faltou luz no país, o país entrou em black-out.

— Se se tem muita fome, a fome é negra.

— Morreu alguém? Há luto. Qual é a cor? Preta.

— Se a vida não está a correr bem, a coisa está a ficar preta.

— Se tudo está certo, está tudo claro.

— Se há algum pormenor oculto, está obscuro.

— Se a memória falha, deu-me uma branca.

— Se se fala mal de alguém, está-se a denegrir.

— Se foges ao fisco, estás a sonegar ao Estado.

E ainda:

— A pior peste da História é a peste negra.

— A cor do amor é vermelha, a do dinheiro é amarela.

— Quando é difícil  fazer algo a pessoa vê-se negra para conseguir

— Quando não há Papa, sai fumo negro.

E se és problema no seio de um grupo - não passas de preto feio.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 27 de junho de 2025

A FOME DO LUME




Já me tens nas trevas,

a escorrer sangue das veias,

feito lume escondido,

nos olhos do demónio,

a cuspir silêncio.


Sou música das maldições

de Iron Maiden,

Sou o riso dos acrobatas

do inferno,

Sou quem dança enquanto ardo.


No fundo do grito

há uma ausência que canta.

É aí que te encontro,

É aí que me chamas,

sem saberes o meu nome.

Sinto a fome do desejo,

vermelha, crua,

rasgada nas entranhas.


Cor de sangue —

gota que lambe o corpo -‐

gota que não seca.

Lágrimas de orvalho,

lamber chão,

num suspiro

que não se encontra,

que morre antes de nascer.

Ver sem forma,

gritar sem boca

até deixar de caber...

em mim.


Não entendo, mas luto.

Luto de mãos fechadas

contra o vento que me veste.

Na ópera do Drácula em 

"Forgetting Sarah Marshall",

dançando de sentidos partidos,

verdades do "Hallowed be thy name"

que se engasgam na língua.


E então, 

as palavras são só cascas.

Os sons são só ecos.

Tudo ecoa

e eu sou o Drácula. 

E alguém me chama,

e eu não sei.

O mundo afunda-se no ruído

e eu, de pé, ainda ardo.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

terça-feira, 24 de junho de 2025

I am a descendant of Mr. Ambrósio Silva






O mais recente desastre aéreo na Índia revelou a alma putrefacta da república portuguesa. Entre os 298 desgraçados que subiram ao céu, estavam sete portugueses que nunca ouviram sequer um fado, e talvez nem sabiam onde ficava  portugal. Obtinham passaportes com uma facilidade tremenda, mais rápido que uma trincadela num pastel de bacalhau. Tudo graças ao labirinto legislativo do Governo da geringonça, que transformou a Constituição num menu de bufê, onde cada um serve-se a gosto e ninguém lava os pratos.

Segundo o jornal O Diabo (que, como todos sabemos, é o único periódico com coragem de chamar nomes às coisas), milhares de indianos — pasme-se, quase cem mil por ano! — usam Portugal como escadote para a Europa. Naturalizam-se mais depressa do que o meu neto de cinco anos muda de clube. Tudo com a ajuda de redes mafiosas que anunciam passaportes portugueses genuínos como se fossem tupperwares em promoção na feira de Nova Deli.

Cheguei mesmo a visitar um desses sites. Entre conselhos sobre como parecer devoto do Mr. Silva (uma divindade civil fictícia que substitui o nosso falecido Estado-nação), ensinavam como inventar aldeias transmontanas onde ninguém fala português, mas toda a gente sabe tirar fotocópias. Por diversão mórbida, fui procurar os nomes indianos mais comuns. Depois juntei “Silva”, claro. O resultado? Uma nova geração de lusos.

Rav Silva – Deus do Sol e da bica tirada curta.

Aditya Silva – Filho de Aditi e sobrinho do António Costa.

Dev Silva – Divino e isento de IRS.

Indra Silva – Deus da chuva, causa directa das infiltrações no IC19.

Hari Silva – Leão com passe da TAP.

Raj Silva – Príncipe do SEF.

Surya Silva – deus dos vistos gold.

Mohan Silva – deus da isenção de prova de residência.

Kabir Silva – Deus das filas do consulado.

Aarav Silva – Deus passaportes português 

Harvinder Silva – Deus do vinho, senhor do tinto do LIDL.

Nota de rodapé: Foi preciso cair um avião para se descobrir a marosca dos passaportes dos Silvas. Não havia necessidade.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

domingo, 22 de junho de 2025

Sissoco Embaló, o mediador dos confusão

 


Sissoco Embaló, esse prodígio da diplomacia do absurdo. O tipo que olha para uma guerra e pensa: "aqui está uma oportunidade para eu montar os confusão." Quando rebentou a guerra na Ucrânia, apareceu ele, peito cheio e raciocínio vazio, a oferecer-se como mediador do conflito. Disse, com a segurança de um iluminado num manicómio:

- Nós estamos habituados a viver nos confusão. Pudemos resolver os confusão na Ucrânia.

Genial, absolutamente genial. Porque, claro, quem melhor para resolver uma guerra entre potências militares do que alguém que vive num país onde as eleições são tão previsíveis como a lotaria, onde presidentes caem como tordos em época de caça. A Guiné-Bissau, segundo Sissoco, é basicamente Harvard dos confusão. E ele, com toda a humildade de um semideus africano, é doutorado em caos aplicado — para não dizer burrice pura e dura. E agora, como se o planeta já não estivesse suficientemente virado do avesso, Sissoco reaparece. Desta vez, quer resolver o conflito no Médio Oriente. A sério. Como quem diz: - já que pus ordem em Bissau, agora vou dar um saltinho ao Irão e a Israel para resolver mais uns confusãozinhos.” Talvez leve um saco de mancarra como oferenda de paz, ou talvez vá só com a sua retórica desengonçada e aquele ego que encheria o Estádio da Luz.Este fulano, que confunde diplomacia com conversa de tabanca, que acha que liderar é fazer discursos em crioulo como se fosse Esperanto para a paz mundial, continua a dar entrevistas como se estivesse a mudar o mundo — quando, na verdade, só está a mudar os canais de quem tem o azar de o ouvir na televisão, neste caso concreto O Observador, esse conhecidíssimo braço armado do Ministério Público português.

Mas voltando ao que interessa, façamos justiça à sua carreira gloriosa. Há cinquenta anos que vive metido nos confusão — e com gosto. Não bastava ser presidente de um dos países mais instáveis do mundo, não. Sissoco tem ambições históricas. Lembremo-nos do legado espiritual que herdou do seu patrono ideológico, Amílcar Cabral, o líder exportado para Cabo Verde como se fosse um presente de casamento que ninguém pediu. Um carniceiro que mandou matar milhares de guineenses, e que fez mais para dividir do que unir. Hoje é herói em Cabo Verde. Haja paciência.E depois há esta mania parva de que a Guiné e Cabo Verde são siameses separados à força por uma cesariana portuguesa. Sissoco fala de unidade — já anexou Cabo Verde, impôs-lhes, por longos anos um macabro governo comunista, impôs o dialecto crioulo como língua suprema, fazendo meia dúzia de palermas acharem que o português é só uma marquinha colonial que atrapalha a verdadeira essência da palhota. É com essa lógica que o burro do Neves propôs que o crioulo passasse a ser língua oficial de Cabo Verde.Sissoco Embaló é o tipo de anormal- daqueles em que ninguém sabe se está a brincar ou a falar a sério. Mas neste mundo de pernas para o ar, o homem está em cimeiras, aperta a mão a Putin, manda e-mails para Netanyahu e dá entrevistas a falar da sua “missão de paz universal”, como se fosse uma mistura de Gandhi com o Zé Povinho.

E o mais incrível? Há sempre alguém que o ouve. Há sempre um microfone apontado, uma câmara ligada, um assessor a dizer: - excelência, ficou muito bem! O mundo precisa de paz, sim. Mas também precisa de menos Sissocos a complicar ainda mais os confusão.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Quando a Ideologia fala mais alto que os factos

A recente confirmação da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) de que as centrífugadoras nucleares iranianas localizadas em Karaj e Natanz foram severamente atingidas e ficaram fora de serviço deveria, à luz dos factos, encerrar qualquer debate sobre o alcance e eficácia da operação militar israelita. Contudo, perante este cenário cristalino, o General Agostinho Costa continua, nos estúdios da CNN Portugal, numa campanha obstinada de negação da realidade, defendendo com convicção inabalável que Israel “não atingiu nada”, que “não há domínio aéreo em Teerão” e que as forças armadas iranianas “são as maiores do mundo”. É impossível assistir a este tipo de comentário sem sentir um profundo desconforto — não só pelo conteúdo ideologicamente enviesado, mas pelo estatuto de autoridade militar que o general representa. A sua postura não é apenas desinformada; é perigosamente cúmplice de uma narrativa que visa descredibilizar os interesses estratégicos do Ocidente em benefício de regimes autoritários e teocráticos. A insistência cega de Agostinho Costa em relativizar ou negar factos atestados por fontes independentes e credíveis revela mais do que uma simples cegueira ou erro de análise. Trata-se de uma linha de discurso cuidadosamente alinhada com uma corrente ideológica que há muito se enraizou em certos setores da opinião pública: uma mistura de antiamericanismo primário, romantismo antiocidental e simpatia ativa por regimes autocráticos sob o disfarce de resistência ao “imperialismo”. Neste caso, é o Irão que merece a defesa cega do general — mas podia ser a Rússia ou a Síria, como já o vimos fazer no passado recente. A verdade é que o General Agostinho Costa, general (NATO) com visível costela soviética, parece mais empenhado em manter viva a chama da Guerra Fria do que em contribuir com análises militares honestas e informadas. A sua leitura da atualidade internacional está contaminada por uma nostalgia ideológica, uma espécie de síndrome de Moscovo, que distorce permanentemente o seu julgamento. É curioso como, independentemente do tema, Agostinho Costa parece sempre encontrar uma forma de colocar a Rússia, o Irão ou grupos armados como o Hamas ou Hezbollah na posição de vítimas injustiçadas — enquanto Israel, os Estados Unidos ou a NATO são invariavelmente retratados como agressores imperialistas. Esta parcialidade é ainda mais grave por ser apresentada sob a capa de "análise militar especializada". O público, ao ouvir um general português a comentar assuntos internacionais, espera ponderação, conhecimento técnico e, sobretudo, independência. Mas o que recebe de Agostinho Costa é uma ladainha panfletária, repetida ad nauseam, com os mesmos chavões: “resistência armada”, “ingerência ocidental”, “soberania dos povos” — tudo, evidentemente, desde que esses  “povos” estejam alinhados com Moscovo ou Teerão. A questão ganha contornos ainda mais preocupantes com os relatos crescentes de que existe uma rede bem estruturada de comentadores pro-Rússia e pro-Irão nos media europeus, muitos deles direta ou indiretamente financiados para propalarem uma narrativa de sucesso militar das forças aliadas a Moscovo, Líbano, Gaza ou Teerão. Esta propaganda, disfarçada de análise, tem como objetivo enfraquecer o consenso ocidental, gerar confusão entre a opinião pública e legitimar as ações de regimes que desprezam sistematicamente os direitos humanos e o direito internacional. E, quer se queira admitir ou não, o General Agostinho Costa está a desempenhar um papel ativo — consciente ou inconsciente — nesse esforço de desinformação.

A guerra da informação é hoje tão importante quanto a guerra no terreno. E quando figuras públicas com passado militar e acesso privilegiado aos media se tornam peças dessa máquina de propaganda, estamos perante um problema de segurança e credibilidade nacional. O espaço público democrático deve ser plural e aberto ao debate — mas também deve exigir responsabilidade. A liberdade de expressão não pode ser escudo para quem, sob o pretexto de "opinião", promove sistematicamente interesses antidemocráticos e revisionistas. Os factos são claros: Israel lançou uma operação cirúrgica que conseguiu danificar instalações nucleares iranianas de alta relevância, segundo confirma a própria AIEA. Esta ação demonstra, independentemente da opinião que se possa ter sobre os méritos morais da mesma, uma superioridade tecnológica e estratégica assinalável. Negar isto é negar a realidade. E quando essa negação vem de um oficial-general reformado, que deveria estar ao serviço da verdade e da soberania da informação, isso deixa de ser apenas patético — passa a ser profundamente irresponsável. A televisão não pode continuar a servir de tribuna a este tipo de propaganda encapotada. É preciso fazer perguntas sérias: a quem serve o General Costa? Com quem se alinha ideologicamente? E por que continua a gozar de tanto tempo de antena para espalhar posições que coincidem, de forma quase milimétrica, com a retórica oficial de regimes hostis ao Ocidente? Está na hora de fazer um escrutínio sério sobre a qualidade e independência dos comentadores que povoam os nossos media. Não podemos continuar a aceitar, em nome do pluralismo, que se ofereça palco a quem trocou o rigor pela ideologia e a análise pela propaganda. O caso do General Agostinho Costa é apenas o mais evidente — mas não é único. É urgente defender a informação da intoxicação programada que visa corroer os alicerces do debate democrático.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 16 de junho de 2025

A Europa apaixonou-se por si própria e fodeu-se


Enquanto o Médio Oriente arde a sério, com explosões, corpos mutilados, drones a caçar gente como moscas e blocos de betão a esmagarem famílias inteiras, a Europa continua de volta dos seus salões envidraçados. Cimeira atrás de cimeira, entre bandeiras içadas e selfies, António Costa e companhia desfilam como se estivessem a gerir um clube de golfe da Consolação, entre beijinhos de circunstância, discursos vazios e a eterna encenação do “nós, europeus, somos a consciência moral do mundo”. 

A verdade, nua e crua, é que a Europa está fora das grandes decisões. Não por falta de história, de peso económico ou de cultura estratégica — mas porque preferiu sonhar durante décadas no sentido mais infantil da palavra: progressista, pacífica, multicultural, eticamente superior, oásis da civilização entre selvagens. Tanto parlapier gasto a sonhar, a pregar, a organizar cimeiras, discursos do clima, do amor fraterno, e da transição ecológica, o gás russo fluía para as casas da malta serenamente. Acreditaram que a guerra era coisa do passado, que a defesa era um luxo reacionário e que o mundo, tal como uma criança bem-educada, ia aprender pelos bons exemplos.

E então vieram os refugiados às catadupas. Primeiro uns milhares, depois dezenas, centenas de milhares. Subsarianos, afegãos, sírios, líbios africanos. E lá estavam elas — as meninas das organizações humanitárias da esquerda europeia, vestidas de branco, corações de peluche ao peito, prontas para acolher, beijar, embalar, dar serviços de apoio e mais tarde soube-se do serviço sexual que algumas alemãs também prestaram - Era a nova religião europeia: acolher o outro. Dar a outra face, oferecer abrigo, cidadania e Estado Social a quem, muitas vezes, nem sequer partilha os fundamentos civilizacionais do país que o acolhe. Mas isso não se podia dizer. Era racismo, era fascismo, era intolerância.

A utopia exigiu silêncio total. 

Os burocratas de Bruxelas, os governos bem-pensantes do Norte, os parlamentares do Sul, todos entoaram o cântico das boas intenções. E à medida que o mundo se militarizava, que a Rússia se rearmava, que a China montava a sua rede de influência global, que os Estados Unidos escolhiam o isolacionismo intermitente, a Europa ia discutindo a treta das quotas de carbono.

O Reino Unido percebeu cedo que estava a bordo de um cruzeiro que seguia em direção ao iceberg. Saltou fora. Chamaram-lhes de tudo: retrógrados, nacionalistas, populistas. Mas o tempo acabou por lhes dar razão. Porque enquanto os europeus dormem embalados no seu delírio pós-nacional, a realidade morde. A realidade não ouve discursos nem respeita cimeiras. A realidade chega com tanques, hackers, sabotagem industrial e alianças oportunistas entre ditadores. E o que tem a Europa para responder? Uma força armada conjunta? Uma indústria de armamento robusta? Uma diplomacia eficaz? Nada disso. Tem comités, regulamentos e resoluções.

As Forças Armadas europeias, onde existem, estão subnutridas, envelhecidas e dependentes do que os EUA quiserem fornecer. Os arsenais estão desatualizados, a prontidão militar é ridícula. E, no entanto, continuam a falar em “autonomia estratégica europeia”. Como se fosse possível construir estratégia sem vontade, sem músculo, sem convicção — apenas com papelada.

Não é de agora. A decadência é longa. Foram décadas de culto do desarmamento, de redução orçamental na Defesa, de desprezo pelo poder duro. A Europa entregou-se ao ideal kantiano da paz perpétua, sem perceber que o mundo funciona ainda no registo hobbesiano — onde quem não tem força, não tem lugar à mesa. Só resta-lhe o papel de espectadora. Uma espectadora moralista, que protesta, assina petições e organiza fóruns. Uma espectadora que aplaude os seus próprios gestos simbólicos, mesmo quando a casa está a arder.

O problema é este: a Europa apaixonou-se pela sua própria imagem no espelho. Uma imagem serena, acolhedora, civilizada. Mas esqueceu-se que o espelho não é o mundo. O mundo não se compadece com vaidades nem com princípios se não forem defendidos com coragem. E coragem não é um valor europeu neste momento. O que há são ministros do Ambiente, secretários de Estado do Bem-Estar Emocional e cimeiras sobre o futuro do planeta num planeta onde a guerra, o petróleo, os mísseis hipersónicos e a escassez de alimentos estão a escrever a próxima era.

A União Europeia, de Costa e companhia, continua a dançar o seu bailado cerimonial em Bruxelas, entre bandeiras, sorrisos, beijinhos e PowerPoints. Ignorando que lá fora, o mundo é feio, sujo e perigoso. 

E a Europa já não está à altura dele.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Cavalo de Tróia flutuante




E lá foram eles  outra vez. A mais recente tentativa de "salvar Gaza" foram em forma de flotilha: uma espécie de barco do amor, só que com menos romance e mais pretensões geopolíticas. Liderada por um elenco digno de reality show — Greta Thunberg, a eurodeputada recém-coroada Rima Hassan e o ator Liam Cunningham (sim, o de Game of Thrones) —, a embarcação foi amorosamente interceptada pela Marinha israelita antes de conseguir transformar o Mediterrâneo num palco de redenção ativista.

O objetivo da operação? "Levar ajuda humanitária a Gaza", disseram. E que ajuda! Cerca de 20 quilos de comida. Vinte e dois sacos de arroz, três de massa, uma ou duas latas de atum para dar aquele toque gourmet. Um gesto nobre, claro, se estivéssemos a falar de um piquenique. Mas para aliviar uma crise humanitária? Só se fosse para alimentar a gata cá de casa, a INDY. A bordo, para além da ração simbólica, levavam também discursos prontos, câmaras bem posicionadas no tecto da embarcação e uma certeza absoluta: que estavam do lado certo da história, mesmo quando nem sequer  sabem onde fica Gaza no mapa. Foram detidos e serão deportados sem os seus telemóveis atirados borda fora - do plano fazia parte a deportação para dar aquela toque de mártir internacional — rende bem no Instagram.

Israel, por sua vez, não se limitou a deter esses brincalhões. Identificou logo o cérebro por trás da operação: Zaher Birawi, um velho conhecido das autoridades, com ligações ao Hamas desde 2013. Não é exatamente o tipo de padrinho que se quer numa missão humanitária, mas isso parece ser apenas um detalhe técnico para os nossos viajantes. Afinal, que mal pode haver em embarcar numa iniciativa organizada por alguém com currículo terrorista? Se calhar nem viram o rodapé.

Greta, coitada, foi levada a Israel e colocada a assistir a imagens dos massacres cometidos pelo Hamas contra civis israelitas. Um gesto simbólico — mas desta vez por parte de quem leva a segurança a sério. A ideia era simples: mostrar-lhe que o mundo não é feito de binários bonzinhos e malvados, mas sim de complexidades que não cabem num cartaz com letras pretas em fundo branco.

Não se sabe se Greta ficou convencida. Talvez tenha pensado que aquilo era uma montagem. Ou talvez estivesse a fazer contas mentais a quantos painéis solares seriam necessários para iluminar as zonas bombardeadas. A sua presença, no entanto, levanta uma questão pertinente: em que momento é que a luta pelo ambiente passou a incluir sessões fotográficas em zonas de conflito, em colaboração com agentes de movimentos islâmicos radicais? Devemos esperar que o próximo passo seja uma manifestação climática em Pyongyang?

A eurodeputada Rima Hassan também marcou presença. De origem sírio-palestiniana, foi recentemente eleita sob a bandeira da luta pelos direitos humanos — desde que não se aplique a todos os humanos, claro. Tem mostrado grande entusiasmo em denunciar Israel, mas uma curiosa relutância em condenar o Hamas, mesmo depois do massacre de civis israelitas. Talvez não queira perder pontos junto do eleitorado que acha que o terrorismo é só uma questão de perspectiva.

Liam Cunningham, por seu lado, parecia ainda a meio de um ensaio de personagem. Talvez tenha pensado que ainda estava nas filmagens de Game of Thrones, onde se distingue claramente quem são os vilões e os heróis. No Médio Oriente, infelizmente, não há argumento da HBO que salve. E muito menos um bote com meia dúzia de celebridades e um saco de lentilhas.

Não se trata de minimizar o sofrimento da população palestiniana. Trata-se de chamar as coisas pelos nomes. A tal "ajuda humanitária" era um cavalo de Troia flutuante. O verdadeiro objetivo não era alimentar ninguém, mas sim furar o bloqueio naval israelita — um bloqueio que, goste-se ou não, existe porque o Hamas tem a mania de usar cimento para fazer túneis em vez de escolas, e foguetes em vez de hospitais. Esta flotilha, como tantas outras, não pretendia aliviar nada. Pretendia provocar, filmar, publicar e acumular capital simbólico. Porque o que realmente alimenta estes ativistas de elite não são os grãos de arroz — são os likes, as entrevistas, os convites para conferências e os abraços públicos da moralidade fácil.

No final, todos voltam para casa: bem penteados, com as selfies já editadas, e prontos para a próxima indignação de boutique. Gaza continua em ruínas. Israel continua sob ameaça. E nós, espectadores deste teatro flutuante, somos convidados a aplaudir mais uma peça de um guião escrito por gente que confunde o Mediterrâneo com o palco de um festival de verão com a Greta faltando às aulas sem que os pais dela sejam responsabilizados.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Fraude com perfume de cultura zero. Uma traição silenciosa aos filhos dos pobres



É difícil compreender os políticos de Cabo Verde. Tiveram, em determinado momento da história, a oportunidade de escolher um caminho racional e benéfico para o país: a autonomia dentro da República Portuguesa, à semelhança da Madeira e dos Açores. Com isso, teriam mantido os benefícios de uma ligação histórica e cultural profunda com Portugal, assegurado desenvolvimento sustentado e preservado a centralidade da língua portuguesa na educação e na vida pública. Mas não. Em vez disso, escolheram o populismo ideológico e optaram por uma ligação artificial com a Guiné, em nome de uma africanidade de palanque que, até hoje, não gerou outra coisa senão atraso. Livraram-se de Portugal formalmente, mas continuam a depender dele em praticamente tudo: educação, saúde, comércio, migrações, telecomunicações, segurança. E isso não é autonomia — é apenas pobreza orgulhosa.

É como aquele pobre que recusa o prato de batata e repolho, dizendo que só come lagosta. Fica com fome, mas mantém o ar de superioridade. E, assim, o país que poderia estar ombro a ombro com regiões ultraperiféricas da Europa, vive hoje num limbo identitário e linguístico — fingindo ser o que não é, enquanto despreza aquilo que verdadeiramente é.

No meio desse delírio nacionalista deslocado, aparece mais uma peça do teatro da decadência: a introdução do crioulo nas escolas, sob o disfarce de resgate cultural. José Maria Neves, no papel de intelectual iluminado, tem liderado essa ofensiva. Aos poucos, sorrateiramente, começa a infiltrar o crioulo no sistema educativo, alinhado com os notáveis de Santa Catarina e com uma certa elite académica de poleiro.

E o que faz o MpD? Em vez de resistir, adere. O governo de Ulisses Correia e Silva, que tanto falou em reformas, mérito e modernização, acabou por aprovar a introdução experimental do crioulo nas escolas. A mesma cartilha, o mesmo populismo linguístico disfarçado de justiça social. É o nivelamento por baixo institucionalizado. José Maria Neves, Ulisses, deputados — são todos iguais. Com discursos diferentes, mas resultados idênticos: o abandono da excelência em nome da mediocridade generalizada.

Para aumentar Hipocrisia presidencial e intelectuais de papelão o ruído, agora veio do ex-presidente Jorge Carlos Fonseca a aparecer na imprensa (entrevista recentemente publicada), dizendo que os cabo-verdianos “maltratam a língua portuguesa”. Inacreditável. O mesmo Jorge Carlos Fonseca que passou anos no poder, calado, omisso, sem uma única iniciativa relevante para proteger ou promover a língua portuguesa em Cabo Verde. Agora, que está fora do cargo, resolve fazer discursos moralistas — como se não tivesse responsabilidade nenhuma no estado atual das coisas. Mais surpreendente ainda foi ouvir Germano Almeida — respeitado autor, vencedor do Prémio Camões — dizer que os cabo-verdianos precisam aprender português ”melhor que os portugueses”. A frase, de início, parece sensata. Afinal, é verdade: dominar o português com profundidade é crucial. Mas quando empacotada com ares de superioridade, acaba por soar arrogante e deslocada. Como se a nossa missão fosse uma espécie de revanche cultural. Germano, com todo o respeito: não há competição aqui. Há sobrevivência. Há pragmatismo. E há necessidade. Julgo que concordas comigo. 

A petralhada linguística que o Neves sustenta, representa o que há de mais perigoso para o futuro de Cabo Verde: um nacionalismo barato, baseado em ressentimento, que recusa tudo o que vem de fora — mesmo quando nos é útil. Essa esquerda deslumbrada, carregada de chavões pós-coloniais, quer construir uma identidade nacional sobre ruínas e mitos. E para isso, despreza a língua portuguesa — o único elo real com o mundo académico, diplomático, económico e cultural.

Querem impor o crioulo como língua de ensino, mas não têm gramática consensual, ortografia funcional, nem sequer professores capacitados para isso. É um projeto de vaidade. Um luxo caro que só servirá para criar uma geração ainda mais isolada, ainda mais limitada, burra e mais presa ao gueto linguístico. É uma agenda ideológica, e não pedagógica. É uma fraude com perfume de cultura zero.

Promover o crioulo como língua de ensino é, além de tudo, uma mentira com roupa de inclusão. Os defensores desta medida gostam de dizer que “ensinar em crioulo facilita o aprendizado”, “resgata a identidade” e “aproxima a escola da realidade do aluno”. Tudo conversa fiada. A realidade é que nenhum país do mundo se desenvolveu com base numa língua que não tenha expressão científica, diplomática ou económica global. Nenhum. E não será Cabo Verde a exceção.


O crioulo é, sim, uma parte fundamental da identidade cabo-verdiana. É língua materna, é cultura, é música, é oralidade rica e viva. Não é uma língua preparada para ser veículo de ensino científico em larga escala. E pior: a tentativa de padronizar o crioulo acaba por criar uma artificialidade forçada, afastando-o da realidade local. O crioulo de Santiago não é o de São Vicente, que não é o de Santo Antão. E, ainda assim, querem enfiar um crioulo "unificado" nas escolas como se fosse natural, como se fosse espontâneo.

É isso que chamam de progresso? Isso é engenharia social mal disfarçada. É ideologia linguística em estado bruto. É o tipo de disparate que destrói um sistema educativo em nome de bandeiras políticas. 

A defesa da língua portuguesa em Cabo Verde não é uma defesa colonial, nem uma traição identitária — é uma escolha pragmática, racional e urgente. O português é a língua oficial do país, é a língua das leis, dos tribunais, da diplomacia, da ciência, da literatura, do ensino universitário. É também uma das línguas mais faladas do mundo, com mais de 260 milhões de falantes. É língua oficial em organizações internacionais como a ONU, a CPLP, a União Africana, e outras instituições de impacto global.


Negar o português é negar o acesso do jovem cabo-verdiano ao mundo. É condená-lo ao isolamento, à limitação, ao mercado interno estreito e sem poder de competição. Um jovem que fala e escreve português com excelência pode trabalhar em Lisboa, Luanda, Maputo, Brasília, e até mesmo em empresas internacionais em África, na Europa ou na América Latina. Um jovem que sabe apenas o crioulo — ainda que o fale com perfeição — está preso à ilha, ao bairro, à parede da escola que o enganou.


Portanto, ensinar português com rigor, exigência e profundidade é uma questão de soberania educativa. É a única forma de garantir que os filhos dos pobres tenham as mesmas oportunidades que os filhos da elite que estuda no estrangeiro. Essa conversa mole de “valorizar o crioulo” é usada por muitos políticos que metem os próprios filhos em escolas internacionais. Hipocrisia pura. Querem que o povo fique no crioulo, enquanto os deles aprendem inglês, francês e português com gramática britânica. Tenham vergonha.

O que está em jogo nesta discussão não é apenas uma escolha linguística — é o futuro de uma nação. É a direção que Cabo Verde quer tomar: ou abraça a excelência, a exigência e o rigor, ou afunda no populismo linguístico que cultiva a mediocridade como se fosse um valor.

Se se quiser um país competitivo, com uma juventude capaz de disputar espaço em universidades, empresas e organismos internacionais, temos de garantir uma educação centrada numa língua forte, estruturada e global. Isso não significa negar o crioulo — significa saber colocá-lo no lugar que ele deve ocupar: como língua complementar, cultural, afetiva. Não como língua principal de ensino.

Ao empurrar o crioulo para o centro do sistema educativo, estamos a condenar as novas gerações a uma escolarização deficiente, incapaz de dialogar com os grandes debates do mundo. E isso é imperdoável.

O mais grave é que tudo isso está a ser feito com a conivência de todos os partidos, todos os presidentes, todos os intelectuais. Poucos têm coragem de ir contra a maré, de dizer o óbvio: a introdução do crioulo nas escolas como língua de ensino é um erro monumental. Uma irresponsabilidade histórica. Uma traição silenciosa aos filhos dos pobres.

É tempo de levantar a voz contra essa trapaça. É tempo de exigir uma política linguística séria, consequente, realista. Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de brincar com o idioma. O país é pequeno, os recursos são poucos, e as oportunidades são limitadas. O português é a nossa maior ferramenta de emancipação — intelectual, económica e política.

Quem despreza isso em nome de modismos ideológicos está, na verdade, a empurrar o povo para a escuridão. E contra isso, não basta indignar-se. É preciso lutar.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com


sábado, 3 de maio de 2025

Voto meu nem pensar



Quando Passos Coelho mandou o Estado parar de pagar o que devia às empresas tivemos de fechar portas, por isso eu quero que o Passos se dane, ele toda a família dele. Segundo ele, os jovens eram piegas, deveriam mas era emigrar. E os putos foram mesmo embora. Fui testemunha das falcatruas do Sócrates, do BES, da Portugal Telecom. Usurparam o projecto da Rede Escolar que meia dúzia de gajos — eu incluído — idealizámos. Roubaram-no com a ajuda de boys da PT e de administradores do BES. Hoje, nas escolas, ainda existe o que nós fizemos, mas ninguém sabe o preço que pagámos. Por isso inferno com eles!

Conheci empresas que se enterraram à conta das loucuras do Sócrates e da austeridade cega do Passos. Vi, eu vi o IVA a trepar o Everest. Chegou aos 23%. E depois, para descer, é uma eternidade. Já o preço da gasolina é uma palhaçada: devia estar a 0,86€, está ao dobro. Porque o Estado mama. Porque não há vergonha. E ainda têm a lata de dizer que é por causa da transição energética, enquanto nos cobram taxa disto, imposto daquilo, e metem biocombustível pelo meio que ninguém pediu.  Eu sei que uma garrafa de água custa quase tanto como um litro de gasolina. A água só foi engarrafada, mais nada. E o plástico agora é pecado. Mas foi esse plástico que nos salvou na pandemia, que embala vacinas, comida, tudo. Agora querem proibir palhinhas e copos, como se isso resolvesse alguma coisa.  

Vi o Serviço Nacional de Saúde a ser desfeito por dentro. Não foi de repente — foi aos bocadinhos. Vieram estrangeiros gerir hospitais como se fossem supermercados, fecharam maternidades. Partos feitos em ambulâncias. Consultas marcadas com meses de espera e  os políticos a prometer mais meios,  sempre mais meios, nunca soluções.  Vi partidos a nascer como cogumelos, da extrema-esquerda ao radicalismo da direita. Todos iguais, todos a mamar os 3,5€ por voto. Um negócio como outro qualquer. Eles ganham sempre. Nós é que pagamos. Por isso, desta vez, não dou 3,50€ a ninguém!  Vi a utopia do Bloco, do Livre, do PCP, do PS, do PSD, dos Liberais e do Ventura. Prometeram tudo. Cumpriram nada. Tudo farinha do mesmo saco. Vi professores a darem o litro, e a ganharem como um jardineiro. Vi professores com 20 anos de carreira, sem progressões. Alguns a serem insultados, outros a serem agredidos por alunos ou por pais.  

Vi dirigentes sindicais que falam muito e fazem pouco. Vi o Mário Nogueira a eternizar-se no cargo. Trabalhou 11 anos no ensino — depois disso, palco e microfone — e vai reformar-se com ele todo no bolso. E agora temos 18 sindicatos. Mais sindicatos do que soluções. E os professores? Continuam a perder. E os alunos? Cada vez mais burros, porque o sistema falhou.  Conheço malta a receber pensões maiores que o salário mínimo sem nunca terem feito nada. Nunca trabalharam, nunca descontaram. E recebem. Quem pagou? Foste tu. Fui eu. Fomos nós.  

Vejo agarrados ao tacho, governantes que eram directores de empresas que faliram, agora a mandarem no país. Vi malas roubadas nos aeroportos por gente com assento no parlamento. Vi pedófilos com assento no parlamento, assembleias municipais, gays ministros, lésbicas deputadas e criminosos em cargos públicos. Vi gente sem moral a dar lições de ética. Vi homens travestidos de mulher a querer competir no desporto feminino. E vi gente a tomar-nos por estúpidos com essa treta da igualdade de género e do aquecimento global e agora calados com as chuvas e eu que me foda a cortar ervas. Vi a justiça politizada. Procuradores que se julgam governantes. Juízes que querem ser estrelas de televisão. Políticos que anunciam que vão derrubar governos sem sequer pensar que isso custa muito dinheiro e vai contra a decisão do povo.  Vejo que estamos todos lixados com essa gente.  

Vejo o país cheio de imigrantes. Muitos bons, a trabalhar. Mas muitos outros a chegar sem regras, sem respeito. Ninguém lhes diz: “entra, mas aprende que aqui há regras, há valores”. Portugal não é a Índia, não é o Bangladesh, não é África. Portugal é Portugal. E por culpa das esquerdas, que têm medo de dizer a verdade, o país virou um centro multicultural sem cultura nenhuma. Uma bandalheira por completo.  O Martim Moniz é hoje uma mesquita a céu aberto. Ninguém tem coragem de pôr ordem naquilo. As autoridades não deixaram que a malta assasse um porco no espeto no Martim Moniz porque isso fere a crença religiosa dos muçulmanos. Foi aonde isto chegou.  Vi gente de bairros das minorias a darem porrada na polícia e, quando levam o troco a sério, vem a família e toda a esquerda condenar a polícia e pedir indemnização para a família do infractor. É assim que se enriquece licitamente em Portugal. O Estado patrocina o gueto e depois dá preferência aos benefícios sociais ao pessoal do gueto — os tais que se auto-excluíram da sociedade.  

Vi há quarenta anos o Estado a dar tudo a certas comunidades. Casas, educação, subsídios. Hoje, grande parte desses, continua à margem, com mais direitos do que deveres. E quem critica, é racista. Exactamente o que estão a pensar de mim neste momento. Vi presidentes de câmara a governarem autarquias como se fossem feudos privados. Empregam a família, contratam amigos. Fazem rotundas, festas e estátuas. Tudo para parecer que fazem alguma coisa. Mas nada muda.  

Vi polícias desmotivados, sem meios. Vi médicos que desistiram. Enfermeiros que fugiram para fora. Vi militares tratados como lixo. Vi o que um país tem de melhor a ser extinto: o Serviço militar obrigatório, “fonte do nacionalismo” e, com ele, centenas de empresas desapareceram. Qualquer país que vier cá é capaz de nos apanhar com beijos. Isso só não acontecerá por causa da NATO.  

Vi jovens a emigrar porque aqui não há esperança nenhuma.  

Vi os bancos a serem salvos com o nosso dinheiro. E depois os mesmos bancos a despejarem famílias das suas casas.

Vi gente honesta a perder tudo. E ladrões a subirem na vida.  

Enquanto escrevo, tenho o jogo do Benfica prestes a começar. De fundo a voz do locutor: 

- “Di Maria  blablabla o melhor jogador da História” 

Não tenho dúvida nenhuma, Portugal está perdido.

Foto: Feira Medieval EB 2,3 Alfrefo da Silva - Tabaqueira. Porco assado no espeto e eu servia as sandes. Nessa data os muçulmanos em Portugal falavam baixinho.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 28 de abril de 2025

É feio cuspir no prato onde comeu


Há muitos anos, esse senhor — hoje tão cheio de si — tentou tramar-me por causa de uma bolada nas partes que lhe dei, mas nem nisso teve talento. Eu era apenas um garoto indefeso; ele já sonhava em ser alguém e achou que eu seria o seu trampolim. Mas deu-se mal. Ou melhor, alguém lhe disse não.  

Hoje, é uma verdadeira tortura ouvi-lo doutrinar os portugueses, debitando sentenças com a pose de um general de província russa, esquecendo-se — ou fingindo esquecer — que construiu toda a sua vida à sombra da NATO, essa mesma aliança que agora renega com a habilidade oportunista de quem cospe no prato onde comeu.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

Crónica XIV - dedicado aos dois caramelos da foto. Ribeiro e Estratega


As voltas que a vida dá 

Nasci em Cabo Verde, mas cedo me vi no Continente. Fui parar à Casa do Gaiato, instituição religiosa onde reconheço ter tido sorte. Poucos ali entravam, os critérios eram exigentes: preferência aos casos mais bicudos. Um mestre-de-obras, o Sr. Teotónio, disse alto na quinta que eu era um miúdo esperto — e foi essa opinião que me abriu a porta.  

Entrei para a galeria de estudo. Tinha sonhos definidos, mas mutáveis: primeiro quis ser taxista, só pelo prazer de conhecer as ruas de Lisboa; depois médico, para endireitar os dentes que trazia maltratados de Cabo Verde; por fim engenheiro, para consertar os rádios velhos que se empilhavam ao lado da sala dos estudantes.

Cumpri os estudos e fui para a tropa. Treze anos. Longos, duros, quase todos difíceis. E, num ápice, estava fora da vida militar. Um acidente encerrou esse capítulo.  

Saí e regressei aos bancos da escola. Voltei ao princípio, como tantos. E, com esforço, tornei-me aquilo que em criança desejei: engenheiro. Consegui entrar numa multinacional. Um recomeço completo: a vida civil não tem paralelo com a vida de caserna.  

Reaprendi a estar no mundo. E também deixei de acreditar em Deus. Na Casa do Gaiato, impuseram-nos Deus à força: terços, missas, sermões infindáveis — muitas vezes ofensivos para com os nossos pais. Nunca nos deixaram procurar Deus, apenas engolir a versão deles. E assim me fiz ateu. Sem dramas.

Tive tudo o que um homem ambiciona: uma companheira, um trabalho relevante, a honra de lidar com tecnologia de ponta — aeroportos, comboios, redes eléctricas, escolas. Estive no centro do furacão que foi o surgimento dos cartões magnéticos escolares. Trabalhei com a Universidade de Aveiro e com a Católica. E, sim, por lá, pratiquei pequenos furtos — as bicas do professor Marcelo, que eu rapinava com método e sem arrependimento.

Houve resistência. Longas sessões com “professores”, os velhos do Restelo e pais desconfiados, para os convencer da utilidade da inovação. Mas o melhor foram sempre os alunos. Jovens entre os doze e os dezoito. Muitos, hoje adultos, reconhecem-me na rua e fazem questão de parar.  

Houve percalços. Um dia estacionei, por engano, no lugar do professor Cavaco Silva. Bastaram cinco minutos para o caos.  

Mas eu vinha de outro mundo. Só conhecia a tropa, onde se vivia de boatos e silêncios. O mundo cá fora exigia outro tipo de aprendizagem.  

Apesar de tudo, fui subindo. Cheguei a cargo de chefia. Nunca sonhei com isso. O cargo obrigou-me a crescer — a escutar, a pensar antes de falar. A dar espaço.  

A minha ambição ficou ali. A minha vontade esmoreceu. Trabalhar no mundo da automação foi um cansaço tremendo, mas também um prazer raro. Fiz o que sonhei. Poucos podem dizê-lo com verdade.  

Quando percebi que estava cansado de debates inúteis entre políticos franceses, espanhóis, italianos e portugueses, deixei o projecto europeu de energia. Senti que era altura de sair. Dei o lugar a outros.

Hoje, a minha vida é outra. Trato do cão Boris, do bode Chico, da gata Indy. O tempo passa devagar enquanto organizo um romance — sem pressas. A lida é com caracóis e ervas daninhas, com a análise da água do furo e o acender da churrasqueira, e cuidar para a barriga não crescer.  

As guitarras esperam. Já quase nem lhes toco. Por aqui, a música é coisa de profissão para a rapaziada que toca, e eu só a queria tocar por gosto e sem remuneração. Tentei fazer uma banda, mas ninguém quer tocar pelo prazer de tocar.  

É assim. Vivo assim, um dia de cada vez.  

Os caracóis sobem pelas paredes à velocidade da luz. E eu deito-os abaixo à velocidade da luz. E as ervas, que teimam… Mas aviso: não desisto. E também não desisto da amizade destes dois caramelos amigos há mais de 45 anos. Encontrámo-nos em Fátima na Quinta do Casalinho Farto, pela ocasião do Almoço da BOTP1 que o Serrano Rosa registou.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sábado, 19 de abril de 2025

Eu, a minha rua e o Hospital do Oeste – tragédia em vários actos e nenhuma obra

Mudei-me da Ericeira para o Bombarral. Forçado, é certo, mas de olho na paz e na tranquilidade, cedi à expressa vontade da minha mulher: - Bombarral vai ser bom e até vai haver um hospital e tudo. O tal Hospital do Oeste, de que tanto se fala. Dizia-me ela que o hospital estava quase, a caminho, já ali no horizonte. Sonhara com a cerimónia de inauguração e da cortagem da fita. Mal sabia eu que a única fita a ser cortada era a da minha paciência. O Hospital do Oeste é como o Pai Natal da saúde pública: toda a gente fala dele, mas nunca ninguém o viu. Afinal, o hospital prometido há décadas continua exactamente como a minha rua: no papel. E mesmo no papel os políticos aparecem de X em X anos com uma maqueta, umas imagens de PowerPoint e aquele olhar brilhante de quem viu a luz… de um flash. É sempre a mesma lengalenga: - Estamos em fase de estudo, está tudo planeado, é uma prioridade do Governo. Sim, prioridade… daquelas que se guardam na gaveta entre a reforma da justiça e a solução para o SNS.

Ora, a minha rua também está em estudo. Estuda-se há mais de um ano um poste de luz à entrada do meu portão. Uma epopeia digna de Homero. Enviei um e-mail à Câmara, cheio de vírgulas bem posicionadas, a pedir duas coisinhas modestas: um ponto de luz e um bocadinho de asfalto. Ou então, se não fosse pedir demais, que tapassem os buracos — só o suficiente para não tropeçar na escuridão ou afundar num deles quando levo o lixo.

E não é que me responderam? Uma raridade quase arqueológica. Responderam, sim senhor. O e-mail dizia:  Tomámos nota do seu pedido, o que muito agradecemos, blá blá blá, e encaminhámos o assunto do poste para o Departamento da Iluminação Pública — que, pelo nome, imagino estar sediado numa nave espacial algures em Saturno. Quanto à estrada, a resposta foi ainda mais poética:  Sobre a estrada que serve a sua rua, deverá dirigir-se à junta de freguesia, porque temos um protocolo firmado com a Junta para tapar buracos.  Traduzido entendi: essa coisa não é connosco! Encaminharam tudo como se estivéssemos a jogar pingue-pongue com responsabilidades — e eu, no meio, sou a bolinha. Mas, segundo o Presidente da Câmara, homem afável e cheio de convicções, o Bombarral é uma coisa de outro mundo: -  Câmara responde sempre, está ao serviço do povo. O problema é que, pelos vistos, eu não sou povo. Estou fora dessa definição. Talvez seja subpovo. Ou um figurante não creditado na novela bombarralense.

Ontem fui ao espelho, pus-me em cima da balança, para tentar perceber o que em mim está a falhar. O que vi meteu medo. O peso foi um deles: umas partes do corpo a crescer, outras a encolher — uma tragédia. O encolhimento… Olhei-me bem, de frente, de lado e de perfil. Lembrei-me do NIF, consultei o cartão de cidadão e, rapidamente, pareceu-me que estava tudo em ordem. Mas não. Não sou povo coisa nenhuma. Porque se fosse, a rua já estava com os buracos tapados e o poste aceso, porque se fosse, a Câmara já me tinha respondido com acção — não com e-mails genéricos.

E é aqui que percebo a semelhança assustadora entre o meu processo e o do Hospital do Oeste. Ambos partem da promessa e estacionam no vazio. Ambos envolvem estudos que nunca acabam, prazos que ninguém cumpre, prioridades que ninguém respeita. Ambos são empurrados ano após ano, governo após governo, com uma habilidade que faria inveja ao maior mentiroso do mundo Sr Abrie Krueger. O hospital e a minha rua são irmãos gémeos separados à nascença por falta de orçamento e pela paixão nacional por adiar. O hospital está quase-quase desde 2009. A minha rua também. E ambos têm algo em comum: são o espelho da gestão pública no seu estado mais puro — onde se diz muito e se faz pouco, onde se planeia tudo e se executa nada. O que me assusta não é a espera. É a mentira disfarçada de esperança. É a pose de serviço público que esconde o desleixo privado. É ver que se gastam milhões em estudos, em projectos, em cerimónias, e no fim… nem hospital, nem poste, nem estrada.Talvez o hospital esteja a ser construído na mesma fábrica onde produzem respostas da Câmara — aquela fábrica de promessas recicladas. Ou então está em alto mar, numa arca flutuante cheia de intenções, à deriva desde que alguém achou boa ideia prometer saúde sem ter capacidade para a entregar.

E há uma beleza trágica nisto tudo. O presidente da Câmara garante que o Bombarral é coisa de outro mundo. E tem razão. Porque neste mundo, quando se promete um hospital, normalmente constrói-se. Neste mundo, quando se pede um poste, instala-se. Quando se escreve uma carta, responde-se com algo que realmente se vá fazer. Mas no Bombarral vive-se num universo paralelo onde o tempo anda ao contrário e os pedidos da população evaporam-se no ar — provavelmente junto ao orçamento participativo. Fico a pensar: será que o hospital vai chegar antes do poste? Será que a minha rua vai ser asfaltada antes de eu precisar do hospital? Ou será que primeiro morro de um entorse nas crateras da minha rua e só aí, por respeito póstumo, me asfaltam o funeral? E, por fim, deixo uma sugestão. Já que o hospital e a Câmara andam no mesmo passo de caracol sonolento, proponho juntar os dois projectos. Que tal fazer o hospital na minha rua? Assim matam dois coelhos de uma vez: aproveitam a terra batida como ala ortopédica e o poste de luz pode servir de sala de espera. Eu até deixo espaço para uma maca no quintal. Afinal, sonhar é grátis. E, ao que parece, no Bombarral, é o que se faz melhor: sonhar…

Nota de rodapé: num jantar da alta sociedade da região Oeste, soube que a minha estrada nunca será asfaltada porque é considerada zona agrícola.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

Crónica XIII - dedicado à minha morte 19abril25 - Discurso antes da cremação


 É verdade, estou morto. Podem confirmar. Não respiro, não me mexo, e — finalmente — não falo. Para muitos, uma bênção tardia. Há quem diga que morri em paz. Mentira. Morri como vivi: com cara de quem não deve, mas teme.  Passei por cá para um último momento de protagonismo. Não porque me importo, mas porque sei que isto de morrer é um evento social. E como tudo que é social, está cheio de hipócritas, curiosos e só não vieram as tias porque nunca tive tias. Mas desenganem-se os que acham que um morto é inútil. Errado. Em vida também fui bastante inútil. Fiz pouco, quase tudo mal, e o que fiz de bom foi por engano. Fui-me arrastando pela vida como quem vai ao ginásio só para usar a sauna. E ainda assim, consegui deixar mágoas, e muitas dúvidas a muita gente - que se lixem — morto já não sou um presente envenenado e isso é porreiro.

Agora que o corpo já não serve para nada, dou-o de presente à cremação. Que façam bom lume, que aqueça pelo menos o ar frio da sala. Não me verão em caixão aberto — já bastou a minha cara em vida. E se por acaso alguém soltar uma lágrima, que seja de riso. Porque se há coisa que eu odiava, era gente a chorar em público. Aos que vieram, bem-vindos. Aos que não vieram, parabéns pelo bom gosto que tiveram. Sei que há aqui uns quantos que gostavam de mim, ou pelo menos fingiam bem. Também sei que há dois ou três canalhas que só estão cá para confirmar que não volto mais. Fiquem descansados: a única coisa que levanto agora é fumo. Vivi sem fé, sem rumo, e com uma confiança que não sei de onde vinha. Nunca acreditei em Deus — nem sequer quando me deu jeito. Fui pecador de carreira, sem confessionário, sem perdão. E sabem que mais? Fui feliz assim. Entre copos e vida nocturna. Fui homem de muitas mulheres — não porque fosse especial, mas porque tive o dom raro de dizer “amo-te” sem me rir. Cada uma guardou o que quis de mim: umas o cheiro, outras a desilusão. Mas nunca, nunca me esqueci de nenhuma delas, nem dos nomes.  

Honesto, sempre fui. Disse sempre que não prestava. Não enganei ninguém — só quem quis ser enganado. Nunca fiz juras eternas, porque sempre achei que o “para sempre” dura pouco.  Tinha jeito para o engate e zero talento para manter. Mas vá, cada um faz o que pode com as armas que tem. Eu jogava com o charme e conversa fiada, tipo vendedor de colchas na feira da Malveira. E resultava… às vezes era uma tragédia.


Não deixo fortuna, deixo histórias em prosas. Algumas mais sujas que a consciência de um político em campanha. Deixo também as minhas guitarras cheias de pó, de sarro de tabaco, de pecados, e uns papéis velhos que ninguém vai querer ler — talvez um ou outro poema maldito, escrito entre trago de whisky e noites de insónia. E sim, deixo-vos o meu corpo. Não porque quero, mas porque não tenho outro remédio. Portanto fogo com ele! As chamas que me devorem como a morte apagou os meus neurónios. Mas não esperem cinzas poéticas, nem espírito a pairar. Se for para voltar, que seja em forma de penico: pelo menos ainda terei alguma utilidade. Se estão aqui hoje, riam. Riam como eu ria das minhas próprias desgraças. Este velório não é missa de sétimo dia, é despedida de um malandro. E que malandro! Um malandro que se preze não se leva a sério — nem morto. Por isso, falem mal de mim à vontade. Mas falem com estilo. Que eu cá prefiro ser lembrado como o cabrão que fez rir, do que como o coitadinho que se foi cremar triste e sozinho. E quando tudo isto acabar, e as cinzas forem pó no vento ou num frasco qualquer, pensem em mim como alguém que viveu do avesso — e ainda assim teve a lata de ser feliz.

Agora sim, podem acender o forno. E por favor, que não seja a gás… que sempre fui mais homem de carvão.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Portugal paga para eles mandarem foder o português.


 Aposto que poucos portugueses sabem disto. Mas calma, não precisam de me chamar teórico da conspiração – para evitar confusões, incluo as fontes directas. Assim, qualquer pardal que apareça com conversa fiada tem onde ir confirmar.  Ora bem, Portugal comprometeu-se a despejar 95 milhões de euros em Cabo Verde ao longo do Programa Estratégico de Cooperação (PEC) 2022-2026. O pacote cobre setores como educação, saúde, segurança, economia e infraestruturas conforme link que se segue. [oai_citation:1,Portugal e Cabo Verde assinam novo plano de cooperação até 2026](https://culturaportugal.gov.pt/pt/saber/2022/03/portugal-e-cabo-verde-assinam-novo-plano-de-cooperacao-ate-2026/). Muito bonito no papel. Mas na prática, parece que o dinheiro tem sido usado para empurrar o “crioulo” para dentro das escolas e mandar o português borda fora. Sim, aquele mesmo português que abriu a Cabo Verde as portas do mundo e que continua a ser a língua oficial do país.  Claro que isto não é novidade. Há anos que certos círculos tentam empurrar a ideia de que o português é um corpo estranho em Cabo Verde e que a verdadeira identidade do arquipélago passa pelo crioulo. Mas agora a questão é outra: quem é que está a pagar esta transição? Ora, ao que parece, somos nós.  

Portugal, sempre magnânimo, ainda perdoou 12 milhões de euros da dívida cabo-verdiana, convertendo o valor num fundo para a “transição climática” conforme o link que se segue [oai_citation:2,Portugal apoia transição ambiental e energética de Cabo Verde - XXIII Governo - República Portuguesa](https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i=portugal-apoia-transicao-ambiental-e-energetica-de-cabo-verde). Se Cabo Verde depois decide investir essa folga orçamental na promoção do crioulo e na desvalorização do português, problema deles – mas pago com o nosso dinheiro. E há mais: em 2022, Portugal ainda transferiu 580 mil euros de apoio humanitário, mais 500 mil euros de reforço ao Orçamento do Estado cabo-verdiano [oai_citation:3,Governo português disponibiliza mais de 580 mil euros em apoio humanitário para Cabo Verde - XXIII Governo - República Portuguesa](https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i=governo-portugues-disponibiliza-mais-de-580-mil-euros-em-apoio-humanitario-para-cabo-verde).  

Agora, aqui entra a ironia: Portugal despeja dinheiro em Cabo Verde e, em troca, recebe um grande pontapé na língua portuguesa. Os miúdos aprendem crioulo na escola, mas quando querem prosseguir estudos vêm para Portugal, onde entram nas faculdades sem exames ou testes de admissão. Chegam cá e… surpresa! Não sabem falar português, não sabem escrever português, e não entendem nada de nada. Mas passam, porque ninguém quer tocar no vespeiro da “cooperação” e da “inclusão”. Depois regressam ao arquipélago para continuar a mesma política: promover o crioulo para os filhos dos pobres.  É caso para perguntar: Portugal está a financiar a cooperação ou a própria irrelevância da sua língua num dos seus parceiros históricos? No fundo, Cabo Verde faz o que quer – e Portugal paga.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

A mesma vida noutro tempo.

“Tenho saudades dos tempos em que, no Liceu, havia os burros, os gordos, os caixas de óculos, os sonsinhos, os pretos, os chineses, o indiano, o artolas, os maricas e os lingrinhas. Os burros chumbavam, não se tornavam doutores como hoje em dia. A fasquia era definida pelo marrão da turma, não era nivelada por baixo, como agora, com essa merda de que somos todos iguais – diz-se.  Antes, não parecia que fôssemos iguais. O gordo também tinha notas brutais e ninguém sabia como; talvez porque o gajo não jogava à bola. O caixa de óculos tinha um sentido de humor inigualável, mas não fazia corridas – o gajo tinha medo de cair. O preto jogava à bola como ninguém e fazia umas fintas dos diabos; tinha um cabedal do caraças, fora do comum. O chinês tinha vindo de outra escola, sabia à brava inglês e tinha histórias que não lembrava a ninguém.  Cada um tinha um defeito – eu, por exemplo, era conhecido por "crioula". Sempre que chamavam "crioula", havia batatada. Não gostava de ser comparado às bonitonas crioulas. Lutei até que se esqueceram dessa alcunha. Ter uma alcunha diferente era fixe. A diferença era vista com bons olhos. Agora, tudo ou é bullying, ou racismo, ou xenofobia, ou opressão, ou assédio, ou violência.  

Antigamente, quando se era mesmo racista, levava-se um chapadão na tromba e aprendia-se logo que o preto era como os outros – apenas tinha cor diferente. E não era bullying. Era viver e aprender. Era duro. Às vezes, em casa também se aprendia à chapada.  O menino insosso passava despercebido e sentia-se sozinho. E aprendíamos uma coisa importante: a rir-nos de nós próprios – não a chorar porque alguém nos chamou nomes. Assumia-se a gordura, o esquelético, o caixa de óculos e tudo o mais que nos chamassem. Mas quando não se estava bem, quando não se gostava da alcunha, fazia-se uma coisa importante: mudava-se, lutava-se por acabar com ela. Não se culpavam os outros nem a sociedade. Não se faziam queixinhas. E falhava-se. Muitas vezes. E, cada vez que falhávamos, ficávamos mais fortes. E sabíamos que era assim. Que havia uns que conseguiam, outros que ficavam para trás. Que havia quem vencia e quem falhava.  Agora, não… Todos somos iguais. Há mesmo a chamada igualdade de género. Todos somos bons, todos merecemos, todos temos as mesmas oportunidades, todos devemos até ganhar o mesmo, todos somos vítimas, todos somos oprimidos… e todos somos parvos. Porque aceitamos este ambiente do politicamente correto sem dizer nada. E até devemos dizer que somos "normais". Segundo o novo paradigma social, devem ter muito cuidado comigo, porque:  

– Sou velho, tenho mais de 65 anos, o que faz de mim um tolo improdutivo que gasta estupidamente os recursos do Estado.  

– Nasci mulato, o que me tornou um coitado, vítima das merdas dos brancos, dos pretos e dos amarelos.  

– Não voto na esquerda radical, o que me torna fascista.  

– Sou hétero, o que me torna um homofóbico.  

– Possuo casa própria, o que me tornou um proprietário rico e, agora, um latifundiário.  

– Adoto “foie gras” carne de caça, peixe do mar e cordeiro de leite, o que me torna um abusador de animais.  

– Sou cristão não praticante, sou um infiel aos olhos de milhões de muçulmanos.  

– Não concordo com tudo o que o Governo faz, o que me torna um reacionário, e até acham que me devo calar.  

– Gosto de ver mulheres bonitas, bem vestidas (ou despidas), ou superdecotadas, o que me torna um tipo capaz de assediar.  

– Valorizo a minha identidade portuguesa e a minha cultura europeia e ocidental, o que me torna um xenófobo.  

– Gostaria de viver em segurança e ver os infratores na prisão, o que me torna um desrespeitador dos direitos fundamentais protegidos.  

– O meu carro é a diesel, o que me torna um poluidor, responsável pelo aumento de CO₂.  Apesar de todos estes defeitos, acho que ainda sou feliz… Era mais, antes da pandemia. Aquela cena das vacinas lixou-me completamente a imunidade. Agora sofro com uma coisa que os entendidos chamam doença autoimune.  

Todos os dias engulo uns comprimidos e a vida segue, sem as modernices do politicamente correto.”


olhosemlente.blogspot.com

quinta-feira, 27 de março de 2025

Alguém que ponha a mão naquilo depressa

 


José Rodrigues dos Santos demonstrou ser um jornaleiro, incapaz de exercer a sua profissão com imparcialidade e respeito pelo entrevistado, independentemente das suas posições políticas. No entanto, a sua conduta na entrevista ao secretário-geral do PCP demonstrou ser a de um crápula que desvirtuou a essência do jornalismo sério e isento.  

A forma como conduziu a entrevista, revelando-se alguém que procurava descredibilizar o entrevistado, mostrou um profundo desrespeito pelo dever de informar com honestidade. O asqueroso jornaleiro fez da RTP um palco de confronto pessoal e um instrumento de manipulação política. Esqueceu-se de que nós, o público, já não somos totós, mas sim capazes de formar a nossa própria opinião com base em factos e não em distorções ou insinuações.  

Quando um jornalista se torna protagonista da entrevista e busca embaraçar o entrevistado em vez de esclarecer o público, compromete gravemente a sua credibilidade e a profissão que representa. O serviço público de informação merece mais do que espetáculos tendenciosos disfarçados de jornalismo. Como contribuinte da TV estatal, repudio tais práticas e exijo que alguém ponha mão naquilo, devolvendo à RTP o comprometimento com a ética e a responsabilidade.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sábado, 22 de março de 2025

O Silêncio cúmplice



O país está como está porque temos medo de falar medo de opinar, medo do desconforto que vem com a discordância. Temos medo das represálias, já não vivemos num regime onde uma palavra nos pode tramar, mas há outro medo, mais rasteiro: o de sermos olhados de lado pelos amigos, no café, no Facebook, e passarmos por chatos quando trazemos política para a conversa.  

Deixamos essa coisa da política para os políticos, e eles, espertos, tomaram conta do assunto. Fizeram-nos acreditar que política é um bicho perigoso, que só traz chatices. E, enquanto isso, foram levando a Europa para a guerra, vendendo a narrativa de que os russos são os maus, os palestinianos os bons e os israelitas os vilões. No meio do barulho, os militares, que antigamente se mantinham discretos, descobriram a reforma dourada dos debates políticos. Agora as televisões parecem um sanatório de generais. Só que eles não estão sozinhos. Os jornalistas também ajudam. Criam um facto, noticiam esse facto, lançam o alerta, debatem o facto, comentam o facto, recomendam o facto – e no fim fizeram de nós estúpidos.  

Sempre ouvi dizer, desde pequeno, que há três coisas que não se discutem: futebol, religião e política. Mas o futebol discute-se todos os dias, com paixão e sabedoria. Fala-se dos penáltis mal marcados, dos treinadores incompetentes, dos jogadores do SLB que não valem nada mas são vendidos a preço de ouro. A religião, essa, já ninguém quer saber – as igrejas só servem para sacar dinheiro aos crentes a troco de milagres que nunca chegam.  

Mas a política? Essa está de quarentena. É um tabu.  

Eu já fiz esse teste várias vezes: já escrevi sobre o governo, sobre a justiça, sobre os esquemas de sempre. Nada. Um deserto. Ninguém gosta, ninguém comenta. Mas o sistema de análises do blogue não mente: as pessoas passam por lá às centenas, às vezes aos milhares, espreitam, leem e saem de mansinho, como quem não quer ser visto num lugar suspeito ou em má companhia. Como se um simples ato de se manifestar fosse um risco.  

E isso dá um jeito danado a quem manda. Enquanto tivermos medo de falar, eles podem fazer o que quiserem. Podem mentir-nos na cara, que ninguém os desmente. Podem encher os bolsos à nossa custa, que ninguém protesta. Podem vender o país aos bocados, que ninguém quer saber.  

Talvez seja esse o maior truque da política portuguesa: fizeram-nos acreditar que a política é feia, suja, inútil. Que só os fanáticos e os interesseiros falam dela. O cidadão comum, esse deve manter-se calado, discreto, neutro – como se a neutralidade fosse uma virtude e não uma rendição.  Eles são os intocáveis. 

Do José Sócrates todos falam porque o tipo já está no chão. - Um dia, num parque de estacionamento na Ericeira, garantiu-me pessoalmente que é vítima de uma cabala.

E do Manuel Pinho? E do Costa que passou de bandido português a chefe da Europa. E do Luís Montenegro, que chegou a primeiro-ministro sem que ninguém desse grande conta, a não ser os amigos do costume, que o aplaudem porque o jogo do poder tem sempre os mesmos jogadores. Não foi eleito, não teve votos que lhe permitissem governar, mas lá esteve, sentado na cadeira de chefe. A gerir o país sem grande entusiasmo, sem sobressaltos, a exibir o seu ar de sobranceria e vaidade, enquanto recebia mensalmente uns trocos de uma casa de apostas.  

E do Restelo, as velhas gritam: "O procurador-geral da República é da cor dele, e não há razões para abrir inquérito e mencionar o nome do Luís!" 

Falar das gémeas que vieram de fora para um tratamento de milhões pago pelo Estado? Nem pensar. Enquanto isso, eu próprio estou há quase um ano à espera que o HFAR me chame para uma colonoscopia e uma endoscopia. No privado já me tratei medicado, curado e despachado. Do HFAR, ainda nada. Mas, para as gémeas, o estado tratou do assunto com uma eficiência que nenhum português sabia que existia. Quem ousou questionar o privilégio foi logo chamado de insensível e xenófobo.  

Tal como lembrar as grávidas do Bloco de Esquerda, e das causas dos gays. Afinal há por lá lésbicas. Assim faz sentido tanta luta.

E depois há as barragens da EDP, essas maravilhas de engenharia que deviam render milhões ao país. Foram entregues de bandeja, sem pagar um cêntimo de imposto. Venderam-se concessões, fizeram-se negócios obscuros no fim, a conta foi parar às mãos da malta consumidora. Os mesmos do costume que, todos os meses, recebe faturas de eletricidade cheias de taxas, contribuições e ajustes tarifários que ninguém entende.  

E os tribunais? Ah, os tribunais. Onde devíamos confiar, mas onde só se joga a política do costume. Eu assisti a uma entrevista do Juiz Carlos Alexandre, famoso e titulado de "super", por combinar com os procuradores qual será o próximo alvo, e disse que o que ganha não chega, por isso faz muitas horas extras a caçar. O juiz fez justiça espetáculo, com a ventoinha da CMTV na máxima velocidade a espalhar esterco e as suas sucursais – TVI, SIC , CNN e Now – a seguirem-lhe o rasto

No meio disto tudo, os verdadeiros culpados escapam sempre. Há sempre um erro processual, uma doença, uma prescrição, uma morte, uma testemunha que se engana, uma perícia que desaparece. E o sistema segue como sempre foi: com os poderosos a rirem-se da nossa impotência e o povo a pagar sem reclamar porque o pessoal tem medo.

E o que faz o Zé? O Zé está calado. Porque falar de política é feio e dá trabalho. Porque nos ensinaram que é perigoso, que é melhor não meter o nariz onde não somos chamados.  

O Zé só sabe pagar impostos sem perguntar onde vão parar. O Zé espera meses por uma consulta no hospital, enquanto vê os amigos do sistema passarem à frente. O Zé vota de vez em quando, mas sem grande esperança, porque já percebeu que muda o nome, muda a cara, mas o esquema é sempre o mesmo e ventoinha continua no máximo, a espalhar esterco contra os nossos olhos.


E assim seguimos limpando os olhos, a pagar, a ver e a calar. Como bons portugueses.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 7 de março de 2025

O anónimo




Não tenho pressa; não quero envelhecer antes do tempo. Quero seguir meu caminho, enfrentando os dias abraçado às cordas das minhas guitarras, fingindo ser um roqueiro. E quando eu me for, que alguém diga: aqui jaz quem sonhou ser alguém na música e partiu como mais um anónimo.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Crónica X II - dedicado aos Vendilhões do Templo, Bombarral 28Fev25





Venderam-me uma ilusão. Disseram-me que vivia numa sociedade igualitária, onde a justiça era para todos, a política servia o bem comum e o jornalismo informava. Garantiram-me que os médicos cuidavam da saúde dos doentes, a polícia protegia os cidadãos, os professores ensinavam, os prados eram verdes e as galinhas esgravatavam a terra como sempre fizeram. Que os militares viviam nos quartéis.  

Agora, olho à minha volta e vejo uma farsa. A política tornou-se um teatro do absurdo, onde governar é um jogo de bastidores e influências, e não uma missão de serviço público. Ser competente é um defeito, ter experiência de vida é um obstáculo. Se trabalhei, se construí algo, se me envolvi na realidade, então sou suspeito. Só aqueles que nunca fizeram nada na vida têm currículo para mandar. Se tive um café onde servia uns copos a um grupo de jogadores de cartas, já não posso ser ministro do vinho. Se tive galinhas no quintal e vendi ovos ao vizinho, então não posso tutelar a pasta da Agricultura. Os governantes são escolhidos como se a experiência fosse um crime.  
E enquanto essa gente nos distrai com casos e casinhos, esquecem-se de falar dos advogados das grandes sociedades que se sentam no Parlamento a cozinhar leis ao gosto dos amigos. Esses, ninguém questiona.  
Quanto ao jornalismo, já não há. Há jornaleiros, fabricantes de factos e mercadores de polémicas — ou melhor, vendilhões do templo. Passam o tempo a construir narrativas, a inventar escândalos, a decidir quem será crucificado no dia seguinte. Não informam, moldam. Não investigam, insinuam. Não questionam, impõem. Criam factos, comentam os factos que criaram e vendem-nos como se fossem a verdade revelada. E assim se vive, num ciclo vicioso onde a notícia de ontem já não interessa, porque hoje há uma nova indignação artificial para vender. É a perpetuação do jornalixo.  
Por sua vez, os professores, que em princípio eram para ensinar, acabaram por criar uma superclasse: a dos diretores escolares, com presidente e tudo. Viraram gestores eternos de escolas e passam o tempo a fazer política.  

Na semana passada, congratularam-se com o Governo por ter despejado milhões em computadores para as escolas por causa das provas intermédias. Enquanto há países europeus a bani-los das salas de aula, cá celebra-se o dia do descarregamento dos computadores. Claro que ninguém se lembrou de arrancar a ardósia das paredes. Os quadros velhos continuam lá, ao lado dos quadros eletrónicos novinhos, como um símbolo perfeito da contradição em que vivemos: vendem-nos modernidade, mas mantêm o peso do passado. Com estas mordomias, qualquer dia os professores deixam de saber escrever. Dos alunos, nem vale a pena falar.  
E no meio disto tudo, lá aparece Filinto Lima, sempre pronto para discursar. No outro dia, na Antena 1, discutia-se um estudo liderado pelo professor David Justino sobre a escola e a educação. No meio do estudo, concluiu-se que há um número significativo de turmas com quinze alunos ou menos. Aquilo foi fogo no rabo do Filinto — o tipo apareceu indignado com o resultado do estudo, com aquela conversa paternalista em nome dos alunos, que sinceramente já me cansa. A certa altura, um professor humilde entrou em antena e disse o que toda a gente pensa: que os diretores, incluindo o Filinto, estão agarrados ao lugar, que não largam o osso, e que já não fazem falta. Os senhores diretores, figuras ultrapassadas e longe da realidade, querem é eternidade nos cargos, a preparar o futuro dos jovens. Um absurdo, disse ele.  
“Mas que futuro? Um futuro em que os professores passam mais tempo a preencher grelhas e relatórios do que a ensinar? Em que os diretores são figuras vitalícias e aparecem na televisão sempre que um aluno se constipa?”

E o país segue ao ritmo dos comentadeiros: os militares passaram a políticos, de tal forma que parecem galinholas com grafonolas na mão, a berrar de manhã à noite, armados em especialistas de assuntos que desconhecem. O gado ainda pasta, as galinhas ainda esgravatam, os rios ainda correm para o mar e o preço de uma garrafa de água já custa tanto como um litro de gasolina. Tudo aquilo que me venderam como certo está a ir pelo cano, e eu pergunto-me se não fui eu que sonhei demais.  
Imagino um país onde a política é um serviço e não um trampolim, onde os jornalistas voltam a ser jornalistas e não fabricantes de polémicas, onde os diretores escolares largam o osso e deixam de aparecer na televisão ao mínimo espirro. Um país onde pensar ainda é permitido, onde o mérito conta, onde a experiência de vida não é um defeito e onde ser rico não é pecado.  
Um país onde a democracia cumpra o que prometeu.  
E, já agora, um país onde alguém me consiga explicar a história da Solverde e do Primeiro-Ministro Montenegro.  

Adérito Barbosa in olhosrmlente.blogspot.com

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"Eu não sou como muita gente: entusiasmada até à loucura no princípio das afeições e depois, passado um mês, completamente desinter...