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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

O caminho que escolheste nunca te levará a Deus!

O caminho que escolheste nunca te levará a Deus!

Faz  36 anos que co-fundei uma Rádio Pirata.
Estávamos no início dos anos 81. Quem teve a ideia foi o Padre da freguesia - uma rádio que fizesse a transmissão radiofónica do terço, todas as tardes e da missa do meio-dia, aos domingos. Esse era o grande objectivo e consequentemente o nosso compromisso.
Eu era animador cultural, com muito pouco jeito para catequista e por isso agarrei o projecto da Rádio, como uma oportunidade para me livrar dos putos da catequese.
Doutorado em antenas militares, ninguém melhor do que eu para ser indigitado um dos directores da futura rádio.
Desde a nomeação até a primeira emissão, só passavam na minha cabeça filtros de antenas, osciladores de frequências, filtros-passa-banda e questões relativas à potência ideal para chegarmos mais longe sem queimar as antenas - numa excitação completa.
Na rádio fazíamos um pouco de tudo: nós éramos técnicos, jornalistas, entrevistadores, entrevistados, redactores, repórteres e locutores.
Uma sala junto às instalações da sacristia serviu de estúdio. O Sr. Padre era um homem austero, magrinho, velhote, forreta e chato que se fartava - tinha o lápis azul da censura sempre em riste, tipo Estado Novo para censurar a nossa grelha de programas. Queria uma rádio jovem, feita pelos jovens da paróquia, mas não queria gastar dinheiro nenhum, sugerindo sempre que nos amanhásssemos sozinhos - “Arranjai patrocínios vós mesmos!”
Sempre que precisávamos duma ficha, dum cabo, duma mesa de mistura ou dum microfone era um martírio sacar umas lecas ao tipo.
A nossa rádio emitia programas com muito entusiasmo, com muita música e as notícias eram uma compilação dos recortes dos jornais diários e de tudo o que mexesse nas ruas. Elegemos unilateralmente a rádio de Carnaxide como nossa concorrente directa, sem que eles soubessem disso; estávamos atentos ao que eles faziam, a fim de fazermos melhor.
A nossa rádio foi uma história de meio sucesso e de meia desgraça.
A primeira imagem de “meio sucesso" que deixámos aos nossos ouvintes é que éramos uns meninos do coro simpáticos e atinados - transmitíamos o terço todos os dias, fazíamos publicidade às pastelarias, à casa de ferragens, à casa de materiais de construção, às peixeiras do mercado, às senhoras da fruta e a praticamente todo o mercado e ao sapateiro também, para além de longas entrevistas aos velhotes do Centro de Dia.
Na freguesia havia um indivíduo que tinha um pronto-a-vestir, a quem fomos vender publicidade. O homem era forreta e não queria nada connosco; no entanto, sabíamos que tinha um projecto de vida escondido. Além de ser rico e dono do pronto-a-vestir, queria ser Presidente da Junta de Freguesia, mas era comunista.
Pôs assim as cartas em cima da mesa: - Se vocês, o grupo de jovens da igreja, votarem em massa na minha candidatura a Presidente de Junta, eu compro o material que indicarem.
Havia um problema. Naquele tempo o Partido Comunista era diabolizado pela igreja - credo, cruzes canhoto, era só o que faltava, o grupo de jovens da paróquia patrocinar e ou publicitar um comunista!
Prometi ao candidato tempo de antena e tudo fazer para a malta jovem influenciar as famílias a votar nele, em troca dos equipamentos para transmissão do sinal de televisão.
Quando o Padre deu conta deste negócio, chamou-me à parte e disse-me que a Igreja não podia publicitar um comunista.
- Estás num caminho que dificilmente te levará a Deus!
Com os equipamentos para transmissão de TV e com a ajuda de uns quantos carolas, montámos o estúdio e pusemos a TV NO AR, apesar das reservas do Sr. Padre.
A primeira transmissão com sucesso foi a procissão com muitos cortes, muita chuva (FI) muita interferência e muito fantasma, uma coisa de doidos... Mesmo assim, para a comunidade paroquial nós éramos o orgulho da terra.
A meia desgraça aconteceu quando numa certa noite passámos na nossa jovem TV pirata um filme meio erótico, meio pornográfico para não ficarmos atrás das TVs piratas de Odivelas ou de Loures, que também passavam filmes desse género, uma vez por semana. Nós ainda estávamos bastante atrasados em relação a eles. No dia seguinte,  a nossa querida estação foi tomada de assalto pela polícia.
Os equipamentos técnicos foram apreendidos e os jornalistas de serviço, na ocasião, foram todos para dentro do carro da ramona policial.
Depois de uma pequena paragem no Governo Civil, para preenchimento dos papéis, dirigimo-nos ao tribunal de polícia e aí presentes ao Juiz - por sinal, marido da beata mais respeitada da nossa freguesia.
Caladinhos que nem ratos, ouvimos umas rabecadas do Juiz. O Sr. Padre também foi chamado e o coitado, que nada sabia das nossas aventuras, apanhou por bitola aqueles responsos.
Depois de mais de uma hora a ouvir a retórica, o Juiz mandou-nos em paz com a promessa de que, se voltássemos a transmitir porcarias, levávamos da grossa, até porque a mulher dele - uma das catequistas da igreja - estava bastante indignada connosco.
Enquanto descíamos a escadaria, o padre virou-se para mim e disse: “O caminho que escolheste nunca te levará a Deus...”
Com a nossa rádio e o estúdio da TV desmantelados pela polícia, o comunista não conseguiu ser eleito Presidente da Junta por 15 votos... Número perfeitamente ao alcance, caso não nos tivessem fechado as portas.

Adérito Barbosa in olhosemlente

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