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domingo, 5 de outubro de 2025

Zaher Birawi

Zaher Birawi, especialista em flotilhas, ideólogo do socialismo europeu e guia espiritual de lésbicas e gays

Zaher, nasceu 1961 na Cisjordânia, é um professor jornalista activista palestiniano radicado na Inglaterra desde a década 90. Foi professor na Universidade Islâmica de Gaza em 1996.

Este camarada está há muito identificado como agente do Hamas na Europa desde pelo menos 2013 e contra ele há repetidas acusações de ligações a grupos extremista.

Ele é presidente do - International Committee for Breaking the Siege of Gaza quem organizou e pagou as despesas da flotilha do amor gay da Mariana. O tipo ja tinha organizado a flotilha Mavi Marmara em 2010, Lifeline do Viva Palestina (incluindo um em 2010 que entrou em Gaza e foi recebido por líderes do Hamas. Organizou e pagou também a Marcha Global para Jerusalém de 2012. Como jornalista apresentou programas na Al-Hiwar TV, um canal de língua árabe em Londres afiliado à Irmandade Muçulmana que promove narrativas do Hamas e colabora com a Al-Aqsa TV. 

Nos últimos anos, Birawi foi membro fundador e coordenador da Freedom Flotilla Coalition, organizando várias tentativas para alcançar Gaza incluindo este ano a flotilha intercetada pelas forças israelitas que incluía activistas como Greta Thunberg uma quantidade de lésbicas do mundo ocidental.

Birawi ocupou cargos de liderança em diversas organizações sediadas no Reino Unido, como dirigente sénior na Muslim Association of Britain (MAB), administrador da Educational Aid for Palestine (EAP) e director do Palestinian Return Center (PRC). 

As afiliações de Birawi com o Hamas e a Irmandade Muçulmana estão bem documentadas por fontes israelitas, e britânicas, embora mantenha uma negação plausível para evitar repercussões legais na Grã-Bretanha. O EAP está ligado à Union of Good, uma organização guarda-chuva acusada de canalizar fundos para o Hamas. O MAB, que Birawi ajuda a liderar, é presidido por Muhammad Sawalha, antigo comandante militar do Hamas.

Em 2023, no parlamento do Reino Unido rotularam-no como - agente sénior do Hamas.

O que mais gostei foi ver o pessoal da flotilha a dormir na Ketziot no deserto de Neguev.

Adorei!


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

A flotilha do amor gay


Mariana, ouve bem: o centro do universo não é o lesbicismo. A pose de embarcar numa flotilha e proclamar altruísmo, encenar martírio nas redes e transformar causas em autobiografia encaixa num padrão gasto, feito de vaidade exibida e de bandeiras usadas como espelho. A flotilha de Mariana — e não só a dela — é reflexo desse padrão: exibição pública, fotografia performativa, vaidade travestida de militância. O contexto, porém, é de uma gravidade que nenhuma pose redentora apaga: o ataque de 7 de Outubro de 2023 deixou marcas na sociedade israelita que não se dissolvem com slogans ou selfies cívicas. Nesse dia, uma série de ataques perpetrados pelo Hamas contra civis israelitas precipitou uma guerra de enormes proporções. Não foi um episódio isolado nem um fait-divers tablóide: foi um ponto de inflexão cujas consequências continuam a definir a política, o quotidiano e a dor do Estado de Israel.

O Hamas de Mortágua organizou um ataque massivo contra civis, matou cerca de mil jovens que estavam num festival, matou velhos, mulheres e crianças, recorreu ao sequestro, violou regras básicas de protecção de inocentes e mostrou desprezo absoluto pela vida humana. Há vítimas, e os crimes cometidos não podem ser traduzidos em metáforas estéreis ou apagados por retórica militante. A narrativa romântica da resistência colide de frente com a realidade das famílias que perderam tudo.

Enquanto isso, Portugal, país que gosta de se orgulhar das suas tradições liberais e de uma Constituição que exalta os direitos humanos, reage com gestos diplomáticos que parecem, demasiadas vezes, performativos. Quando o Governo português toma posição pró-Hamas, está tudo dito. O reconhecimento recente do Estado palestiniano pelo gay mor foi apresentado como passo em favor da solução dos dois Estados. É exactamente como acontece no relacionamento gay: dois homens, um faz de mulher e o outro de homem. É assim, Rangel?

A ONU, lenta como sempre e agora mais do que nunca, e sobretudo incapaz, continua a arrastar-se sem conseguir mitigar o choque entre soberanias, direitos humanos e criminosos.

Há ainda a hipocrisia selectiva onde se situam Rangel e Mariana. Ambos gays. É cómodo tratar a Palestina como santuário e o Hamas como avatar do bem, ignorando décadas de violência e crimes, quer contra os seus, quer contra Israel.

Quanto a Portugal, não peço purismo moral — peço coerência. Reconhecer a Faixa de Gaza como Estado é estupidez encomendada pela África do Sul, olha quem…, A isso chama-se diplomacia de vitrina. Não é legítimo apoiar a solução de dois Estados nestes moldes. É questionável fazê-lo sem enfrentar os crimes do Hamas.

Usar a memória de 7 de Outubro para justificar passeios de barco pelo Mediterrâneo é pura pornografia da política portuguesa.

Para fechar, uma nota de realismo cru: fica a ironia final — o Hamas é filho do socialismo europeu admirado pelos gays de Portugal.

Mariana, em Lisboa pediste que a PSP te encostasse à parede e aí em Israel agora pedes o quê?


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A lucidez do Primeiro Ministro Ulisses

 


Finalmente, um sopro de lucidez atravessou as nuvens pesadas da retórica nacional. O governo de Cabo Verde, talvez num raro momento de clareza mental, decidiu retirar do currículo escolar o manual de crioulo. Sim, o mesmo manual que durante anos foi vendido como símbolo de identidade e resgate cultural, mas que, na prática, mais parecia um brinquedo pedagógico destinado a entreter políticos nostálgicos e intelectuais em crise de originalidade.

Eis que Ulisses Correia e Silva, homem habitualmente prudente, desta vez teve a ousadia de enfrentar a gritaria dos eternos guardiões da alma cabo-verdiana. Fê-lo com uma simplicidade quase desarmante: invocou o descontentamento das elites intelectuais, tanto as que se passeiam pelos corredores da Praia e do Mindelo, quanto as que, do conforto das suas diásporas, escrevem manifestos inflamados sobre a importância do crioulo. Elites estas que, ironicamente, raramente escrevem em crioulo os seus textos académicos, os relatórios de cooperação internacional ou os artigos de opinião — todos, invariavelmente, em português ou em inglês, a língua dos adultos.

Convém dizê-lo com clareza: o crioulo não é língua. É um dialeto mestiço, uma invenção oral nascida da necessidade, útil para a comunicação quotidiana, mas incapaz de suportar a sofisticação de uma gramática sólida, de um corpo literário estruturado ou de uma produção científica minimamente respeitável. Que ninguém se ofenda: não é uma questão de desprezo, mas de realismo. O crioulo nunca atravessou a linha que separa a fala caseira da língua institucional. Não possui um padrão unificado — cada ilha cultiva o seu sotaque e a sua variação como quem guarda o último segredo de família. Como poderia, então, ser transformado em instrumento de ensino? Como ensinar matemática, física ou biologia num idioma que não possui sequer consenso ortográfico entre linguistas?

Mas há ainda um outro ingrediente neste caldo provinciano: a vaidade dos analfabetos. Muitos dos mais ruidosos defensores da língua cabo-verdiana são precisamente aqueles que nunca conseguiram dominar o português escrito e que veem na oficialização do crioulo uma espécie de vingança simbólica contra a gramática, a ortografia e a disciplina do estudo. Para eles, escrever em crioulo seria a consagração da sua própria ignorância: finalmente o erro deixaria de ser erro e o improviso oral passaria a chamar-se literatura. É a vingança doce do analfabeto: não aprender a língua oficial, mas transformar a sua limitação pessoal em bandeira política. Uma pirueta genial — e desastrosa.

Os defensores da oficialização do crioulo comportam-se como missionários de uma religião exótica: carregam consigo uma fé inabalável na sua causa, mesmo que os factos a contradigam dia após dia. Invocam slogans sobre identidade, raízes e autenticidade, como se a elevação do crioulo ao estatuto de língua nacional fosse resolver a crise educativa ou, milagre dos milagres, melhorar a compreensão leitora das nossas crianças. É uma fantasia provinciana, um complexo de inferioridade disfarçado de orgulho cultural. O que está em jogo não é pedagogia, é vaidade. É a tentativa desesperada de certos cabo-verdianos de trazer por casa uma bandeira linguística que os faça sentir diferentes, especiais, originais — como se isso fosse suficiente para escapar ao destino de pequenos arquipélagos periféricos.

O crioulo pode — e deve — viver na oralidade, na música, na poesia popular, no convívio das famílias. É uma fala com ritmo, com sabor, com musicalidade. Mas querer transformá-la em veículo de ensino é uma violência contra o próprio futuro das crianças. O mundo não nos espera. A ciência não se traduz para crioulo. A economia não se discute em crioulo. A diplomacia não se assina em crioulo. Nem sequer os grandes intelectuais da causa escrevem os seus artigos académicos nessa língua que tanto defendem. Porquê? Porque sabem, no íntimo, que não passa de uma bandeira simbólica.

É preciso coragem política para admitir isto. Coragem para suportar o insulto previsível dos arautos da autenticidade, que acusam de traidor qualquer um que ouse questionar o dogma da oficialização. Coragem para não se deixar intimidar pela retórica inflamável dos que confundem identidade com atraso. Ulisses Correia e Silva demonstrou, ao menos por uma vez, essa coragem: resistiu ao coro provinciano e tomou uma decisão sensata.

Alguns dirão que é conservadorismo, outros que é rendição ao colonialismo linguístico. Eu prefiro chamar-lhe progressismo lúcido. Sim, porque há momentos em que o verdadeiro progresso não está em inventar bandeiras, mas em libertar-nos delas. Progresso é compreender que uma criança que domina bem o português tem acesso direto a bibliotecas, universidades, ciência, mercado de trabalho. Que um jovem que aprende inglês abre portas no mundo inteiro. Que um profissional que escreve corretamente em português não precisa de tradutores para ser entendido em Angola, em Portugal, no Brasil, em Moçambique.

Progresso, meus caros, não é insistir numa fantasia linguística que apenas serve para encher discursos de conferências culturais. Progresso é preparar a nova geração para o mundo real, e não para a sala de estar de uma tertúlia identitária.

Hoje, por uma vez, celebro o governo. Celebro o primeiro-ministro que ousou dizer não ao capricho provinciano. Celebro a lucidez rara de um país que, por um breve instante, deixou de lado a ilusão de que a fala de casa podia ser promovida a língua universal.

Se amanhã voltarmos à confusão habitual, não me surpreenderei. Mas hoje, pelo menos hoje, foi um dia de lucidez.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sábado, 20 de setembro de 2025

Estufa Fria

Portugal decidiu reconhecer o chamado Estado da Palestina. A decisão é celebrada por uns como acto de coragem diplomática e por outros como dever moral. Mas a verdade nua e crua, despida de propaganda e sentimentalismo barato, Portugal escolheu legitimar o caos. Reconhecer como Estado aquilo que não passa de um território dominado por facções terroristas, sem eleições livres, sem instituições credíveis e sem qualquer condição mínima para ser considerado soberano é uma cagada em três actos. Mais uma vez é necessário expor as contradições, manipulações e hipocrisias que sustentam esta farsa, confrontando a narrativa oficial com dados concretos, números irrefutáveis e uma análise fria da realidade.

A primeira pergunta é inevitável: qual Estado? A Palestina não possui fronteiras definidas, não tem moeda própria, não controla espaço aéreo, marítimo ou terrestre. O que existe são dois enclaves — Gaza e Cisjordânia — governados por rivais que se odeiam entre si e nos intervalos atiram roquetes para Israel e raptam civis idosos e crianças. Na Cisjordânia, a Autoridade Palestiniana governa sem legitimidade democrática: não há eleições desde 2006. Mahmoud Abbas, no poder há quase vinte anos e já perto dos noventa, transformou-se num ditador sustentado por um aparelho de segurança e pelos milhões desviados da ajuda internacional. Em Gaza manda o Hamas, organização reconhecida como terrorista pela União Europeia e pelos Estados Unidos, cujo estatuto fundador proclama abertamente a destruição de Israel.

Reconhecer esta realidade como Estado é o mesmo que legitimar uma coligação entre máfia, cartéis da droga e jihadistas. Portugal premeia a corrupção, a violência e os raptos. O mínimo teria sido exigir a  de reféns, o desarmamento do Hamas e o reconhecimento do Estado de Israel pelos palestinianos. Até hoje nenhuma dessas condições foi satisfeita. Ainda assim, Lisboa segue a cantiga de Madrid e de Pretória. Quanto à África do Sul, basta procurar no YouTube documentários sobre o que os negros fizeram a Joanesburgo para perceber o paralelo. A ONU transformou a questão palestiniana numa indústria. Cinco agências dedicam-se em exclusivo a esta causa, gerindo campos de refugiados que já duram há mais de setenta anos. É um caso único: os palestinianos são a única população do mundo cujos descendentes continuam oficialmente classificados como refugiados, geração após geração.

Resolver o problema não interessa. A miséria é negócio. Os campos são fonte de financiamento contínuo para a ONU e para organizações associadas. Se o problema fosse resolvido, milhares de burocratas perderiam os seus empregos e contratos milionários evaporar-se-iam. Gaza e Ramallah são palcos de miséria encenada para as câmaras da CNN e da Al Jazeera. Uma miséria mantida de pé porque rende horas de antena para papalvos. Agora repete-se até à exaustão a narrativa da fome. Imagens de crianças magras e filas por pão circulam como armas emocionais. Mas os números são claros: só no último ano entraram em Gaza mais de 100 mil camiões carregados de alimentos, cada um com cerca de vinte toneladas. Mais de dois milhões de toneladas de produtos básicos.

Isto equivale a cerca de 600 quilos de alimentos por cada habitante. Em qualquer parte do mundo seria suficiente para eliminar a escassez. Mas em Gaza cerca de 400 quilos desaparecem logo à chegada. Parte vai para o mercado negro, parte enche armazéns do Hamas, parte perde-se na corrupção. A população não passa fome por falta de recursos, mas porque o sofrimento é moeda política. A fome serve à propaganda, não à barriga do povo. Outra mentira é a conversa do genocídio. O tal genocídio que multiplica a população. Israel é acusado diariamente de genocídio em Gaza. Mas basta abrir as estatísticas para desmontar o mito.

Desde 1970 a população de Gaza não parou de crescer: de 400 mil habitantes para mais de 2,2 milhões. Quadruplicou em meio século. Pergunta simples: em que genocídio da história documentada uma população quadruplica? Em nenhum. Em genocídios verdadeiros, as populações são exterminadas. Em Gaza multiplicam-se. Chamar a isto genocídio é uma falsificação e um insulto às vítimas de genocídios autênticos, do Holocausto aos tutsis do Ruanda. Outro ponto que a propaganda ignora: o exército israelita anuncia previamente os ataques, avisa a população para abandonar as zonas de combate, cumpre regras internacionais de guerra e actua fardado e identificado.

O Hamas, pelo contrário, mistura-se com a população, usa escolas, hospitais e mesquitas para armazenar armas e serve-se de civis como escudos humanos. A diferença é total: um cumpre deveres de um Estado, o outro pratica terrorismo. Todas as facções palestinianas armadas — Hamas, Jihad Islâmica, Brigadas Mártires de al-Aqsa, Frente Popular — convergem num único objectivo: a destruição de Israel. Não se trata de negociar fronteiras ou coexistência, mas de eliminar um Estado soberano. Israel, por seu lado, é o único país do Médio Oriente com eleições livres, imprensa independente, minorias representadas no parlamento e tribunais que condenam políticos de topo por corrupção. Ainda assim, é Israel que Portugal condena e é o Hamas que Portugal legitima ao reconhecer a Palestina como Estado.

Portugal tem uma diplomacia igual à da estufa a que os gays praticam na Estufa Fria. Ao reconhecer a Palestina, não escolhe a justiça, escolhe a propaganda, não escolhe a paz, escolhe a farsa, não escolhe o direito internacional, escolhe alinhar com quem lucra com a miséria. Uma vergonha que ficará na História como um capítulo da política externa portuguesa marcada por incoerência, subserviência e provincianismo da Estufa fria. Portugal podia defender a verdade, confrontar as mentiras, afirmar o direito de Israel à existência em paz. Preferiu a via fácil: o aplauso momentâneo da ONU e dos opinadores da Estufa Fria.

Reconhecer a Palestina é reconhecer o inexistente. É premiar a corrupção, legitimar o terrorismo, alimentar a indústria do vitimismo e perpetuar a miséria.

Portugal, ao fazê-lo, escolheu o lado errado da História. E fá-lo-á sem vergonha, sem pudor, sem dignidade. Uma verdadeira vergonha ao ar livre igual ao que se pratica nas noites frias da Estufa.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com


segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Afinal está tudo entulhado

  

Ele garantiu semanas a fio na CNN que os quatrocentos quilos de urânio enriquecido a sessenta por cento, nas instalações subterrâneas do Irão, estavam perfeitamente a salvo, retirados do local de enriquecimento antes do início da chamada guerra dos “doze dias” entre Israel e Irão.

Também assegurou que Israel nunca atacaria o Irão porque o Irão não era Gaza nem o Líbano. Quis mostrar ao mundo que tinha informações credíveis sobre as centrifugadoras iranianas. Contudo, a história gosta de contrariar os brincalhões.

Agostinho não se limitou a lançar uma hipótese; jurou, de pés juntos, que o material nuclear mais sensível do Médio Oriente estava guardado em local seguro. O detalhe não importava, o que interessava era a pose, a certeza e a pompa com que anunciava a sua convicção. O tom era tão categórico que parecia profecia.

Afinal, ontem pelas treze horas soubemos de outra realidade: os bombardeamentos contínuos sobre as instalações nucleares iranianas transformaram tudo em entulho. Mais irónico ainda: o Irão anunciou também um acordo com a Agência Internacional de Energia Atómica para que técnicos tentem verificar, debaixo da montanha, em que condições o urânio realmente se encontra. Ou seja, enquanto Agostinho garantia a salvação total do material, o próprio país envolvido e a agência de vigilância nuclear admitiam não saber se o urânio está intacto, perdido ou contaminado. A narrativa triunfal do general caía por terra mais uma vez.

Como ficamos, então, Agostinho? De duas, uma: ou as tuas fontes seguras não passam de grupos de WhatsApp com conversa mole, ou alguém anda a soprar-te mentiras ao ouvido. Talvez de Moscovo? Talvez de Teerão? Ou será apenas a vaidade de aparecer na CNN a promover Moscovo?

Não sejamos ingénuos. A história da espionagem está cheia de generais, conselheiros e analistas que, um belo dia, se revelaram mais leais ao inimigo do que à bandeira que ostentavam no uniforme. A dúvida é legítima: será Agostinho apenas mais um falador compulsivo, viciado em microfones e holofotes, ou estaremos perante um caso clássico de infiltração, em que a desinformação serve de arma para descredibilizar a própria NATO?

E assim chegamos ao cúmulo: de um lado, um general que anuncia certezas; do outro, a dura realidade de escombros radioativos, acordos de emergência com a Agência de Energia Atómica e declarações oficiais que o desmentem. Pergunta-se, sem rodeios: Agostinho, o que tens a dizer sobre a notícia de ontem? Não basta desfilar nos estúdios da CNN com ar de estratega. A guerra não se ganha na televisão; a guerra ganha-se com informações verdadeiras — e essa, ao que parece, continua enterrada, junto com os quatrocentos quilos de urânio que juraste estarem a salvo.

Adérito Barbosa, in olhosemlente.blogspot.com

terça-feira, 9 de setembro de 2025

A miséria e o luxo I


Desde que a tromba de água desabou sobre S. Vicente venho acompanhando em silêncio, com angústia e também com revolta. Angústia porque o povo daquela ilha precisava de chuva, sim, mas das chuvas serenas, fecundas, que penetram na terra e alimentam os campos, e não dessas enxurradas assassinas que arrastaram casas, sonhos e vidas. Não precisavam que a lama viesse bater-lhes à porta para lembrar, com brutalidade, a miséria que já era o seu pão de cada dia.

E o que se viu? Barracas inteiras engolidas pelo barro, pedaços de vidas desfeitos na corrente. Não foi apenas a lama que invadiu a cidade: foi a vergonha nacional o retrato cru de um país que há quarenta anos, os  políticos fingem governar mas nunca souberam dar dignidade ao seu povo.

A miséria ficou exposta, transformada em espectáculo para os drones dos novos ricos Sobrevoar barracos de zinco, de lata e de tábuas como se filmar a pobreza fosse o último grito da modernidade. Cineastas de ocasião, orgulhosos, partilhando tragédias em directo, exibindo desgraças como troféus digitais. O YouTube encheu-se dessa vaidade miserável de um povo pequeno, sempre explorado, agora convertido em figurante da sua própria desgraça.

O presidente da república, vazio de ideias, passeava-se por Lisboa, entre centros comerciais e estádios, a ver jogos, proclamando que Cabo Verde é Benfica. Enquanto os mortos eram enterrados na lama, o chefe de Estado coleccionava bilhetes de futebol. Não é apenas falta de vergonha: é falta de cérebro.

O Neves, mestre em sugar protagonismo, apressou-se a agarrar para si a glória da doação da Fundação Benfica, como se tivesse sido ele a salvar S. Vicente. Um verdadeiro chico-esperto, desses que fazem da tragédia um palco para o seu teatro pessoal.

E não ficamos por aqui. O presidente da Câmara de S. Vicente, esse outro iluminado, abriu a boca para afirmar com orgulho que sempre se construiu casas nas ribeiras. Foi o retrato perfeito da irresponsabilidade criminosa de um autarca que empurra famílias inteiras para os braços da lama. Outro sem cérebro, tal como o presidente da república.

A Janira também quis a sua fatia de palco. Publicou no Facebook uma mensagem politiqueira, fingindo solidariedade enquanto ajudava, de facto, a consolidar a miséria. Mais uma a juntar-se ao clube dos sem cérebro.

Enquanto isso, a população, em vez de se erguer em revolta, agarrou nos telemóveis e começou a transmitir directos. As vítimas, no meio da lama, mostravam ao mundo os seus barracos desfeitos, pedindo ajuda entre pedidos de atenção. Nada de denúncia séria contra os políticos que os condenaram a viver ali. Nada de exigência de dignidade. Apenas pedidos e mais pedidos, embrulhados em vídeos caseiros, com legendas coloridas.

É chocante: a tragédia virou espectáculo digital. O país inteiro transformado em conteúdo para consumo imediato da miséria. Os drones voaram, os novos ricos exibiram a mais recente tecnologia de filmagem, e o povo — faminto, humilhado, mas com iPhones no bolso — continuou a alimentar o circo.

Cabo Verde é hoje um país rico. Rico em miséria humana. Rico em pobreza de espírito. Rico em governantes medíocres que trocam dignidade por viagens a Lisboa. Um país onde há sempre dinheiro para o último modelo de ténis de marca, mas nunca para um tecto seguro. Um país de aviões penhorados, mas de vaidades intactas.

E no meio desta encenação, a lama continua. Não apenas a lama física que matou e arrasou casas. A lama moral, que escorre todos os dias pela boca dos governantes e pela passividade cúmplice de um povo que se habituou à miséria como se fosse destino.

O que caiu em S. Vicente não foi apenas uma tromba de água. Foi o retrato cru de um país inteiro atolado em lama — e que, mesmo assim, insiste em dançar sobre ela, de telemóvel na mão, orgulhoso de transformar a própria desgraça em espectáculo.

domingo, 7 de setembro de 2025

Rockin’ 1000 Leiria 2025

À hora marcada o cronómetro regressivo foi descontando segundos em direcção ao zero. Quando finalmente estalou o zero, rebentou o Rockin’1000 no estádio. Fui, com a ajuda da minha filha, ver a malta dos mil roqueiros. E olhem que foi coisa bonita de se ver.

O concerto teve o selo do Turismo Centro de Portugal e, ao que parece, também da edilidade de Leiria. Vieram músicos de todo o mundo, cerca de trinta países representados. Europa, América do Sul, África do Sul, Indonésia. O mais velho tinha setenta e quatro anos, português, baixista. Os dois mais novos também portugueses. Curiosamente, os três de Leiria.

Antes da primeira nota, houve o ritual: juramento solene de que ninguém se atreveria a dedilhar cordas ou a martelar teclas nos intervalos. Disciplina, dizia-se. Mas disciplina rockeira, com mais de mil almas prontas a rebentar colunas de som… é obra.

No ano passado, o alinhamento do relvado foi de duzentos e vinte vocalistas, trezentos e cinquenta guitarristas, cento e oitenta baixistas, duzentos bateristas e cinquenta teclistas. Este ano o equilíbrio foi semelhante, só mudou a energia. Do Brasil chegou o maestro Daniel Plantes, e da casa tivemos Daniel José Neto. Ambos meteram ordem na anarquia, chicote em riste mas com um sorriso de quem manda.

O público vibrava ao fim de cada música, e logo de seguida as trezentas e cinquenta guitarras, carregadas de drives, rasgavam o ar sob o olhar do castelo. Bateria a rebentar pratos, baixo a cavar o chão, teclas a costurar atmosferas, vozes a gritar ao céu. E que vozes. A maioria raparigas, a saltar e a cantar como se a vida lhes dependesse desse momento, numa espiral sonora, sempre a subir, até ao infinito, a cortar-nos o fôlego.

Nas bancadas ninguém ficou quieto. Eu próprio, pregado na cadeira, batia o pé e abanava o capacete, contagiado pelas músicas. Todo o estádio cantava, e tudo tremia de tal forma que por momentos temi pelas juntas do meu esqueleto.

E houve convidados. A Marisa Liz apareceu no palanque central, com a canção “Guerra Nuclear”, acompanhada pelos mil. Foi um momento fora da escala. Depois, surpresa maior: o Tim dos Xutos disparou a canção À minha maneira.

Nem tudo foi música. O organizador, armado em profeta de causas, resolveu puxar a ladainha do costume, o discurso mole dos coitadinhos palestinianos, parlapier escrita pelos de sempre. Gaza e Sudão no cartaz da converseta, silêncio absoluto sobre Israel, que há setenta anos engole foguetes, raptos e insultos de ódios da vizinhança. Foi um momento de incoerência vestido de moralismo barato.

No próximo ano lá estarei, quem sabe como músico participante.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blospot.com

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Os Ratos de Calhoun



Quem não conhece a célebre experiência de John B. Calhoun, baptizada de Universo 25? 

O cientista fechou ratos num condomínio de luxo: comida à descrição, água corrente, abrigo seguro, sem predadores nem lutas pela sobrevivência. Criou-lhes um paraíso perfeito.

O paraíso, porém, durou pouco. Rapidamente os ratos descobriram que, sem esforço, a vida perde sentido.

No início, tudo corria bem: ratos bem nutridos, a multiplicarem-se a ritmo acelerado. A população cresceu em flecha e parecia que a experiência iria triunfar. Mas não. Em poucos meses, o condomínio entrou em decadência: menos reprodução, mais agressividade, hierarquias rígidas — uns tornaram-se reis, outros foram relegados à miséria. As mães começaram a abandonar as crias, os machos afundaram-se em apatia, e a comunidade resvalou para canibalismo, violência e comportamentos estranhos. Depois deixou de nascer qualquer cria e a mortalidade chegou a 100%. Restou apenas um silêncio de cemitério.

Calhoun chamou-lhe Universo 25. Eu chamar-lhe-ia a grande experiência da esquerda radical em laboratório.

Um Estado que oferece tudo de mão beijada, elimina a competição natural, proclama que ninguém deve enfrentar dificuldades e que a luta pela sobrevivência é fascismo. O resultado? Gerações inteiras que confundem direitos com esmolas, mérito com privilégio, trabalho com exploração.

Os ratos de Calhoun não tinham culpa: reagiram como ratos, perderam o rumo e devoraram-se. Os políticos da esquerda radical fazem o mesmo — mas conscientemente. Montam um sistema de abundância artificial, pago com o dinheiro dos contribuintes, e vendem a ilusão de que a teta do Estado é inesgotável.

Só que seca. E quando seca, seca de vez.

Tal como no laboratório, os ratos alfa são os barões do partido, prontos a morder os fracos enquanto discursam sobre igualdade.

As fêmeas que abandonam as crias são as ministras e secretárias de Estado que falam em políticas familiares enquanto empurram os filhos dos outros para a creche subsidiada.

Os miseráveis são a massa de dependentes, eternos eleitores fiéis, convencidos de que são protegidos quando, na realidade, apenas prolongam a experiência como cobaias.

No fim, como no Universo 25, não faltará comida. Faltará sentido. O colapso não vem da escassez, mas da saturação: o apodrecimento lento de uma sociedade que já não encontra propósito porque tudo lhe foi dado sem esforço.

E, inevitavelmente, a elite de ratos culpará o neoliberalismo enquanto a colónia se dissolve em silêncio.

A moral da história é simples: as minorias sem luta, sem mérito e sem esforço são um paraíso, são uma ratoeira. E os políticos da esquerda, são os zeladores desse laboratório gigante a que chamamos de subsídio garantido.

O que me assusta é repetir a experiência quando se sabe de antemão qual será o resultado. Mais subsidiados.

E, se dúvidas restassem, basta olhar para o nosso palco político nacional: o Bloco desapareceu no nevoeiro a caminho de Gaza e espero que não volte nunca mais.  O PCP esse definha à espera que um proletariado angustiado ressuscite e o PS arrasta-se como um rato obeso que comeu demasiado queijo. Todos vítimas do seu próprio Universo 25, todos a apodrecer no mesmo condomínio ideológico onde prometeram dar o que não é deles. No fim, sobrou-lhes apenas o silêncio — o silêncio de cemitério que sempre acompanha os ratos quando a teta seca.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Saudades do mar



Ericeira foi o local do mais recente encontro do nosso ciclo periódico de almoços. Estes encontros, que vamos alternando de casa em casa ao longo do ano, não são apenas ocasiões de partilha gastronómica: são sobretudo momentos de reencontro, de celebração da amizade e de continuidade de um acto que já se tornou parte de nós.

Ontem, mais uma vez, ficou claro que não é apenas a mesa que nos une, mas sim a vontade de estar juntos, de conversar, de rir e de saborear a vida em comum. Há quem diga que o sabor dos pratos é importante; eu arrisco acrescentar que o tempero essencial está no convívio, na forma como cada um se dispõe a dar um pouco de si e a receber do outro.

A Ericeira, com a sua paisagem marítima e a sua luz inconfundível, acrescentou um pano de fundo especial. Há qualquer coisa de simbólico em estarmos ali, junto do oceano, a falar e a pensar no mar, mesmo quando o assunto não agrada a todos por igual. A vastidão azul, que se estende até ao horizonte, oferece a uns uma sensação de paz e a outros um convite à reflexão. A mim, confesso, oferece sobretudo a lembrança de episódios menos entusiasmantes. Por azar, tive algumas namoradas depressivas – tinham em comum essa mania de querer ver o mar. Para elas, ver o mar era uma espécie de ritual terapêutico: um bálsamo contra as angústias, uma promessa de serenidade. Para mim, foi sempre um suplício arrastado, quase uma penitência sem redenção. Fiquei, por isso, queimado com o assunto. Nunca associei o mar a uma necessidade vital; nunca tive saudades de ouvir o quebrar das ondas nem me ocorreu que a ausência desse som fosse motivo de nostalgia.

E contudo, ontem, sentado à mesa, dei por mim a ouvir as várias interpretações sobre o fascínio do mar. Houve quem defendesse que escutar o marulhar das ondas é uma terapia silenciosa, capaz de apaziguar os nervos mais tensos. Outros falaram da experiência de mergulhar no mar e sentir a água gelada a atravessar os ossos como um choque libertador. Houve ainda quem preferisse a contemplação imóvel, sentado num banco das arribas, a observar o oceano como quem procura ali uma resposta para as grandes perguntas da vida. Para todos, de modos diferentes, o mar é uma referência emocional, quase espiritual.

Ora, para mim, que nunca tive essa ligação, o debate foi divertido. Senti-me quase um estrangeiro na conversa, um exilado da devoção marítima para não dizer um E.T., tal um recém nascido de olhos esbugalhados e de cabeça bicuda visto de perfil pela mãe. 

Quando disse que nunca senti saudades do mar, logo surgiu a suspeita: devo ter um problema qualquer. Talvez, pensei eu, mas não é coisa que me preocupe. Se o mar consola uns, a mim basta-me a mesa bem composta, o vinho partilhado e as histórias trocadas entre amigos. Cada um que procure a sua terapia; eu encontro a minha nestes encontros de convívio.

Uma palavra especial, naturalmente, para a Augusta. Bem sabemos que momentos como este não acontecem por acaso. São fruto de trabalho, de organização e de uma dedicação que se nota em cada detalhe. Desde a escolha dos pratos até à forma cuidada como tudo estava disposto, percebeu-se o empenho e o carinho. Organizar não é apenas preparar comida: é pensar no ambiente, garantir que todos se sentem confortáveis, prever as conversas e até permitir que o tema do mar se infiltrasse na sobremesa. Fica aqui o meu reconhecimento sincero por todo esse esforço, que mais uma vez fez do almoço uma ocasião memorável.

Não posso deixar de notar, ainda, a ausência das netinhas do Bernardo – as diabinhas, como carinhosamente lhes chamamos. Fizeram-se sentir pela falta do barulho que só a ausência de crianças se consegue notar. É curioso como a vida, tal como o mar, se movimenta em ondas: umas vezes temos o barulho alegre das gargalhadas, outras vezes apenas a lembrança do que ficou por acontecer. Ainda assim, mesmo sem a agitação das pequenas, o almoço teve a leveza própria dos momentos bem passados.

Num mundo cada vez mais apressado, em que os dias se atropelam e as preocupações se acumulam, parar para partilhar uma refeição é quase um acto de resistência.

Por tudo isto, quero deixar uma vez mais o meu obrigado. Obrigado, Augusta, pelo trabalho, pela dedicação e pelo cuidado em cada gesto. Obrigado, Bernardo, pela generosa hospitalidade e pela forma como abriste as portas da tua casa.

Se o mar, com o seu apelo misterioso, não me comove nem me consola, o mesmo não posso dizer da vossa companhia. Essa, sim, é indispensável. É nela que encontro a serenidade que outros buscam no oceano. Talvez, afinal, o meu mar esteja aqui: nesta amizade que resiste, nesta mesa que se quer repetir sempre.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Verde código Verde


 Havia quem os carregava ao ombro como se fosse mala diplomática. Era o princípio da mobilidade, mas no fundo era apenas a mobilidade de andar com meio quilo de plástico e bateria na mão, a rezar por rede no meio de Lisboa.  Estou a falar dos telemóveis e lembrar-me das idas ao banco, dos balcões em madeira escura, dos livros enormes com caligrafia tipo escrita de papiro que mais pareciam bíblias onde cada depósito registado à mão, levava o carimbo molhado em tinteiro, e aqueles bancários de cara fechada atrás da caixa a fazer-nos sentir que estávamos a pedir um favor aos gajos. E aquelas filas intermináveis, as senhas de papel rasgado, e toda a resignação de quem sabia que ia perder a manhã inteira para levantar cinquenta paus.

Quem não se lembra dos autocarros verdes da Carris? O de dois andares, que fazia as delícias da miudagem, como se fosse um miradouro sobre rodas. E o rasteirinho sem portas atrás, onde a malta subia e descia em andamento, num exercício de ginástica urbana que hoje daria direito a processos no Tribunal de Menores. 

Depois chegaram os articulados laranja - os minhocas, era uma modernidade sobre rodas. Lisboa tinha cor, e não era só das paredes descascadas: eram reclamos luminosos, néon a piscar nas Avenidas, e copos de cerveja que se enchiam nas Picoas até deitar espuma por fora.

Quem não se lembra da chegada da internet, no seu estado primitivo, a chiar e a apitar como se estivéssemos a invocar marcianos? Cinquenta e dois k-bits de paciência, um modem histérico e a gloriosa sensação de ver uma página carregar ao fim de 6 minutos — se ninguém se lembrasse de levantar o auscultador do telefone fixo. 

Era futuro a acontecer devagarinho, pixel a pixel. Depois, os cartões magnéticos junto com o gesto estudado de tapar o código com a mão, como se estivéssemos a introduzir os segredos da NATO, enquanto os da fila olhavam para o tecto, para o lado ou para os sapatos, num fingimento colectivo de desinteresse. A privacidade do multibanco era uma encenação nacional, uma coreografia de cotovelos e olhares enviesados.

A coisa acelerou. Vieram os pagamentos por referência, aquela sequência de vinte dígitos intermináveis que transformava cada compra num exercício de datilografia. Vieram as plataformas online, os pagamentos por telefone, os MBWAYs da vida — convém lembrar, desenvolvidos em Portugal, uma das raras vezes em que não fomos apenas utilizadores de segunda mão. O almoço dividido à mesa já não exige contas de cabeça, apenas um manda-me MBWAY.

Hoje os bancos já não são de madeira, nem têm livros de registo. São aplicações no telemóvel. O balcão físico é uma espécie em extinção, como as cabines telefónicas. Restam alguns, como fósseis urbanos, para dar a ilusão de que ainda há humanidade no processo. Mas a humanidade foi substituída por códigos, passwords, tokens e os irritantes assistentes virtuais que respondem com uma alegria irritante às nossas irritantes perguntas. O gerente, outrora figura temida de gravata e bigode, foi trocado por um chatbot com sorriso desenhado em pixels.

E nem quero falar das novas operadoras do negócio virtual: Revolut, N26, Monzo e outras tantas que pouca gente conhece, mas que já capturam milhões de clientes mundo fora. Não têm balcão, não têm horário, não têm agência. O banco já não é edifício: é notificação push. É cartão de plástico minimalista que chega pelo correio, acompanhado de uma promessa de liberdade financeira. O dinheiro deixou de ser carteira e passou a ser aplicação.

A desmaterialização é inevitável. O dinheiro físico vai acabar. Os talões de papel seguirão para museu. Bancos com portas abertas, balcões, cofres, tudo desaparecerá. O futuro é um número no ecrã, um código que confirma ou nega a minha existência financeira, sem bateria, sem rede, sem internet, simplesmente deixo de existir. Não compramos pão, não carregamos o passe, não pedimos café. Tornamo-nos fantasmas de passos perdidos, condenados a olhar para o telemóvel morto como se fosse uma lápide.


E é neste cenário, em que tudo se resume a código, que ecoa o mantra ridículo: - Verde código Verde. Uma expressão que outrora poderia soar a pagamento, hoje é apenas uma expressão caricata. Um eco da modernidade que nos reduziu a cor, a número e a senha. Verde código Verde é o retrato de um mundo onde já não se levanta dinheiro, nem se levanta o código, onde já não se entra no banco, entra-se na aplicação. Onde a vida deixa de ser papel e passa a ser algoritmo.

Verde código Verde: a expressão analógica de um digital que já ninguém se lembra.

E agora que descobriram a vacina para qualquer tipo de cancro, resolveram o problema do HIV e como já descobriram propagação  5 vezes mais rápida da que a luz, eu já estou de malas feitas.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

MAIS CABOS ANSELMOS NÃO, OBRIGADO


Eu não quero ver cabos Anselmos nos quartéis, nem na GNR, nem na PSP, nem na PJ, nem no ex-SEF, nem muito menos em qualquer esquadrão de segurança nocturna que ande por aí a brincar à política. Portugal não precisa de mais patriotas nem de mais nacionalistas, comprados ao quilo na loja da esquina.

Para quem não se recorda – a amnésia histórica é o pão-nosso de cada dia – o tal cabo Anselmo era, na verdade, um simples fuzileiro naval brasileiro. O título de cabo serviu mais para segurar a lenda do que para realçar a patente. Em plena década de 60, concretamente em 1964, Anselmo subiu a um palanque diante de generais e fez um discurso inflamado sobre a pátria, a honra e a necessidade de resistir ao comunismo. Um discurso que parecia ditado ao telefone de Washington. Resultado? Poucos dias depois, o Brasil mergulhava na ditadura militar – um dos regimes mais brutais da América Latina, cozinhado a lume brando sob encomenda da inteligência norte-americana.

Anselmo, o herói de ocasião, viria mais tarde a ser desmascarado como aquilo que sempre fora: um agente da CIA. Um infiltrado, um político de uniforme, pago e instruído para sabotar qualquer hipótese de soberania política no Brasil. A revolução de 64, que os próprios militares baptizaram de contra-revolução, não caiu do céu em forma de tempestade. Foi planeada, ensaiada e executada com consultoria made in USA.

Chamaram-lhe Operação Brother Sam: uma frota naval norte-americana estava pronta a apoiar os generais brasileiros se fosse preciso esmagar resistências. O golpe teve nomes e apelidos – Castelo Branco, Costa e Silva, Médici – todos alinhados com Washington. Instalou-se uma ditadura de vinte e um anos, sustentada por censura, tortura, desaparecimentos e uma retórica de pátria, Deus e família, retratada no filme recente - Ainda Estou Aqui, com Fernanda Torres no papel de viúva de Rubens Paiva.

Tudo igualzinho ao que fizeram Salazar, Mussolini, Franco, Hitler, Saddam, Estaline, Fidel Castro ou Pol Pot.

E é aqui onde eu quero chegar: porque quando olho para o noticiário português e vejo um agente da PSP acusado de ligações a ditadores de trazer por casa, não consigo deixar de ouvir o eco do mesmo guião. Mudam os sotaques, mudam os slogans, mas a cartilha é a mesma: meter medo com o fantasma do inimigo interno, criar a necessidade de ordem, fabricar discursos de salvação nacional, tudo embrulhado em retóricas patrióticas. Perigoso. Assim como é perigoso apagar o fogo com a mão, como vi há dias.

Eu não compro essa mercadoria. Não quero voltar a organizar uma RGA na Escola Industrial Fonseca de Benevides do meu tempo – esta coisada não se ergue do nada. Tem financiamento, tem inspiração ideológica importada, tem o cheiro a pólvora que vem de fora. O caso do agente da PSP não é episódio isolado: é apenas a ponta do icebergue. E nós, como bons portugueses, preferimos olhar para a ponta e fingir que o resto não existe.

O cabo Anselmo brasileiro serviu para abrir as portas à ditadura e para esmagar uma geração inteira em nome da democracia da porrada. Se começarmos a aceitar Anselmos em Portugal – com farda ou sem ela – não esperemos que a história tenha mais piedade connosco do que teve com os brasileiros de 64.

E se o Brasil de ontem já nos dá lição, o Brasil de hoje deveria ser aviso em letras garrafais. Bolsonaro não apareceu sozinho. Foi fabricado no mesmo molde: medo do comunismo, culto da família, religião misturada com armas e militares a ocupar gabinetes ministeriais como se fossem fiscais de feira. Generais a governar como se o voto popular fosse detalhe dispensável. A certa altura, falava-se em golpe quase à descarada – e não faltavam quartéis onde se aplaudia a ideia.

Não se iludam: sempre que os militares se instalam no poder político, não trazem ordem, trazem autoritarismo. Podem vir de verde-azeitona, de uniforme engomado ou de boina, mas o resultado é sempre o mesmo: censura, vigilância, medo, e uma democracia de fachada onde só manda quem carrega mais estrelas no ombro.

Por isso digo sem hesitar: não quero militares nem paramilitares na política, em Portugal ou em lado nenhum. Podem encher a boca com palavras como pátria, Deus e família, mas o que realmente trazem é a erosão da liberdade. Hoje um cabo Anselmo, amanhã um general qualquer, e no fim um povo inteiro reduzido a espectador da sua própria história.

Não quero cabos Anselmos, nem generais soviéticos da NATO a defender interesses russos na televisão. Não quero polícias que se sonham cruzados, não quero militares que se imaginam messias, não quero seguranças nocturnos que se acham justiceiros urbanos. O país precisa de instituições decentes, não de quintais ideológicos ao serviço de quem se serve de analfabetos e de pseudo-militares para se promover na política.

Digo-o com clareza, sem paninhos quentes: não alinho na retórica dos ditadores promovidos pelos americanos. Que cada um fique com os seus cabos Anselmos. Eu fico com a memória da história, essa que insiste em repetir-se para castigar os distraídos de sempre.


Adérito Barbosa, in olhosemlente.blogspot.com

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Bombarral ilustrado

 




Ando atrás do sonho do Euromilhões há décadas.

Na semana passada fui tentar a minha sorte à papelaria cá do burgo.

Enquanto esperava na fila para ser atendido, encontrei no expositor esta pequena maravilha.

Um livro simples, silencioso e profundo, que procura manter vivo o património cultural do Bombarral através do bilhete-postal ilustrado.

Peguei no livro, folheei-o e trouxe-o comigo.

Reúne uma cuidada selecção de postais antigos, testemunho vivo da evolução da vila de Bombarral ao longo do século XX.

Neste livrinho tão mimoso podemos passear pelas ruas, ver edifícios e espreitar costumes que ajudaram a moldar a identidade da terra.

Muitos parabéns ao autor, que não sei quem é, apenas que dá pelo nome de José Vítor Silva.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blospot.com

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Distantes, intocáveis, indiferentes mas reinantes



Todos os meses, catorze vezes por ano, o IASFA enfia-nos a mão nos bolsos.

Convém explicar o trajecto de um documento enviado para comparticipação de actos médicos, para que todos os militares percebam a engrenagem e compreendam de uma vez por todas onde nós estamos enfiados:

1º passo - Aguarda Processamento: à espera que alguém se digne olhar para o documento.

2° passo - Processado: registaram-se os actos médicos e valores.

3° passo - Verificado: confirmaram que as contas estão certas.

4.o passo - Certificado: a comparticipação está dentro da lei.

5° passo - Autorizado: aguarda liquidação.

6° passo Liquidado: foi enviado para pagamento, mas sem confirmação.

7.º passo - Pago: quando o dinheiro chega efectivamente à conta.

8º passo - Devolvido: irregularidade ou erro.

9° passo - Arquivado: já não conta, fica apenas no histórico.


Pois bem: um documento datado de 27-11-2024, com comparticipação no valor de 240 euros. Hoje, nove meses depois, continua a vaguear na plataforma. Encontra-se na etapa “Classificado”, como se fosse um videojogo mal programado em que o utente nunca passa de nível. Em nove meses apenas atravessou três etapas. Faltam outras tantas, sem prazo, sem horizonte e sem qualquer justificação plausível.

Para tentar perceber o absurdo, fui rever um outro documento mais antigo, no valor de 38 euros. Segundo o sistema, está pago. Fui à Caixa Geral de Depósitos confirmar. Resultado: nada. Nenhum registo. Nenhum depósito. O pagamento existe apenas no sistema, mas nunca na conta.

Daqui só se pode concluir o óbvio: o IASFA arrasta processos durante praticamente um ano para chegar a uma liquidação que não corresponde a qualquer pagamento real. E quando finalmente “paga”, a pergunta é simples: para onde vai o dinheiro? Não entra na conta do beneficiário. Fica retido algures entre a máquina burocrática e as prioridades da corporação que a dirige.

O problema é estrutural. O IASFA tornou-se um mastodonte administrativo, gerido por uma cúpula que parece viver de expedientes, carimbos e opacidade. Alimenta-se todos os meses dos descontos dos utentes — catorze meses por ano, quando o calendário só conhece doze — e devolve em troca lentidão, ineficiência e silêncio.

Um seguro privado demora em média 45 dias a comparticipar actos médicos. O IASFA precisa de nove meses para não pagar. A diferença é clara: no privado a doença é tratada, no IASFA a doença é arquivada.

Este mecanismo não é um apoio. É um teste à paciência de quem desconta. O beneficiário fica sempre na posição do pedinte, à espera de uma esmola que nunca chega. E todos falam, todos se queixam, mas nada muda. O IASFA continua a reinar nos bolsos dos seus utentes, impune e intocável, como se o dinheiro fosse deles e não de quem o entrega religiosamente todos os meses.

Para o IASFA, um ano tem catorze meses. E reinam como o Sol: distantes, intocáveis e indiferentes.

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

15 de Agosto

 


Trago esta data colada a mim como uma lapa — daquelas que não despega. Não sei se foi o tempo que escolheu este dia para mim, ou se fui eu que, aos poucos, lhe fui dando importância. Sei que volta todos os anos com ar solene, como quem vem cobrar. E eu, como sempre, finjo não dar por nada. Faço-me desentendido. Às vezes convenço-me outras, nem por isso.

Nunca fui de contar os anos. Não por medo talvez por desinteresse. O que é que isso me diz? Que já dei 66 voltas ao sol? E depois? Sempre fui mais de medir os anos pelo que me deixaram no corpo, e menos pelo que escreveram nos papéis. A barba branca apareceu cedo, aos vinte, e foi ficando — como quem ocupa lugar com tempo. Mas nunca serviu de referência. As rugas, que esperava que viessem em tropa, falharam a convocatória. Ou então andam por dentro, disfarçadas nos joelhos que rangem, nas noites que já não toleram bebidas brancas, e nos músculos que protestam só por me levantar da cadeira. O tempo não me vincou a cara, mas tem andado a esculpir-me por dentro.

Sentado em cima dos 66 — que é onde oficialmente me encontro, apesar de não os sentir — dou comigo a pensar como é que se leva a vida daqui para a frente. Não é drama, nem crise existencial. Só que já deixei de ir prà noite há tanto tempo que nem sei a cor das luzes dos bares. O cheiro a patchuli foi substituído por creme anti-inflamatório. Já não tenho pachorra para os mesmos engates, as mesmas verdades mansas e as mentiras cansadas dos balcões. Já não danço. O whisky e o café perderam-se-me. Ainda provei um gole outro dia, por cortesia — e foi a noite toda a ouvir os joelhos a protestar. 

Agora é isto: adaptar-me à água, à moderação e aos comprimidos. Um para o colesterol, outro para o reumático, mais três para a anemia, outro para a doença autoimune, que ainda ando a decorar o nome. E pronto, com este andamento, qualquer dia o “azul” também começa a parecer inevitável.

Tomo-os todos com alegria, vá. Como quem aceita o ritual. Há coisas piores do que engolir comprimidos.

Sentado em cima dos 66, aprendi a fazer de conta que sou um homem zen. Quando o meu neto de cinco anos cá está, trocam-se os papéis. Em vez de fazer figura de velho macaquinho — daqueles que falam fininho e fazem perguntas parvas — eu visto a pele do miúdo, e é ele quem se vê aflito comigo. Os processadores dele funcionam lindamente, por isso mesmo Inventamos teatros, ficções, absurdas. Às vezes faz grande banzé: não gosta de vestígios de cenoura na sopa, mas antes comera cenoura crua. Ou então porque não quer sair de casa, quer ver os bonecos. Entra no carro a choramingar e diz que tem calor. Nada que um gelado não resolva. Eu rio-me. O mundo dele tem mais lógica do que o meu.

E é esta versão de mim que mais gosto. Um avô novato. sentado em cima dos 66, mas com vontade de levantar voo, com a certeza absoluta de que o corpo pode trair, mas o espírito ainda dá cartas. Sinto-me mais leve do que muito garoto de 40, que já nasceu cansado e com a alma encarquilhada.

Aos que andam por aí com a minha idade e já decidiram armar-se em velhos, deixo o recado: ide catar-vos. Deixai-vos de lamúrias, peninhas e discursos arrastados do antigamente é que era bom. O que já foi, foi. Agora é agora. E eu estou cá Inteirinho da Silva com um corpo que parece ter menos vinte e um espírito que ainda não encontrou idade. E, acima de tudo, com a liberdade de dizer o que penso sem me preocupar se agrado. Porque se há coisa boa nisto de ter 66 e  já não tenho de provar nada a ninguém.

Faltam-me três anos — ouviram bem, só três — para atingir o magnífico número 69. E assim que os fizer, vou ter de arranjar outra coisa qualquer para me manter a mente enxuta. 

Agora que o neto já foi para casa dos pais, tudo voltou ao normal. Retomei a rotina: já cortei as ervas, reguei as árvores de fruto (incluindo o limoeiro, que desde que o Xico esfregou os cornos nele, ficou raquítico), tratei do Boris, desarrumei e arrumei a garagem dez vezes e lavei o pátio pela milésima vez.

Só falta ir meter o nariz no X, ver se me actualizo nas fofoquices.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Alcochete


Portugal é um país maravilhoso, sobretudo quando se olha para a sua vertente tradicional – aquela que resiste ao desgaste dos anos, que sobrevive à pressa da modernidade e que continua a reunir gerações em torno das mesmas emoções que encantaram os avós e hão-de emocionar também os netos. Se há terra onde o testemunho vivo desta força cultural se mantém, essa terra é Alcochete.

Durante grande parte do ano, Alcochete é um lugar sereno, onde o Tejo repousa junto ao casario e às ruas estreitas, desenhadas para acolher passos lentos e conversas demoradas. É uma vila pacata, habitada por gente simples, mas ferrenha, onde o tempo parece correr ao ritmo das marés.

A vida desenrola-se sem pressas: ora cheira a maré-cheia, ora a lodo quando a maré vaza, deixando no ar o odor salgado do rio. Mas basta chegar agosto para que o sossego dê lugar a uma energia vibrante.

As festas de verão transformam a vila num centro de alvoroço e alegria. Ruas e praças enchem-se de luzes e cores, e a música popular ecoa até nas esquinas mais recatadas. O cheiro a sardinha assada mistura-se com o aroma doce das farturas, enquanto o burburinho das barraquinhas acrescenta ainda mais vida ao cenário. É assim que Alcochete se abre ao mundo, recebendo de braços abertos todos os que chegam de perto e de longe.

Parece-me haver famílias inteiras que regressam todos os anos, e amigos – como foi o meu caso – que marcam reencontros apenas nesta altura e acabam por descobrir a vila pela primeira vez. O ambiente é de partilha e convívio, com bailaricos que se prolongam pela madrugada, concertos ao ar livre, procissões solenes e, claro, a festa brava do touro, que é o grande orgulho local, coroada pela charanga – que, por acaso, não fiquei para ver.

A tradição taurina de Alcochete não é apenas um espetáculo: é um ritual com raízes profundas, uma herança que passa de geração em geração e um símbolo de identidade local. As ruas enchem-se para assistir às largadas, momentos em que a coragem e a destreza se misturam com a adrenalina e o entusiasmo da multidão. É uma experiência intensa, onde o respeito pela tradição se sente tanto no silêncio expectante antes da saída do touro como no clamor colectivo que acompanha cada movimento. E quando acontece uma marrada ou algo pior - Alcochete suspende a respiração.

Toda a comunidade participa, de uma forma ou de outra. Uns arriscam-se na arena improvisada das ruas, outros ajudam na organização, e muitos preferem vibrar a uma distância segura.

Em Alcochete, a festa não é apenas um evento no calendário: é um reencontro com as raízes, um brinde à cultura portuguesa na sua forma mais pura e autêntica, um momento em que o passado e o presente se dão as mãos. Quando as luzes se apagam e a vila regressa à tranquilidade habitual, ficam no ar o eco das vozes, o cheiro do rio e a certeza de que, no próximo agosto, tudo recomeçará – porque certas tradições não conhecem fim, apenas novas formas de continuar a existir.


Adérito Barbosa in 

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quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Bombarral a ferver

Está a decorrer, entre os dias 7 e 12 de agosto, no Bombarral, o 40.º Festival do Vinho e o 30.º da Pera Rocha.

O recinto está encantador, tudo muito bem arrumadinho. Há vinho para todos os gostos e tasquinhas de todos os feitios. Basta ter algum dinheiro — não é preciso muito — para se poder provar ou degostar os vinhos de Portugal.

Só o copo custa 3 euros.

Podes jantar ou petiscar por cá. Depois, é só aproveitar os concertos: vão passar pelo palco os Xeques Orquestra, Para Sempre Marco, Miguel Gameiro, Van Zee, Carolina Deslandes e o inevitável Quim Barreiros.

Rapaziada, venham até cá viver esta maravilha do vinho.

Venham no sábado... que eu não estou cá.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

domingo, 3 de agosto de 2025

O Ranhoso de sempre

 


Já cansa esta ladainha da esquerda europeia, com o Sr. Macron à cabeça e o seu bando de galinhas lusitanas, a cacarejar pela solução dos dois Estados - o da Palestina, que nem sequer existe juridicamente, ou o Estado do Hamas — esse sim, real, armado, e reconhecido como organização terrorista pela União Europeia, Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Japão e por alguns países árabes.

A esquerda portuguesa, fiel ao seu papel de activista de café, quer ser  pioneira no reconhecimento de um Estado fantasma, dividido entre dois bandos que se odeiam quase tanto quanto odeiam Israel. Desde 2007 que o Hamas controla a Faixa de Gaza com mão de ferro, após ter deposto violentamente a Autoridade Palestiniana. Desde então, há 17 anos, que não há eleições. Em vez disso, há purgas internas, repressão política, e um regime teocrático que impõe regras medievais à população civil. O outro Estado, a Cisjordânia — vive sob uma administração corrupta, sem legitimidade popular, cuja única função parece ser gerir os fundos internacionais que nunca chegam à população.

O entretenimento preferido de ambos continua a ser o mesmo: lançar foguetes sobre civis israelitas, enviar homens-bomba para cafés, esplanadas e autocarros, raptar mulheres, crianças e idosos, e depois — claro — escudar-se atrás de hospitais e escolas para colher dividendos mediáticos. Desde 7 de Outubro de 2023, com o massacre de mais de 1.200 civis israelitas, incluindo bebés queimados vivos e mulheres violadas em massa, o Hamas consolidou o seu estatuto de organização terrorista internacional. O mundo civilizado ficou chocado. A esquerda ocidental, como sempre, relativizou o assunto.

A propaganda é de tal ordem que, se dermos ouvidos às manchetes, Israel só combateu crianças nos últimos três anos. Ninguém viu um único militantes do Hamas mortos. E, no entanto, estima-se que, desde o início da ofensiva israelita após 7 de Outubro, cerca de 40.000 combatentes tenham morrido.

A indústria palestiniana é, em grande parte, mediática. Produz vídeos para redes sociais, encena vítimas, manipula imagens e converte cada confronto em espectáculo para consumo das elites morais do Ocidente. A ciência praticada em Gaza é a da manipulação emocional. A tecnologia é importada do Irão: foguetes, explosivos, drones. O investimento humanitário que entra — cerca de 1,5 mil milhões de dólares anuais, segundo a ONU — é frequentemente desviado para construir túneis e esconderijos subterrâneos.

E no centro desta farsa está António Guterres, o pior Secretário-Geral da ONU da história recente. Um homem que conseguiu o insólito feito de ser declarado persona non grata por Israel. Sob o seu mandato, a ONU falhou em todos os principais conflitos da década: Ucrânia, Gaza, Síria, Sudão, Haiti. 

E… aquele assunto dos curdos é melhor nem dizer nada.

A sua diplomacia resume-se a declarações de condenação previsíveis, sem efeito prático, sempre carregadas de ambiguidade moral — com o dedo mais facilmente apontado a democracias ocidentais do que a ditaduras teocráticas.

Guterres, como bom esquerdista, confunde Estado com grupo armado. Confunde ciência com ressentimento. Compara um país democrático, com parlamento, imprensa livre e sistema judicial funcional, com uma organização jihadista cujo objectivo declarado é a destruição de Israel. Confunde fábricas de microchips com fábricas de mártires. Confunde um país que exporta tecnologia médica para o mundo inteiro com uma faixa de terreno que exporta vídeos de propaganda com crianças mutiladas — muitas vezes vítimas de explosões provocadas por armamento defeituoso do próprio Hamas.

O conflito israelo-palestiniano não será resolvido com moções simbólicas nos parlamentos europeus, nem com cimeiras diplomáticas onde se trocam sorrisos e frases feitas. Resolver-se-á quando os países árabes deixarem de usar os palestinianos como peões e quando os próprios palestinianos decidirem se querem trabalhar ou continuar a viver da glória do martírio subsidiado.

Portugal, como sempre, ranhoso, já se posicionou na linha da frente para reconhecer aquilo que não existe. Ninguém mandatou o governo para isso.

Na foto um membro do Hamas carrega um boneco disfarçado de cadáver. 


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

domingo, 27 de julho de 2025

A Felicidade da miséria e ignorância da Trabessa


Esta madrugada, depois de assistir a mais um episódio de pancadaria entre um general e um jornaleiro —, fui dar uma volta pelo Facebook. Diga-se, não foi por tédio. Procurava a crónica viva do dia. Esperava ver o General Carlos Branco com gelo no olho, a mascar a vergonha da surra que apanhou do jornaleiro Bello, com aquele ar fingido de missão cumprida que os generais sabem ensaiar. Mas não, tropecei nas desculpas esfarrapadas do guerrilheiro.

Um clique bastou. Uma imagem partilhada algures: um pequeno aglomerado de casas encravadas entre pedras e arbustos secos, nas encostas de Polon di Engenhos, baptizado — vá-se lá saber por quem — de Trabessa. A imagem é crua. Pobreza. Seca. Resistência. Uma espécie de sobrevivência amarrada à pedra.

Mas o que me rebentou com os miolos não foi a imagem em si. Foram os comentários. "Aldeia maravilha", "coisa linda", "pura natureza", "quem me dera viver num sítio assim". Palermices de luxo. Uma galeria de poesia barata escrita por gente que até sabe o que é carregar água à cabeça, cagar no mato ou ver um filho morrer de apendicite por falta de um posto de saúde mas que agora com um telemóvel e 5G, acha que a miséria é paisagem natural.

Alguns caboverdianos estão apaixonados pela sua própria pobreza. Mas não a pobreza real, fedida, sufocante, estão apaixonados pela versão polida, limpa, emoldurada, com legenda inspiradora e tudo: como se o sofrimento fosse um património a proteger. E depois queixam-se que os políticos continuam a viver como condes. Alguém tem de usufruir do conforto, já que o povo se satisfaz com a estética da miséria.

É nesse mundo que o déspota José Maria Neves é presidente — o eterno incapaz, pai da nação endividada, padrasto dos esquecidos. Ele e os seus herdeiros, filhos do compadrio e da propaganda estalinista, vivem mergulhados na opulência e intriga, enquanto o povo se orgulha da sua própria miséria. "Nôs ka sta mal", dizem. Pois claro. O mal é um privilégio dos que ainda se indignam.

Os deputados de Cabo Verde são outra aberração, uns papagaios engravatados que recitam leis inúteis enquanto o povo se alimenta de vento e esperança. Falam montes de baboseiras, palavras ocas, vomitadas de cima, enquanto as aldeias continuam paradas no ano 1920.  Pegaram na palavra portuguesa Travessa, assassinaram-na sem piedade, e ao cadáver chamaram "marca local". Ser burro é triste.

Se a ignorância do povo é pecado, a hipocrisia dos governantes é crime. Eles fodem o povo até ao tutano, exigem vénia, respeito, e o título de excelência. E o povo, domesticado, agradece. Lambe-lhes o rabo com orgulho, chama-lhes doutores e aplaude quando chegam de carros novos pagos com dívida pública. É o síndrome de Estocolmo em versão africana. Chegaram ao cúmulo de prometer aviões a voar pela metade.

Mas a culpa não é só deles. É também de quem acha a miséria bonita, de quem partilha fotos de pobreza com emojis de coração, de quem romantiza a dureza de um povo que não escolheu ser forte — apenas não teve alternativa. De quem confunde resistência com destino.

Trabessa não é coisa linda. É o retrato da negligência. Um postal ilustrado do fracasso do Estado, da ausência de visão, do desprezo institucionalizado por quem vive longe do poder. E enquanto continuarmos a tratar a pobreza como arte, os artistas continuarão os mesmos: políticos ricos, povo ignorante — e um país inteiro a bater palmas ao seu próprio funeral.

E José Maria Neves ainda tem a desfaçatez de dizer que a namorada faz de primeira dama e por isso recebe 310 contos mensais — mais de sete vezes o ordenado médio no país. Talvez receba esse dinheiro por outros serviços. Uma namorada fazer de primeira dama é preciso ter uma lata do tamanho da ilha. E é aqui que se entende a imagem. Não é uma aldeia. É uma metáfora. Uma ferida exposta. Uma miséria transformada em 

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sábado, 19 de julho de 2025

Boris


Finalmente temos cão. Disciplinado, obediente grandalhão, goloso e gordo.

Continua amigo do carteiro, amigo do João Bernardo, amigo do bode e meio amigo da gata.

Já apanhou um coelho mas, não sei como.  Comeu-o com pele e tudo. 

Já tem 22 meses. 

Só falta saber o que ele é capaz de fazer com um intruso.

No joelho, ainda a marca recente da última queda de moto.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Eles perderam a guerra no estúdio

 



Montaram uma banca de peixeiradas na praça da lixeira CNNPortugal. A única diferença é que aparecem de farda invisível e patente no ego, disparam argumentos como quem dá ordens para marchar. E quando o contraditório lhes bate à porta, respondem como se estivessem a lidar com recrutas ou com inferiores hierárquicos aos gritos, com ataques pessoais e, nalguns casos, com bocas foleiras à mistura.

É neste lamaçal estratégico que alguns dos nossos generais de microfone na lapela continuam a sarnar a molécula ao totó português com a história de que Putin está a um passo da consagração, como se Moscovo já estivesse a ensaiar o desfile da vitória.

Neste contexto, têm-se multiplicado os atritos no lixo canal. Carlos Branco, ex-oficial de alta patente da NATO — possivelmente um agente da FSB infiltrado — tem vindo a adoptar uma leitura tão simpática da estratégia russa que quase parece funcionário do Ministério da Defesa em Moscovo. Por outro lado o meu velho conhecido Agostinho, com o seu estilo educacional forçado, doce como mel, mas menos descarado, não esconde as dificuldades em aceitar visões diferentes, especialmente quando vêm de jornalistas ou comentadeiras. Estas últimas, por serem mulheres — e nós, os casados, já sabemos: quando elas se passam connosco, atiram pratos ao ar, copos e choram desalmadamente de tanta infelicidade por estarem casadas com um homem bom — tornam o estúdio num local muito perigoso para se estar.


Aqui no monte, ouço-os tranquilamente e sinto um odor a bafo de álcool da caserna.

Habituados a mandar sem serem questionados, os generais transportam para os estúdios de televisão a lógica do quartel. Só que no mundo civil a autoridade não está nas estrelas nem nos galões — está nos argumentos. E, de preferência, servidos em esplanadas com elevação. Mas eles não vão para discutir, vão para comandar. E quando alguém ousa questionar o comandante, está tudo fodido. Começam os ataques pessoais num suspiro teatral.

Carlos Branco, por exemplo, já protagonizou diversos episódios tensos com o jornaleiro Pedro Bello, chegando ao ponto de virar um copo de água num acesso de fúria contida. O meu amigo Agostinho não ficou atrás, envolvido em discussões onde o tom roçou o insulto directo, sobretudo com comentadeiras que não lhe prestaram continência analítica. Estes gestos de impaciência, que no quartel podiam ser tolerados como temperamento do comandante, na praça pública soam a birra de velho autoritário que nunca aprendeu a discutir ideias.

É a ilusão do monopólio do saber.

Convém sublinhar que os três generais (uns mais do que outros) representam uma elite militar que nunca se habituou à crítica. Cresceram num meio onde se repetem ordens e onde o debate é substituído pela execução. Passar da caserna para o estúdio, sem um processo de adaptação crítica, leva a uma espécie de choque civilizacional. Acreditam ter o monopólio da análise militar e estratégica, como se os civis — mesmo bem informados — não tivessem legitimidade para opinar sobre política internacional. E essa falsa ilusão de superioridade intelectual colide de frente com a realidade democrática do contraditório.


Ao serem confrontados com dados, interpretações alternativas ou simplesmente com perguntas incómodas, os generais perdem o norte. Não conseguem defender a sua posição com serenidade nem aceitar que o mundo não é uma ordem de batalha. É aí que entram os insultos, os olhares de desdém e os célebres: “não me interrompa, e mais, digo-lhe mais, não lhe admito, eu estive na guerra, vá estudar e depois venha para aqui falar”.

Com esta postura, os generais perderam a guerra no estúdio claramente.

Ironia das ironias: homens que dedicaram a vida a estudar guerra não conseguem conviver com o conflito mais básico da democracia — o debate. Perderam a compostura, perderam a razão e, pior ainda, perderam o respeito do público, que esperava deles elevação, não berraria. Por isso mesmo eu próprio não os reconheço!

Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Filhos da Sombra



Nas vielas da ilha, ao cair da tarde

Marchavam em silêncio os senhores da fraude

Com alianças brilhantes e promessas vazias

Desciam sobre moças em noites sombrias

faziam juras a raparigas de tranças,

com olhos grandes demais para a idade.


— És linda. Mereces mais do que ser donzela —

diziam, com a mesma voz que usavam na missa.

Ofereciam futuro,

ofereciam nome,

e ao cair da noite, tomavam o corpo.

Comiam com pressa,

e deixavam a alma a arder nos lençóis.


Tinham três, quatro, cinco mulheres ao mesmo tempo.

E quase todas sabiam de todas.

Dividiam-nas como quem reparte sal,

mas em casa, a legítima dormia

de rosário na mão e vergonha nos olhos.


Os outros filhos — os da sombra —

nascidos no silêncio,

em casas emprestadas,

com nome de mãe e rasto de pai ausente.

Uns com apelido inventado,

outros sem apelido nenhum.


E quando cresceram,

viram os irmãos do casamento

a subir degraus com sapatos limpos,

com diploma na parede

e arrogância na língua.


Eu sou irmão de polícia barrigudo,

de autodidata analfabeto,

de professor que ensina mas nunca leu,

de músico de batuque que desafina na vaidade.

Sou irmão de advogado por correspondência,

de engenheiro de obra de pala,

de doutor da mula e mestre do discurso da treta converseta


Eu sou o erro.

Sou o pedaço esquecido da história,

o parente de gaveta,

a nódoa no linho da família.


Quando falo, fazem-se surdos.

Quando apareço, disfarçam.

Quando passo, mudam de passeio.

E quando escrevo fingem

Quem não me lêem.


Cresci a ver tudo.

Vi-o a atravessar a rua

sem coragem de cruzar o meu olhar.

Vi os do casamento, os filhos 

vestirem o sangue com vaidade,

sem saberem que o sangue é sujo

quando a verdade é limpa.


Eles falam alto nos jantares.

Recitam leis, defendem moral,

batem no peito com títulos e cargos.

Mas tremem com um teste de ADN.

Fazem discursos sobre família

mas têm armários cheios de fantasmas.


E eu?

Eu sou o fantasma com rosto

Da minha mãe que foi vítima 


Não quero herança.

Não quero lugar à mesa.

Não quero o nome,

quero história,

quero que alguém diga:

— Ele também é nosso

das vergonhas da ilha.


Porque o pai que me gerou

espalhou filhos como semente ao vento,

e agora colhe silêncio nos funerais.

O caixão desce,

mas os segredos não.

O segredo ficou.


E há-de chegar o tempo —

o tempo em que os filhos da sombra

hão-de sair da margem,

não para pedir,

mas para dizer:


Estamos cá.

Fomos feitos como vós,

mas crescemos no escuro.


E há-de doer.

Doer nos retratos,

nas árvores genealógicas,

nas biografias mentirosas.

Porque a verdade,

quando vem,

não pede licença.

Entra.


E ninguém quer entender

A negra história da ilha

negra história da ilha…

A negra história.

negra a história…

da ilha.

da Ilhaaaaaaaaaa!


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Eu sou um bom idiota

Sou, hoje, um dos grandes sábios do meu tempo. Sei tudo, comento tudo, opino sobre o que conheço e, sobretudo, sobre o que não faço a menor ideia. Acordo e, mal abro os olhos, já estou pronto a deixar a minha marca na Humanidade — com um scroll e dois comentários sobre temas que mal sei pronunciar. 

Tenho um telemóvel e uma ligação miserável à internet: é quanto basta para me sentir preparado para discutir desde geopolítica a misticismo quântico, passando por vacinas, inflação, meteorologia, ortografia comparada e, claro, corrupção portuguesa — e ainda tenho tempo para me armar em perito do acidente do Lamborghini em Espanha.

Vou a um exemplo: eu digo alto e bom som que Sócrates é corrupto, mas não sei explicar bem porquê. O Ministério Público também não sabe explicar, por isso há dez anos que os gajos andam às turras — mas eu sei, vi algures no Facebook e não preciso de mais. Se há coisa que aprendi com a internet foi a dispensar provas evidentes — basta-me ligar a CMTV ou  CNNPortugal.

Também sei que os políticos são todos ladrões. Não sei bem o que roubam — eu acho que há uns cinco ou seis, ou vinte escalões de IRS — e se me pedissem para fazer uma simulação de imposto, borrava a folha toda. Mas que eles nos estão a roubar para dar aos ricos, estão. É evidente, está tudo feito. Vi num vídeo com um tipo aos gritos numa manifestação, com uma tabela do IRS às costas e um cartaz no fundo a dizer "ladrões".

Nunca na vida li um tratado sobre economia, mas dou conselhos fiscais no Facebook como se tivesse saído ontem do ISEG. Não percebo a diferença entre RNA e ADN, mas já escrevi vários textos sobre os perigos da vacinação. Mal sei escrever português decente, mas dou lições de gramática a quem me aparece pela frente. A minha fonte de informação? Um vídeo com música de fundo e legendas mal escritas. Se tem muitos gostos, é porque é verdade — certo?

E se há coisa em que me especializei foi em fingir que não sou ignorante. Porque o meu telemóvel, esse pequeno altar da minha vaidade, faz de mim um génio por breves minutos. Dou por mim a citar Aristóteles sem saber quem foi, a falar de inflação sem saber fazer uma regra de três simples. Clico, partilho, indigno-me, escrevo frases carregadas de certezas sobre assuntos que nem sei pronunciar. E o mais bonito? Faço tudo isto com a confiança inabalável de um catedrático com pós-graduação em coisa nenhuma.

Mas não estou sozinho. Faço parte de um exército cada vez maior: os pobres, os menos instruídos, os analfabetos funcionais — como eu. Gente como eu, que nunca teve acesso a muita coisa, mas que agora, com um telefone na mão, se sente finalmente no topo da pirâmide. Igual ao doutor. Ou melhor. Porque o doutor estudou, mas eu vi dois vídeos de cinco minutos no TikTok, com gráficos e tudo. E, ao contrário dele, eu não me deixo enganar pela ciência. Eu pesquiso. No Facebook. De madrugada. Mesmo com sono.


Claro que isso tem o seu preço. A desinformação começa a fazer ricochete. Aponta-se para fora, mas acerta sempre nos mesmos: nós próprios. Somos os primeiros a acreditar em teorias absurdas, os primeiros a partilhar notícias falsas, os primeiros a cair nas armadilhas de quem sabe mais — e usa esse saber para nos manipular. Mas seguimos, firmes e confiantes, como se fôssemos iluminados por um saber que não temos. E quanto menos sabemos, mais opinamos.

A certa altura, deixei de perguntar. Passei a afirmar. Já não me interessa saber como funciona uma coisa — interessa-me dizer aos outros que está mal. Não interessa compreender uma ideia — interessa-me indignar-me com ela. A dúvida morreu, e com ela a possibilidade de aprender. Agora é tudo certeza. Li algures. Alguém me disse. Está num vídeo com muitos comentários. É factual, portanto.

A língua portuguesa que me perdoe. Se Camões visse os meus textos no blog olhosemlente.blogspot.com, atirava o livro à água, atirava-se ao Tejo outra vez só para salvar o livro e corrigir frases sem pés nem cabeça, erros de palmatória, palavras inventadas, anglicismos a mais e sentido a menos. Mas, mesmo assim, continuo, porque agora tenho inteligência artificial que corrige o que escrevo. Ou, pelo menos, tenta. A pontuação pode ficar mais direitinha, mas o disparate continua lá todinho.

E claro, como bom ignorante que sou, tenho palco. Posso ser ministro, juiz, professor, epidemiologista, historiador, polícia, polícia outra vez ou mesmo ladrão — tudo no mesmo dia, bastando para isso ligar o telefone e abrir a boca. Digo as maiores barbaridades com orgulho, como se estivesse a prestar um serviço público. Sou um emissor de ignorância em alta definição. E como ninguém me contradiz — ou, se o fazem, eu bloqueio — sinto-me cada vez mais sábio.

O mais assustador? É que esta ignorância que cultivo virou estatuto. Identidade. Eu não sou burro: sou livre-pensador. Eu não sou mal informado: sou contra a manipulação dos media. Eu não erro: tenho uma visão diferente. E quanto mais me engano, mais teimo. Porque, no mundo digital, mudar de opinião é sinal de fraqueza. E eu, como todo o bom idiota digital, sou forte. Mesmo quando estou errado. Sobretudo quando estou errado.

As tecnologias não são más. O problema sou eu. Eu e os outros como eu, que fizemos do telefone uma extensão do nosso ego desinformado. Um livro podia ser usado para aprender, mas eu prefiro ver vídeos de três minutos que confirmem o que já penso. O silêncio podia ser usado para pensar, mas eu preciso de dizer tudo o que me passa pela cabeça. E o resultado é este: uma cacofonia de opiniões, onde todos falam, ninguém escuta, e ainda menos gente sabe do que está a falar.

Talvez o futuro precise de menos ignorantes como eu a mandar bitaites, e de mais gente que sabe estar calada. Mas, enfim, isto sou eu a filosofar. Entre dois vídeos de teorias da conspiração e um post indignado sobre a gramática do ministro da Educação. Vou ali insultar alguém no X e já volto.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

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