Trago esta data colada a mim como uma lapa — daquelas que não despega. Não sei se foi o tempo que escolheu este dia para mim, ou se fui eu que, aos poucos, lhe fui dando importância. Sei que volta todos os anos com ar solene, como quem vem cobrar. E eu, como sempre, finjo não dar por nada. Faço-me desentendido. Às vezes convenço-me outras, nem por isso.
Nunca fui de contar os anos. Não por medo talvez por desinteresse. O que é que isso me diz? Que já dei 66 voltas ao sol? E depois? Sempre fui mais de medir os anos pelo que me deixaram no corpo, e menos pelo que escreveram nos papéis. A barba branca apareceu cedo, aos vinte, e foi ficando — como quem ocupa lugar com tempo. Mas nunca serviu de referência. As rugas, que esperava que viessem em tropa, falharam a convocatória. Ou então andam por dentro, disfarçadas nos joelhos que rangem, nas noites que já não toleram bebidas brancas, e nos músculos que protestam só por me levantar da cadeira. O tempo não me vincou a cara, mas tem andado a esculpir-me por dentro.
Sentado em cima dos 66 — que é onde oficialmente me encontro, apesar de não os sentir — dou comigo a pensar como é que se leva a vida daqui para a frente. Não é drama, nem crise existencial. Só que já deixei de ir prà noite há tanto tempo que nem sei a cor das luzes dos bares. O cheiro a patchuli foi substituído por creme anti-inflamatório. Já não tenho pachorra para os mesmos engates, as mesmas verdades mansas e as mentiras cansadas dos balcões. Já não danço. O whisky e o café perderam-se-me. Ainda provei um gole outro dia, por cortesia — e foi a noite toda a ouvir os joelhos a protestar.
Agora é isto: adaptar-me à água, à moderação e aos comprimidos. Um para o colesterol, outro para o reumático, mais três para a anemia, outro para a doença autoimune, que ainda ando a decorar o nome. E pronto, com este andamento, qualquer dia o “azul” também começa a parecer inevitável.
Tomo-os todos com alegria, vá. Como quem aceita o ritual. Há coisas piores do que engolir comprimidos.
Sentado em cima dos 66, aprendi a fazer de conta que sou um homem zen. Quando o meu neto de cinco anos cá está, trocam-se os papéis. Em vez de fazer figura de velho macaquinho — daqueles que falam fininho e fazem perguntas parvas — eu visto a pele do miúdo, e é ele quem se vê aflito comigo. Os processadores dele funcionam lindamente, por isso mesmo Inventamos teatros, ficções, absurdas. Às vezes faz grande banzé: não gosta de vestígios de cenoura na sopa, mas antes comera cenoura crua. Ou então porque não quer sair de casa, quer ver os bonecos. Entra no carro a choramingar e diz que tem calor. Nada que um gelado não resolva. Eu rio-me. O mundo dele tem mais lógica do que o meu.
E é esta versão de mim que mais gosto. Um avô novato. sentado em cima dos 66, mas com vontade de levantar voo, com a certeza absoluta de que o corpo pode trair, mas o espírito ainda dá cartas. Sinto-me mais leve do que muito garoto de 40, que já nasceu cansado e com a alma encarquilhada.
Aos que andam por aí com a minha idade e já decidiram armar-se em velhos, deixo o recado: ide catar-vos. Deixai-vos de lamúrias, peninhas e discursos arrastados do antigamente é que era bom. O que já foi, foi. Agora é agora. E eu estou cá Inteirinho da Silva com um corpo que parece ter menos vinte e um espírito que ainda não encontrou idade. E, acima de tudo, com a liberdade de dizer o que penso sem me preocupar se agrado. Porque se há coisa boa nisto de ter 66 e já não tenho de provar nada a ninguém.
Faltam-me três anos — ouviram bem, só três — para atingir o magnífico número 69. E assim que os fizer, vou ter de arranjar outra coisa qualquer para me manter a mente enxuta.
Agora que o neto já foi para casa dos pais, tudo voltou ao normal. Retomei a rotina: já cortei as ervas, reguei as árvores de fruto (incluindo o limoeiro, que desde que o Xico esfregou os cornos nele, ficou raquítico), tratei do Boris, desarrumei e arrumei a garagem dez vezes e lavei o pátio pela milésima vez.
Só falta ir meter o nariz no X, ver se me actualizo nas fofoquices.
Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com
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