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terça-feira, 21 de outubro de 2025

O silêncio dos cúmplices



Há um momento específico em que a humanidade revela o que verdadeiramente é: não quando grita, mas quando se cala. E o silêncio em torno do que o Hamas faz ao seu próprio povo é hoje a sinfonia moral do mundo civilizado. Uma melodia suave, conveniente, tocada em surdina para não incomodar jantares, cimeiras e palestras sobre direitos humanos.

O Hamas lincha, executa e humilha palestinianos. Quem se atreve a discordar, desaparece. É rápido, limpo, eficiente. Na Faixa de Gaza, as valas comuns não precisam de discurso. E enquanto isso acontece, o planeta escolhe olhar para o lado porque a verdade dá mau enquadramento nas selfies militantes. O activismo internacional, tão barulhento quando a causa promete aplausos, engoliu a língua. Influencers regressaram ao conforto do edredão, politólogos de campus voltaram ao TikTok, e os indignados profissionais trocaram Gaza por brunch. Afinal, já não rende.

Na Europa, os governos dormem — ou fingem dormir, que vai dar ao mesmo. A ONU, com a sua maquinaria de relatórios e lágrimas burocráticas, ensaia consternações, convoca reuniões, e regressa sempre à mesma conclusão milenar: nada fazer é a solução mais diplomática. Guterres suspira, o ANC discursa, e Bruxelas medita sobre a paz enquanto passa a mão pelo queixo, calculando o próximo acordo energético. A moralidade é um Excel: filtra-se, ordena-se, e deleta-se quando não convém.

Macron, coitado, anda tão atarefado com a pose de estadista que até se esqueceu de olhar para o Louvre. E não me admiraria que um militante do Hamas tivesse levado as jóias — a Europa tornou-se o tipo de casa onde o ladrão entra, bebe um copo, leva a prataria e ainda deixa bilhete a agradecer.

No terreno, o espectáculo continua. Execuções públicas de rivais, diante de civis. Armazéns cheios até ao tecto com alimentos da ajuda humanitária, enquanto as ruas passam fome. O povo aplaude, resignado ou fanatizado — pouco importa, o efeito é o mesmo. Setenta anos a viver de promessas falsas, propaganda escolar e ódio subsidiado criaram uma população refém e cúmplice. A miséria tornou-se doutrina. O martírio, aspirina. A morte, ocupação.

E o Ocidente, esse animal moralmente obeso, finge que não vê. A esquerda europeia, tão rápida no punho cerrado e na lágrima estetizada, mudou de canal. Já não há poesia nem utilidade em condenar terroristas quando o inimigo não é o habitual. A indignação tornou-se um detergente: só é aplicada quando dá brilho na superfície certa. O resto é nódoa invisível.

Há um triângulo perfeito nesta tragédia:

terror interno, silêncio externo, manipulação diplomática.

Funciona como relógio suíço. O Hamas mata. Os activistas calam. A ONU lamenta. A Europa relativiza. E no fim, todos dormem descansados, embalados pelo mantra colectivo: - o culpado é sempre o mesmo. A moralidade, essa, ficou soterrada debaixo dos escombros que já ninguém fotografa.

O povo palestiniano é o cadáver político mais instrumentalizado do século XXI. Mantém-se vivo o suficiente para chorar e morto o suficiente para dar jeito. E o mundo, esse colosso de valores recicláveis, continua a dizer-se defensor da justiça enquanto observa o massacre em silêncio, desde que o massacre não estrague a agenda.

No fundo, ninguém quer paz. Querem narrativa. A paz não dá palco. A paz não elege. A paz não radicaliza. A paz não rende.

E por isso o silêncio continua. Porque é útil. Porque é confortável. Porque é cobarde.

E porque, no fundo, o mundo escolheu o lado que mais lhe convém: o lado onde não é preciso fazer nada.


Adérito Barbosa in olhosemlente.blogspot.com

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