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terça-feira, 10 de setembro de 2013

Comboio


Sou robusto, rápido, resistente, silencioso e seguro. Sou comprido e, quando embalo, o meu colo é um baloiço. Minha pele é em inox e cobre as vigas de aço que trespassam o meu corpo. Possuo dois olhos à frente e dois atrás, apesar de os dois passarem, por vezes, a quatro. O meu ventre é fofinho, mas tempos houve em que desgastava e calejava os rabos.
Testemunho diariamente coisas incríveis. Meu nariz calejado goza de um olfato assaz apurado. Conheço bem todos os odores, pelo que identifico quem ostenta “Dior” ou “Patchouli.”. Reconheço de igual forma os que se lhes opõem. Identifico os ensonados, os distraídos, as grávidas, os velhos e os jovens, todos amontoados, de manhã e ao fim do dia. Permito-me ver belas pernas, leitores de ocasião, unhas bonitas, unhas sujas ou unhas roídas. Umas vezes sinto-me cheio como um ovo, e outras não. Todos os dias passo à mesma hora nos mesmos locais e sigo sempre o mesmo caminho. Sou confidente de muita gente. Sou capaz de me lembrar de todos os namorados, das trocas de olhares - que nunca passaram de sonho -, assim como presenciei algumas cenas de amor das mais fugazes alguma vez vistas.

Contaram-me que os meus tetravôs eram pachorrentos, assobiavam quando partiam e deitavam fumo preto pela cabeça.

Para evitar que eu faça disparates, colocaram-me no coração um sistema tipo “bypass”, a que deram o nome de “homem morto”.

Sou o comboio!...

Adérito Barbosa

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