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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Manipulador da genética

Manipulador da genética

Quando frequentava o Ensino Secundário na Escola Industrial Fonseca Benevides em Alcântara, na década de 70, só lá havia dois alunos de raça negra: eu e um outro aluno que, por sinal, hoje é político da nossa praça. Na altura  chegaram os alunos brancos retornados das ex-colónias. Hoje, com as modernices linguísticas, chamar-lhes-iam certamente "refugiados".   Não, não  podiam ter esse nome, não! Naquele tempo não existia a UE.  Entre os países era o salve-se quem puder. Reinava a guerra fria e pairava sobre as nossas cabeças o medo da eminente invasão do Ocidente pelas forças do Pacto de Varsóvia. Tirando isso, estávamos todos felizes, porque a PIDE/DGS estava morta; nós, os alunos, éramos militantes de boca do MRPP, PCP ou MES - Arnaldo de Matos era o meu ídolo e as pinturas do muro em Alcântara, incentivando o povo à luta, eram tão perfeitas que todos os dias me sentava no primeiro  andar dos velhinhos autocarros verdes da Carris,  do  22 ou do 38, só para as contemplar melhor.
Nessa ocasião, a bagunça era tanta que, num ano, houve borla das grandes - a malta transitou de ano "sem saber ler nem escrever", como é vulgo dizer-se.

Com a chegada dos alunos brancos  retornados, cheios de tiques de colonos, a vida da escola ficou virada do avesso; de igual modo se alterou a vida pacata do aluno Adérito, que chegara à metrópole em 69, muito antes da revolução, e que, talvez por isso, desconhecia os costumes dos colonos e certas questões rácicas;  começou-se a ouvir pelos corredores um novo linguajar: - Preto para aqui, black para lá, carvão para acolá, preto é isto, preto é aquilo, matumbo, frases como pensa com os cabeça pá, os preto é burro, isso e muito mais. Samora Machel era então o bombo da festa.

A coberto de ser um dos mais velhos  e de ostentar os galões de “director do corredor da morte”, consegui impor respeito. Era conhecido por ser péssimo aluno a Português.  Para grandes males grandes remédios. A Directora de turma introduziu nos furos do meu horário uma tenebrosa coisa, a "sala de estudo”. A Professora e poetisa Matilde Rosa Araújo, minha professora de Português era a minha polícia chefe. Ela era uma polícia que me dava beijinho, muitos beijinhos. Nunca enviou para o meu colégio uma única nota, dando conta das minhas faltas. Se o tivesse feito, o colégio recambiava-me  para Cabo Verde, na hora e sem piedade. Hoje, se escrevo de maneira que se entenda, devo-o a ela, em certa medida. Contrariamente, eu era razoável nas disciplinas de Matemática, Electrónica Digital, Físico-Química, Geometria Descritiva e Ginástica Desportiva - dava um jeitinho nas argolas, a fazer o Cristo. Nos dias de baile era eu o DJ da escola, nos dias das RGAS e das RGEs técnico de som. Era tão mau técnico que ouvia-se muitas vezes o feedback do inflamado discurso comunista  do Presidente da Associação de Estudantes, a acossar a malta à insubordinação.

Com a chegada dos retornados, a vida no pátio da "Figueira" parecia frequentemente um festival de Woodstock; ao som das guitarras, fumavam erva, SG Gigante, Gitanes ou Português Suave. Os pobrezinhos como eu fumavam Definitivos ou o lendário "Provisório".
 As anedotas, invariavelmente, incidiam sobre os pretos ou sobre os alentejanos e o animador das conversas tinha sempre o cuidado de me dizer antes - Man, tu não és black!
 O man era eu - simpática forma de me chamar preto. Uma curiosidade é que muitos dos alunos que chegaram de Moçambique e de Angola jogavam bem basquetebol e voleibol, além de serem  também grandes fumadores de erva.

Hoje, ao dar uma volta aos papéis, encontrei um trabalho de grupo com sete folhas A4  sobre a escravidão. Estávamos no ano de 1978/79 e militava no 12° ano; dele vou transcrever uma pequena parte:
"Quando foi abolida a escravatura em África, muitos negros tornaram-se livres mas sem quaisquer recursos de subsistência. Por isso houve muitos que quiseram ficar com os seus senhoriais,  garantindo assim a subsistência da sua família ...
Essa situação explica a dificuldade que  têm em se livrar da pobreza, da miséria.... o subdesenvolvimento económico que se verifica nos países africanos e entre os negros, desde a época da escravatura até aos dias de hoje é explicado pelo curto tempo que ainda passou para reparar os danos provocados pela escravatura e pelo estrangulamento que os países desenvolvidos fazem  aos países de raça negra. … Sendo assim, é natural a existência de complexos entre eles, quanto mais se entre eles existirem indivíduos de pele mais clara e de cabelo liso que se acham superiores e verdadeiros herdeiros dos colonizadores...
A existência de complexos entre eles é também um factor a ter em conta negativamente; a existência  entre eles de indivíduos mestiços  que se acham superiores aos negros... esses sim, são os  verdadeiros herdeiros dos colonizadores...
O atraso vai haver sempre, porque os países desenvolvidos não vão querer que os países menos desenvolvidos se desenvolvam, evitando eventual concorrência e assim serão eterno mercado de bens de consumo, armas ... O problema dos negros é que eles continuam a ser escravizados pelos  mestiços e pelos próprios negros mais evoluídos. Os mestiços  são os que mais promovem desigualdade social e rácica em África e são de longe os menos tolerantes para com os negros, eles são os reis e senhores absolutos..."

Há dias uma cidadã Cabo-verdiana,  que vive nos Estados Unidos, enviou-me um “print screen” de um comentário que ela viu, a propósito de uma crónica que fiz publicar sobre a exorbitância de delinquência e assassinatos que se verificam em Cabo Verde, sob o título "Todos os dias..." A crónica em causa teve o mérito de acordar a consciência de muitos Cabo-verdianos para a tenebrosa realidade e teve ainda o condão de  indignar um familiar meu. O tablóide em questão  escreveu na introdução  " Irmão de Kaká Barbosa que reside em  Portugal atento aos problemas de Cabo Verde mandou esta crónica para onda OK"  leia-se Onda Kriolu. - Eu achei despropositada a referência ao Sr. Kaká Barbosa, até porque não preciso de suporte de ninguém, muito menos do Kaká Barbosa, para construir o meu espaço de opinião.
Entre outras considerações, o Sr. Kaká Barbosa escreveu isto: -  "…eu não tenho esse irmão em Lisboa."

Quando nos debruçávamos sobre o comentário e a enorme inteligência do intelectual cidadão Kaká Barbosa, a minha interlocutora saiu-se com esta:
- Sabes uma coisa, Adérito? Estou farta dessa gentinha de Cabo Verde, esse fulano é uma gentinha, sempre foi! Cabo Verde está cheio de gentinha como ele.
 Eu também acho isso mesmo, salvo algumas  excepções, como é óbvio. Mas que há, há! Há gentinha que pensa na proporção indirecta ao seu tamanho. Quanto maiores se julgam ser, menos são capazes de  pensar. O comentarista provou pensar pequenino, mais uma vez, e revelou não suportar a competência dos outros, para além de que a negação  da consanguinidade mostra que estamos perante um manipulador da genética.
 Desta vez, o cidadão Karluz Barboza que não sei quem é, comprou mal o escravo, porque eu… eu calar-me? Nunca!

Adérito barbosa in olhosemlente

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