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quinta-feira, 26 de junho de 2014

Os nós que somos nós

“Os nós que somos nós”
(Uma história colectiva construída por Adérito Barbosa, Ana Maria Santos, Ana Paula Ferreira, Asun Estévez, Fátima Veríssimo e Maria José Castro, a partir de uma fotografia).




Chegou com ansiedade aos cais da vila piscatória aninhada numa pequena enseada, uma baía que une as duas margens, onde o rio desagua no mar, sem sombra de dúvida!
Marver procurava encontros e desencontros, um mar de sensações, uma fatia da natureza, um objecto onde todas as histórias tivessem um ou vários sentidos, algo que ultrapassasse a simples fotografia. Ajustou o ISO à luz inconfundível daquela baía, salpicada aqui e ali por alguma nostalgia. Debaixo das arcadas, junto ao cais, adivinhava-se alguma solidão, mas desviou o seu olhar para uma corda bem esticada, um cabo como dizem os marinheiros. Não era uma corda qualquer, havia qualquer coisa naquela simetria, naquele cabo de amarração, naqueles nós, naqueles laços.
Preparou a objectiva e congelou a imagem. Partiu com a sensação de que aquele objecto não era apenas uma fotografia.
O que fazer com aqueles nós agora congelados na imagem digital? Meteu as 5 imagens, uma em cada garrafa, e lançou-as ao rio, ao rio da sua aldeia, como diz Fernando Pessoa. Do rio ao mar, cada garrafa percorreu o seu caminho até cada um dos seus amigos – a Ana que teria de esperar mais tempo pela garrafa, a Teresa, o Manuel, a Maria e a Laura.
E dos novelos de nós foi surgindo uma teia de histórias que Marver (re)conta com as cartas que recebeu nas garrafas lançadas ao rio da sua aldeia.
Maria não tinha muitas certezas na vida, mas isso dava-lhe uma grande sensibilidade para imaginar que os nós são o que nós queremos. Não sabia se eram nós, se éramos nós, se eram os laços que nos unem, os laços com que vamos desenhando os nossos espaços, criando as nossas frágeis pontes como flores, como flores perfumadas... Nós, amarras... âncoras!
Pelo contrário, Laura só sabia que as cordas têm nós quando nos amarramos uns aos outros, numa (in)dependência de nós, de laços, de linhas cruzadas. Nós lassos, nós apertados, nós cegos: de amor, de amizade, de solidariedade, às vezes de servidão. Numa existência que queremos feliz (ou apenas não infeliz).
A vida é feita de nós, dos nós que nos apertam a garganta, lembrava Teresa, quando recordou o episódio que a marcou para o resto da vida, quando conseguiu salvar Manuel de cair no abismo. Às vezes, não acreditamos que quem nos agarra nos quer libertar, murmurava Teresa ao ouvido de Manuel e acrescentava que a liberdade é um estado de alma que passa muitas vezes pelo corpo também.
Pelo corpo dorido de sofrimento, quando António puxa os cabos que amarram o barco ao cais, quando o liberta, quando os homens e mulheres lançam a esperança ao rio ou ao mar. Ai que saudades tenho eu de lamber as feridas daqueles que o mar fustigou!  Mas as memórias impressas na areia como carimbos relembram as vozes das palavras que a espuma não apaga. E Maria recitou o poema com os olhos colados ao horizonte:
Uma corda, um nó, uma união!
Uma corda, um nó, uma maresia!
Uma corda, um nó, uma amizade!
Uma corda, um nó,
Um cabo de mãos que se entrelaçam
de mãos salgadas de vida,
de medos e de ternuras,
de mãos que criam pontes, caminhos
delicados sobre as águas….
Uma corda, um nó,
um Cabo da Boa Esperança,
um abraço
que abraça o rio, e
que tu pescador da beira Tejo
nos ofereces
como se fosse a tua rosa preferida!

Manuel ouviu com emoção estas palavras de quem já viveu um segundo suspenso numa corda grossa pendurada numa árvore. Todas nós imaginámos o cenário que Manuel ia relatando vagarosamente com a voz arrastada, como se aquele nó lhe atravessasse a garganta: “Agarrei-me à corda grossa pendurada à árvore. Extensa corda esta, cheia de nós que parece ligar o mundo ao céu.
Fora colocada de maneira que ficou à vertical da represa, a meia altura da água, permitindo a manobra de um baloiço. Não tem cadeirinha não, apenas nós pelo seu corpo acima. Muitos nós, talvez de trinta em trinta centímetros. Nos nós de baixo, mais próximo da água, fixo os meus pés, nos nós mais a cima, seguro com as mãos. Aos nós me agarro e lhes confio a vida numa espiral de inocência. São nós que estrangulam a própria corda como uma cobra aperta a presa, como um nó de marinheiro, aperta, aperta...
Confio nestes nós. Eles suportam o meu peso, são neles que me penduro. São nesses nós que entrego a vida sem medo, tentando descobrir as razão das coisas que não entendo, e ali teimo em ficar pendurado, indo e vindo ao sabor do vento, baloiçando naquele prumo, de nós sobre a suave tolha de água e ler no espelho de água, antes de o rio se precipitar nas pedras com o teu sorriso, a palavra quero-te.
Extensa corda de nós com muitos nós, nós de trinta em trinta centímetros; nós que estrangulam sem piedade a minha garganta ressequida, quando te escutei dizer sem piedade:
- não, não te amo Manuel, eu amo outro e tu sabes disso!!!
Quero desatar esse nó que me aperta a garganta, não mais beber da minha lágrima.
Quero agarrar os nós da vida e gritar bem alto e dizer ao mundo que já tenho a parcela que me pertence. Por isso, agarrado a estes nós, vou e venho de uma margem a outra ao sabor do vento e sobre este espelho de água respiro os ruídos do tempo sem nó na garganta, enquanto sonho com o teu beijo”.
Já nada demovia Teresa da sua intenção. Manuel teria que suportar aquele nó bem apertado na sua garganta. Talvez fosse a sua libertação, um momento de felicidade, uma esperança encontrada na garrafa que Ana lançou ao mar da Galiza e ao rio Tejo veio desaguar. Foi António, o pescador de beira-rio, que a entregou a Manuel, percebendo que aquele nó teimosamente lhe apertava a garganta. E a missiva de Ana foi a última história que Manuel nos contou até que o nó da sua garganta ficou cada vez mais lasso: “Ás veces nesa procura da felicidade imos sen rumbo na nosa rutina, sen saber moi ben a onde, nin cómo...
Nin buscamos, nin pretendemos, incluso, xa cansos de corpo e alma, desistimos ata de soñar.
Mais a vida, sempre sabia, sáenos ó paso e toma conta. É ela a que dispón no momento certo, a que ata ou desata os nós.
Chegados a este punto podemos mirar para outro lado negando a evidencia ou aventurarnos coa vertixe do descoñecido. O tempo é sempre fugaz e non entende de pausas, nin admite prórrogas. El camiña cara adiante e non agarda por nada nin por ninguén.

Sempre haberá un porto para aqueles que camiñan descalzos de destinos. Sempre haberá cordas para os que prefiren ficar presos. Ás veces mesmo é así. Quizais antes de acontecer, as historias que nos conforman, xa estaban escritas. Agora só resta ter o valor de vivir, con ou sen nós, pero iso si, sen quitarlle ollo á corda”.

Adérito Barbosa in olhosemente

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