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sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Depois conto-vos como foi

12 de novembro, dia soalheiro. Um autêntico dia de verão.

Maré baixa, rochas a praticar nudismo; há cheiro a entranhas das rochas e a maresia. É como se o mar tivesse transpirado todo o seu suor de uma só vez e agora se lembrasse de pôr os sovacos ao ar livre; o cheiro a sovaco do mar vem e vai com a brisa fresca. O sol está baixo como o mar. Parece que combinaram ir-se embora juntos. Assim como vejo as águas longe, também vejo que o sol está de olhos postos lá para o outro lado do horizonte, deitado a dezoito metros da altura da linha d'água. Não, não pensem que estou num fim de tarde, não! O relógio marca 9H59 da manhã e é quinta feira. Hoje tive alta médica. O médico considerou-me apto e clinicamente curado da intervenção cirúrgica a que me submeteu em Julho; foram quatro meses terríveis de recuperação.

Foi aqui, neste sítio tranquilo, que ao longo destes meses andei de bicicleta, ou a pé, quase todos os dias, por ser um sítio plano, por não haver carros e com isso evitar ganhar peso. Sei que não é permitido andar-se de bicicleta aqui a determinadas horas e, por isso mesmo, alguns dos polícias que zelam pela segurança daqueles que fazem footing, ainda me fizeram alguns auto-stop.

Nessas operações de auto-stop não pedem documentação. Umas vezes dizem que não ê permitido andar de bicicleta, outras vezes perguntam se não vi a tabuleta de proibição e outras passa-se por eles e não dizem nada. Sempre que fui abordado refilei, dizendo que não tenho outro sítio para andar, ao que eles ripostavam sempre:
- Ande na estrada, ou nas picadas, ou nos jardins.
- Eu não posso andar de bicicleta na estrada, porque posso levar uma traulitada de algum carro e nas picadas também não posso, porque acabei de ser operado pela 4ª vez à coluna, logo, não posso sujeitar a minha coluna a grandes solavancos; mostrava-lhes então a cicatriz ainda fresca da costura e o inchaço que ainda ostento no sítio onde o bisturi do médico cortou sem piedade aquela zona, naquela tarde do dia 15 de Julho.
- Eh pá, essa costura é grande; isso está alto que se farta; isso não vai baixar? Isso dói? Perguntavam os polícias.
- Não, isso aí não vai baixar nunca mais; não vai baixar porque aí debaixo estão uns parafusos e uns travessões em titânio, que me colocaram para fixar as vértebras uma à outra.
- Você está lixado com isso! Onde é que arranjou essa brincadeira? Perguntou um dos agentes mais afoito.
- Eh pá, isto foi nos Páras.
- Você é militar? O pára-quedas não abriu, foi? Perguntava, curioso, um dos agentes.
Depois de responder afirmativamente que sim, que era militar, expliquei que, se o para-quedas não tivesse aberto, a esta hora já eu estava a fazer tijolo há muito. Então, contei aos recentes amigos da PSP DE OEIRAS que sofri um acidente em para-quedas em 91, quando ainda era um jovem e tinha apenas 35 anos. Daí para cá, já somei quatro intervenções à coluna, sem contar com as outras ao joelho, aos testículos e ao braço.
 - Um martírio!... desabafei.
Os agentes, todos eles jovens e já sensibilizados, abanavam o esqueleto como quem diz: - Você está fodido!
No decorrer da conversa, dizia um deles que o que gostava mesmo era de ter sido paraquedista; outro comentava que aquilo é que era tropa a sério, enquanto outro acrescentava:
- Eu nem pensar, saltar de avião nem empurrado!!
Contei-lhes que era DFA e passei a contar com a compreensão e simpatia dos nossos agentes da PSP que passaram a fazer vista grossa, quando me viam andar de bicicleta aqui no Passeio Marítimo de Oeiras.
 Passados estes anos, ainda ando a caminho dos hospitais. Estou a ser seguido no Hospital da Luz. Quando telefonei para o Hospital das Forças Armadas, para marcar uma consulta de neurocirurgia, como sempre fiz, quando aquela coisa era Hospital da Força Aérea, do outro lado da linha alguém respondeu, para meu espanto, que não podia marcar consulta para essa especialidade, porque eu teria que lá ir falar com o Chefe dos Serviços de Neurocirurgia. 
- O quê!?... Eu tenho que ir ao hospital falar com quem!? Peguei em mim, liguei para o Hospital da Luz, marquei a consulta e 30 dias depois já estava operado e em casa a recuperar.
Passei hà dias no Estado Maior da Força Aérea em Alfragide e fui à Secção de Justiça e Disciplina para me inteirar das papeladas necessárias para reabrir o meu processo. O TCOR Domingos, um dinossauro da justiça da FAP (no meu tempo, era ele em Alfragide e eu em Tancos, quais homólogos justiceiros), recebeu-me com parcimónia. O engraçado é que se lembrava perfeitamente do meu processo. Deu-me as indicações dos passos que tinha que dar.
Na sequência disso, hoje liguei para o hospital, à semelhança do que fiz há  quatro meses e pedi para marcar uma consulta de neurocirurgia; esclareci que sou DFA, blá, blá, blá e que o meu objectivo era mostrar os exames e o resultado da cirurgia e que pretendia reabrir o meu processo, blá, blá, blá por aí fora. A resposta foi esta:
 - Não podemos marcar consulta de neurocirurgia. O Sr. tem que vir ao hospital falar com o chefe dos serviços de neurocirurgia.
No dia 19 vou ao Hospital das Forças Armadas; pelo cheiro da coisa, fiquei com a impressão que esta instituição tresanda à fragrância de uma cavalariça.
Enquanto isso, vou saboreando o prazer que o Passeio Marítimo de Oeiras oferece aos seus munícipes, inalando aqui e acolá esta maresia e escutando os açoites que as ondas dão às rochas, quais submissas sexuais.
"Na tropa, quando há um acidente, o acidentado é o primeiro a perder. E quando se ganha alguma coisa, o acidentado é o primeiro a não ganhar".

Vou ver se isso é verdade, depois conto-vos como foi.

Adérito Barbosa in olhosemlente

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