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sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Notícias da minha morte



Notícias da minha morte


Já estava a ficar sem forças. As enfermeiras, todas boazonas, não sabiam o que fazer comigo, estava farto de ali estar,  esticado na cama e tornei-me rabugento. Pedi para me vir embora mais cedo, mas negaram-me esse privilégio.

Um dia, quando menos esperava, apanhei uma cápsula de cianeto do companheiro da enfermaria que estava  com ideias, mas faltava-lhe a coragem. Ao trincar aquilo, vi finalmente reconhecido o meu direito a uma certidão de óbito, documento legalmente assinado, reconhecido e carimbado. " Morto!", lia-se e de morte natural.
Um dia, quando menos esperava, apanhei uma cápsula de cianeto do companheiro da enfermaria que estava  com ideias, mas faltava-lhe a coragem. Ao trincar aquilo, vi finalmente reconhecido o meu direito a uma certidão de óbito, documento legalmente assinado, reconhecido e carimbado. " Morto!", lia-se e de morte natural.

No meu velório apareceu gente de todas as tendências. Familiares, amigos, inimigos, amantes, aquelas que me deram com os pés e militares. Os que me amaram ficaram longe, aqueles que não me eram íntimos sentaram-se ainda mais afastados e dos militares  só não apareceram os lambe-botas dos Generais. Morri sem coroa nem glória e sem nunca entender porque é que os militares, mesmo na reserva e na reforma,  continuam a lamber as botas dos Generais, embora entenda que aqueles que nunca fizeram nada, mas subiram na vida, na hierarquia, à custa da bajulice, o façam.  

Estiveram também presentes os meus inimigos de estimação, a quem fiz a vida negra e também aqueles que me  fizeram a vida num inferno e me tramaram à força toda. Já vi, quando um gajo bate a caçoleta, a malta bota para de trás das costas as picardias e desavenças pessoais. O morto Leva a teimosia com ele..
As minhas amantes que, como sempre, me foram todas fiéis, até porque eu cá nunca dormi só, ficaram à volta do meu caixão, olhando para a minha fronha de morto já roxo. Uma pensava e até dizia: - Era tão boa pessoa! Outra organizava as ideias e, para com os seus botões, reflectindo  na vida, murmurava em surdina: - Que grande sacana me saíste, Adérito! Outra, mais ingénua, dizia : - Vou ter saudades tuas, meu verdadeiro amor! Outras, todas contentes : - Ainda bem que te foste, porque assim ninguém vai saber de nós. Outra, mais raivosa: -  Bem feito! Agora, agora que esticaste o pernil, estou livre das tuas
patifarias; o pior é que vais atazanar as do inferno. Vai para o diabo que te carregue!

Ainda quis levantar-me do caixão e fazer um discurso assim: - É verdade que houve gente que me dificultou a vida e que, apesar disso, veio confirmar o meu actual estado. Quero dizer-vos que adoro flores,  mas teria sido bom que mas tivessem oferecido, enquanto estava vivo. Não quero qualquer anúncio macabro no CM. Gostaria de ver alas abertas para desfile das minhas amantes. Amei todas de verdade e por isso nenhuma se pode queixar. Só espero que não contem umas às outras as minhas façanhas. Chorem, chorem, mas apenas pela vida louca que vivemos  e já não a vão ter mais. Não chorem nunca por este defunto!
No discurso, lembraria também que não haverá missa de sétimo idia e pediria que se esqueçam da ideia de enfeitarem a minha campa, ou a gaveta com os meus ossos, visto que prefiro ir para o forno crematório aquecer as costas de vez, em vez de ficar com o lombo na terra fria e húmida com o xixi do coveiro.

A vida continua aqui no inferno, para onde me trouxeram  e vou aproveitar, o que, na verdade, creio que não vai ser fácil; vejo muita gente da vida boémia por aqui e além disso, também vejo aqui gente que nunca imaginei ver, que pensava que eram uns santinhos. Quem diria, pecadores como eu! Depois de preencher a ficha do check in, concluí que já estava numa festa de boas- vindas. Antes de vir, arrancaram-me tudo, fígado, coração e os meus testículos, que foram parar a outro gajo que ficará entalado com eles num pedregulho. Não tenho ferramenta para amar, nem sensor de sentimentos, porque também me tiraram o coração!!!

Adérito Barbosa in olhosemlente

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