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domingo, 23 de fevereiro de 2014

Retórica



Uma amiga dizia-me ontem que precisava de fazer uma dissertação sobre a frase de Platão "Quem comete injustiça é sempre mais infeliz que o injustiçado" e pediu-me ajuda. Fiquei logo em pulgas.

Fascina-me a filosofia mas, infelizmente, só a estudei durante um ano. Foi no antigo 2º ano do Curso Complementar, equivalente ao 11º ano de hoje. Tenho pena de não a ter estudado mais, mas não podia! Era aluno de Eletrónica. Na altura reclamávamos que não fazia sentido gramar com a disciplina de Filosofia no curso de Eletrónica. E o professor ia sempre dizendo que se víssemos bem, estudar Filosofia juntamente com a eletrónica era humanizar a tecnolologia. Ainda hoje não entendo a ideia dele, mas enfim… Mesmo assim, fiquei a gostar de filosofia: estudámos por alto Sócrates, Platão e Aristóteles e, quase no final do ano, demos ainda uma lambidela às ideias de Jean Paul Sartre.

Fiquei com a ideia que Platão foi um filósofo e matemático do período clássico da Grécia Antiga, autor de diversos diálogos filosóficos, que Sócrates foi o seu maior mentor e que teve como pupilo Aristóteles.
 A ideia com que fiquei dessa gente é que os tipos eram uns grandes malucos, utópicos que se farta. Mas o nosso professor, de seu nome Armando, salvo o erro, surdo que nem uma porta, comunista ferrenho, conseguia utopicamente silenciar a sala da turma 2CE. Punha-nos a sonhar a tal ponto que, nos intervalos ou nos furos das aulas, em vez de falarmos, como era hábito entre os alunos de Eletrónica, sobre as toneladas de fórmulas de matemática, de físico-química, e dos semicondutores, lá estava a turma inteira a filosofar debaixo do telheiro do pátio. Era ali que todos os dias, com uns acordes de guitarra, havia música dos Pink Floyd, Deep Purple, Led Zeppelin, e outros da época. Outros tempos!...
Só me safei a Filosofia porque um dia levei um dólmen militar, muito utilizado na altura do PREC, com uma rosa vermelha e um pin do partido comunista.
O professor Armando achou que eu era um progressista e lá me deu 11valores, mas ia sempre dizendo que eu escrevia muito pouco, que era inadmissível entregar um teste de filosofia com 25 linhas, que mais parecia uma folha de requerimento pedindo um medíocre e, ainda por cima, cheio de erros. Recordo-me de um dia me ter dito:
 - Não mereces nada, pá! Nunca te vejo nas  RGE’s, e também não deves ir a nenhumas das RGA’s?!... Ninguém te vê participar nas ações da Associação de Estudantes!
 - Está enganado, professor. Quem é o DJ da Escola? Já não se lembra, professor?
 Eu era o DJ da Escola - uma atenuante!...
 Um dia houve baile geral no ginásio e ele pediu-me para rodar um vinil que ele levara – “Ne me quitte pas”, de Jacques Brel.
 A professora de Biologia gosta muito desta canção! - disse ele, muito nervoso - Não quero esse disco riscado! Que agulha tens aí nesse gira discos?
 - É uma agulha de diamante, novinha em folha, professor. O Faíscas foi comprá-la ontem à Rádio Lisbonense. Fique tranquilo… – tranquilizei-o.
 Era sabido que ele andava a fisgar a professora de Biologia fazia algum  tempo; era sabido também que a sorte lhe passaria ao lado. A professora era tão “boa” que até nós, alunos, sonhávamos com ela.
 Ao sinal dele botei a música e, contra todas as expectativas alimentadas pelos rumores da escola, ela dançou com ele. Mais tarde, soube que ela estava grávida dele. “ Valeu a pena, ó professor Armando, a ajuda que lhe dei! Quanto ao 11 que me deu, cheirou a pouco! Se o Platão soubesse dessa sua forretice, considerá-lo-ia um infeliz por ter sido injusto.

Na época éramos todos comunistas. Mais tarde, mudei para o MRPP; depois mudei para coisa nenhuma e mandei bugiar a política. De vez em quando, costumo ver dois caramelos, antigos colegas daquela turma, que seguiram a vida política e botam faladura na TV, igualzinho ao que faziam há 38 anos atrás nas RGA’s da Escola.
 Lembro perfeitamente, como se fosse hoje, o professor Armando a dissertar sobre o julgamento de Sócrates, a propósito da análise da obra de Platão «Apologia de Sócrates». O filósofo, que tinha sido denunciado por Meleto, por influenciar e corromper os jovens, e por não acreditar nos deuses reconhecidos pelo Estado, introduzindo novos cultos, foi levado a julgamento por ter assumido a responsabilidade pelo que fez defendendo a sua liberdade de pensamento e o direito de morrer dignamente. Apesar da acusação ter sido assinada pelo jovem Meleto, representante dos poetas, parece ter havido outras pessoas implicadas no assunto, como é o caso de Ânito, representante dos políticos e artífices e ligado aos oradores, provavelmente o mentor do processo, e Licon, que representava os oradores de Atenas.
Meleto é o único a falar durante a defesa de Sócrates, caindo em contradição sobre a natureza da acusação feita ao filósofo, afirmando num momento que este pregava o ateísmo, e em outro, que acreditava em semideuses. Sócrates concentra-se numa argumentação contrária à dos seus adversários e alega que, apesar de não ter a experiência de falar em tribunais e não dominar a retórica própria desse ambiente, pronunciará exclusivamente a verdade, sua preocupação como filósofo, contrariamente dos seus detratores, que usam a retórica em proveito próprio. Procura algo que possa convencer os juízes de sua sabedoria. Menciona que o Oráculo de Delfos afirmou ser ele o homem mais sábio de sua época, tendo ainda reforçado que somente ele, Sócrates, era o verdadeiro sábio, porque tinha a plena noção de sua “douta-ignorância” (“Sei que nada sei”). A sua tese em resposta às acusações, é a de que nada mais fazia do que filosofar. A sua teoria era a de que não havia quem pudesse dizer-se prejudicado com os seus ensinamentos. Os seus argumentos, recheados de ironia, faziam corar os acusadores, que, pela força dos argumentos ficavam sem palavras para prosseguir na acusação. Para Sócrates o maior bem de um homem é falar e questionar as coisas, não existindo nada, nem mesmo a morte, que o faça mudar a sua conduta e o seu modo de pensar.
 Ele achava indigno um homem livre tentar desculpar-se através de palavras bonitas, pois todos os que estavam a julgá-lo e o condená-lo à morte seriam um dia julgados pela verdade e condenados pela injustiça e falta de caráter.
 E termina: "Mas já é hora de nos retirarmos, eu, para morrer, e vocês para viverem. Entre vocês e eu, quem está melhor? Isso é o que ninguém sabe, exceto Zeus".

Ao meu grande professor de Filosofia, Armando
Adérito Barbosa in "olhosemlente"
22 de Fevereiro

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